Efemérides 29 de Novembro
Francisco da Costa Oliveira (1908 – 1999)
Nasce em Lisboa. Advogado, e autor vários livros de natureza jurídica, tem também 4 romances publicados
1 - Alto Risco (2005), Editora Oficina do Livro. Sinopse (Clicar)
2 - Anjo Negro (2007), Editora Oficina do Livro. Sinopse (Clicar)
3 - Corações Imperfeitos (2011), Editora Oficina do Livro. Sinopse (Clicar)
4 - Motel (2011), Chiado Editora.
TEMA — ESTUDOS DE LITERATURA POLICIÁRIA — SHORT STORY
O presente estudo da autoria do escritor e editor Ross Pynn (Rossado Pinto) fo extraída do prefácio de uma das esplêndidas antologias policiárias construídas e editadas por Ross Pynn. É não só um acto de justiça a sua divulgação, como uma sincera e saudosa homenagem ao Homem que admiramos e que foi um grande e saudoso Amigo.
M. Constantino
Para a. Literatura Policial é curioso registar que o moderno conto, ou seja, aquilo que os americanos e ingleses definem com tanta felicidade por short story começou em Edgar Allan Poe. Também em Máximo Gorki, mas com maior expressão, mais clareza, em Edgar Allan Poe, E isso estabelece desde logo uma dimensão subjectiva ao caso, que não pode deixar de honrar a Literatura mais discutida do mundo — e dizemos mais discutida, porque há ainda quem não tenha chegado a uma conclusão sobre a sua posição na escala das Literaturas.
E se na Europa não existem muitos cultores, pelo menos em número igual ao que se encontra no romance ou na poesia dos países de Língua Inglesa, existe como que uma predisposição especial para essa dificílima arte de narrar.
A razão está, com certeza, na própria língua. A Língua Inglesa é concisa, sincopada, limitada. Portanto, a ideal para transmitir o conto curto, porque ele é sincopado, conciso, limitado. Há que dizer tudo em muito pouco. Dizer tudo por vezes numa única frase, retratar uma personagem num único traço. E sobretudo encontrar a maneira de levar ao leitor aquilo que se pretende transmitir dentro de um caminho fácil mas completo. Hemingway, por exemplo, deu-nos numa das suas short stories— o célebre “The Killers” (Os Assassinos) — todo o ambiente, personagens, crítica e acção, apenas em diálogo.
Existe na América por parte do leitor um entusiasmo invulgar pela short story. Fazem-se edições sucessivas de livros do género e editam-se milhares (!) de magazines especializados.
A Literatura Policial não podia fugir à regra. Sendo um género de tanto agrado do público, teria que ter os seus cultores, e de uma maneira ou outra, todos os romancistas policiais já tentaram — e alguns até preferem ou se, especializaram — na short story.
Há quem lhe chame, no campo policial a leitura ideal, mais adequada à “pressa” dos nossos dias, e também quem a considere como meros “aperitivos”, textos “supérfluos”. Uns e outros podem ter razão, mas não totalmente. Um conto curto pode levar muito tempo a ler, se por Ier se entender uma leitura cuidada e atenta dos textos. Além disso é tão supérfluo como uma novela ou um romance, desde que o supérfluo esteja no leitor.
Para já, convém acentuar uma coisa: a short story, mesmo no policial, constitui uma modalidade com características próprias. Não se assemelha nem iguala a qualquer outro género. Diferem, quanto à sua definição, as opiniões: uns dizem que deve ser “curto” quanto ao tamanho físico do conto, outros “curto” apenas na história.
Quanto a nós, short story terá de ser o mínimo dos mínimos no máximo dos máximos. Por outras palavras: dizer em poucas palavras tudo quanto tem de ser dito. Isso impõe um estilo próprio, e também uma técnica diferente. Não se pode escrever um “conto curto” (tradução eventual para short story como se escreve uma novela ou um romance. O autor destes últimos terá de criar uma mentalidade diferente e uma técnica apropriada.
O. Henry afirmava:
Deixem que escreva em duas linhas o que outro faria em cinco páginas: deixem, porque assim sou eu mesmo”. Uma definição que traduz exactamente o espírito da short story: um autor “nasce” para escrever contos, como outros para escrever romances. A técnica está nele, e a forma delineada na sua própria formação. Este será o mestre; o outro, aquele que o faz por imposição, por estudo, por se obrigar, o curioso.
SHORT STORY DE AUTOR ESTRANGEIRO — CIÚME FATAL
De Adele E. Cateau
Clare com o seu vestido justo; parecia uma estátua, de pé em frente à mesa, esperando pelo marido. O abajur projectava sombras na carta que tinha entre as mãos e sobre cujas finas e negras linhas os seus, olhos brilhavam.
Pouco a pouco, com a leitura, sentiu-se novamente transportada para junto de James.
Havia tantas recordações agradáveis!
Como o seu coração batera ao vê-lo embarcar no “Orient” com os cabelos louros brilhantes ao sol, aquele primeiro e assustado encontro dos seus olhares, os passeios pelo convés, as conversas, os silêncios e as danças nas noites tropicais. Com que ternura se haviam debruçado à balaustrada, à medida que o vapor avançava cada vez mais… e William sempre como uma sombra aborrecida atrás daquele quadro feliz. Como eram encantadores aqueles dias, quando James lhe dera a caixinha de teca que comprara em Bali! Depois, como era triste a recordação de tê-lo visto acenar e, por fim, converter-se numa pequena mancha branca, lá no cais longínquo, enquanto ela e o seu esposo se afastavam de Bornéu.
— Porque escolheu Bornéu? — perguntara ela muitas vezes.
— Pela medicina tropical — respondera ele. — É um campo que quase não-foi explorado e no qual quero trabalhar como médico de uma companhia de petróleo.
Aquilo tinha sido o bastante, aqueles dias passados juntos e a promessa quase pronunciada por ele… sim, tinha sido o bastante.
Somente mais tarde, quando as forças quase lhe faltaram e já não podia suportar aquela situação angustiante, apresentando sempre desculpas a William, apesar de ser ele agora um homem doente, é que se resolvera. Afinal, honra e orgulho ainda não tinham sido inteiramente desalojados de seu ser e ela sentia-se na contingência de tudo revelar ao marido.
Mas não ainda nessa noite. Antes de tudo, devia aguardar o momento oportuno para falar-lhe acerca daquela carta, a qual não devia ver antes de estar preparado. Onde a guardaria?
Ouviu os passos de William, aqueles dolorosos passos, rastejantes, de homem doente e pesado, vindos da entrada. E, amarrotando a carta, ocultou-a no seio.
Quando William Hudgins a avistou, os olhos cintilaram.
— Que rainha! — troçou — Que magnífico quadro de impaciência!
— Estava apenas à espera — respondeu ela calmamente.
— E em que pensava? — perguntou ele — Na felicidade de ter um marido aleijado ou na possibilidade de divertir-se com um rapaz carinhoso e interessante como aquele maldito médico?
— William! — implorou ela.
— Não pense que me engana! Confesso que não sei bem o nome dos outros que você tem por aí, mas sei direitinho o que é que tem com “ele”!
— Não fale assim! — protestou ela, sem saber se a doença dele se teria transformado num ciúme mórbido, se teria descoberto tudo ou, ainda, desconfiado da verdade., Enfim, em qualquer das hipóteses não tinha razão para falar daquela maneira.
Depois de James deixar o navio, a viagem ao redor do mundo convertera-se num pesadelo. Desde então, William, torturado por uma paixão doentia, passara a ver um rival em cada homem que ela cumprimentava e, se bem que acerca desses ela não se incomodasse, Clare não podia suportar que ele falasse daquela maneira de James…
Principalmente pelo facto de não existir nada entre eles. Nada, absolutamente, além daquela promessa Interrompida e daquele olhar.
William Hudgins observava-a, fazendo com que ela notasse e sentisse agudamente a crueldade refletida nos seus olhos.
Como estavam profundas as suas feições e fino o seu pescoço dentro do colarinho duro!
— Está frio aqui! — disse ele, inclinando-se para activar o fogo.
Mas o exercício foi muito forte para a sua resistência e suspirou, quase sem forças para se levantar.
— Pode deixar que eu arranjo,
Clare inclinou-se para o substituir e, ao fazê-lo, a ponta da carta apareceu sobre o peito do vestido branco.
De repente, ela sentiu a mão dele violentamente de encontro ao seu peito.
— Ah, eu sabia! Eu sabia! — gritou o marido, brandindo a carta amarrotada.— Não proibi que escrevesse para esse sujeito? Não proibi que lesse as cartas que ele mandava?
— Dê-me a carta, William! — exigiu ela.
— Mentirosa! — gritou o marido. — Miserável desavergonhada! Olhando para a lareira, preparou a carta para a atirar ao fogo.
— Não faça isso, William, ou arrepender-se-á!
— Lamento não tê-lo matado! — vociferou ele, e, sem hesitar mais, atirou à fogueira o papel branco, que em segundos se transformou num bolo negro de cinzas.
Clara sentou-se, tapou lentamente o rosto com as mãos, mas ficou imediatamente calma.
— Não tem importância — disse ela, um instante depois. — Lembro-me perfeitamente de todas as palavras desta carta.
— Então era mesmo dele? — berrou o homem, como se ainda não estivesse certo da realidade.
— Sim — respondeu ela. — E quero que a ouça! Não custa nada! É muito curta; são poucas palavras.
E numa voz lenta e monótona principiou a recitar:
Prezada Clare, assim que me escreveu a respeito da doença do seu marido, reconheci-a como um dos obscuros males tropicais que, sem dúvida, contraiu quando esteve aqui. É uma doença que raramente se manifesta antes de seis meses após a data do contágio. Os médicos brancos não conhecem meios para a combater, mas os indígenas têm um processo de cura, uma das descobertas que me trouxeram aqui, para esta solidão. Envio-lhe o remédio, que consta de umas certas sementes; se não for usado dentro de um mês, a doença não terá cura. Espero ter agido a tempo. Inclinando-se,William Hudgins tocou-a gentilmente no braço.
— Desculpe-me, meu amor… Sou um homem doente e faço essas coisas sem sentir… Agora estou envergonhado do meu acto, de ter duvidado de si… Mas onde estão as sementes? As sementes e as instruções médicas?
Clare começou a rir. Ela, que não tinha um sorriso havia vários meses, contorcia-se no chão às gargalhadas; ria tanto que as lágrimas lhe saltavam dos olhos.
Quando se acalmou, conseguiu dizer:
— As sementes estavam dentro da carta!
SHORT STORY NACIONAL — AO LUAR, NA LEZÍRIA
De Lima Rodrigues
O ano fora mau. Já o outro o tinha sido. E houvera cheia. Tem o trigo na eira. No bolso, uma apólice. Se o trigo ardesse…
Ninguém descobrira. Ele é pessoa seria. Conhecida, importante. Quem pensará sequer em desconfiar? Ninguém desconfiara de ninguém. São coisas que acontecem. Coisas do destino: umas vezes, ponta de cigarro, outras, fagulhas das máquinas. São coisas que acontecem.
Consulta a sua consciência: consciência sem actos. Sem acções. Só com necessidades…
E luta faz… não faz; vai… não vai; a hipoteca, as letras…; vai… faz; não vai… não faz; a sua nobreza, a tradição…; vai… não vai; faz… não faz; a hipoteca, as letras… vai!
E foi…
Arame farpado ladeando caminhos; separando negras feras; os homens das feras; as feras dos homens; Chocalhos, soando, avisam incautos.
E chega…
A noite é serena. Há vida no ar: som do harmónio; na voz do fandango; do vira rodado; e o pó e a palha, a palha e o pó, ainda andam suspensos, bailando, ao luar…
Chegou junto as medas. Tem os fósforos no bolso. Mete a mão e tira-os. Abre a caixa. Segura Um. Vai riscá-lo… É contrabandista atravessando a fronteira: ao arder do fósforo; estará do outro lado. Do outro lado, no crime. As mãos tremem. Todo ele treme. Curva-se. Vai acender o fósforo…
Ouve uma restolhada. Assusta-se. Levanta-se. Volta-se. Numa mão, a caixa. Na outra, o fósforo. Horroriza-se. Treme mais. Fica sem forças. Sem Fala. Reage. Corre. Foge…
Um arranque veloz. Uma corrida ligeira. E um vulto negro vai-se aproximando.
O homem reage. Reage outra vez. Pára e volta-se, enfrentando o monstro.
— Eh, touro! Eh, touro… Eh touro dum raio…
Espera a pé firme, como em outros tempos. Que valentes touradas! Que rijíssimas pegas! Tudo águas passadas…
Ao luar, na lezíria, há beleza no drama. O homem e a fera, a fera e o homem. E a luta principia…
Cabeça com hastes em riste, com olhos luzindo: um corpo que a envolve; umas mãos que a agarram. Luta desigual: energias perdidas nos anos; pujança selvagem. Um corpo volteando no ar… queda desastrosa. Uma nova investida, mais outra marrada. E o homem no espaço, com o pó e a palha, a palha e o pó, parece dançar… e o sangue que se escoa, é a vida a fugir…
E surgem cavalos. Há pampilhos ao alto; barretes no ar. Há cintas vermelhas; jaquetas ao vento.
Os cascos martelam o árido solo. Chocalhos badalam mais perto, em compacto desfile. A tarefa começa, prolonga-se, termina: cavalos cansados; chocas a arfar; rostos suando, que brilham na noite; e o touro assassino, com os chifres vermelhos, distribui marradas às guias: vingança do bruto!
— O Fidalgo morreu! — disse um maioral. — O “Bonito” matou-o!
— Uma morte feliz — outro acrescentou. — Que há de melhor que a gente morrer nos cornos dum boi?
Uma caixa caída. Um fósforo perdido. Manchas de sangue que chão.
Ninguém desconfia. Ninguém descobrirá. Foi tudo o destino. Desastres que se dão. Coisas que acontecem…
E o pó e a palha, a palha e o pó, continuam suspensos, bailando ao luar…
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