27 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 332

Efemérides 27 de Novembro
Noah Charney (1979)
Nasce em New Haven, Connecticut, EUA. Enquanto estudante vive, por períodos, em Paris, Londres e de regresso aos EUA, em Waterville, Maine funda a Colby Film Society e escreve várias peças para teatro, tendo recebido inclusivamente um prémio Horizons New Young Playwrights em 2002. Muda-se para Inglaterra e faz um doutoramento em História do Roubo de Obras de Arte. Mais tarde funda a ARCA — Association For Research Into Crime Against Art, a primeira organização internacional a promover a protecção do património cultural e fomenta o estudo e a investigação dos crimes relacionados com arte. Noah Charney é o autor de The Art Tief (2007), também editado em Portugal:
1 - O Ladrão De Arte: três obras de arte, uma mente genial (2008), Editotra Civilização. Título Original: The Art Tief (2007),



Vídeo: O Ladrão de Arte - Noah Charney (Civilização Editora)



TEMA — PSICOLOGIA CRIMINAL — HOMICIDAS INSTITIVOS
Nem sempre o homicida É o instrumento cego de uma obsessão ou delírio. Há também os homicidas instintivos ou constitucionais; mas muitas vezes os criminosos de sangue, como os que actuam contra a propriedade, são o produto do meio em que viveram, da miséria e do abandono. Tal é, por exemplo, o Antônio Balduíno, do romance “Jubiabá” de Jorge Amado.
Antônio- Balduíno é o tipo do malandro criado ao Deus dará, rixento e rufião, hostil à disciplina social. “A coisa que ele mais ama é a briga”. A briga com todas as suas, consequências. E da briga ou das provocações de “bamba”, à maneira dos que descem dos morros cariocas, o malandro baiano não demora em tornar-se assassino.

No cinto, por baixo do paletó, Antônio Balduíno traz dois punhais.
Zequinha correu para cima dele com a foice na mão. Se atracaram e rolaram no barro duro da estrada. Zequinha caiu e a foice voou longe. Quando ele se levantou e correu novamente para Antônio Balduíno viu o punhal na mão do negro. Parou irresoluto. Ficou calculando o golpe. Depois deu um pulo. António Balduíno deu um passo para trás, a sua mão se abriu e o punhal caiu. Zequinha riu com os olhos e rápido como um gato se abaixou. Antônio Balduíno tira do cinto o outro punhal que finca nas costas de Zequinha.
Antônio Balduíno trás sempre dois punhais no cinto… E a sua gargalhada assusta os homens mais que a Juta, que a punhalada e o sangue. Era de noite e o negro ganhou o mato.

Esse homicida pode servir de padrão para os criminosos que se fizeram na via pública, sem os freios da família, da religião ou da escola, de “cambulhada” com a ralé social, a ouvirem as lições dos viciosos e inadaptados, emulados pelas acções dos que se tornaram famosos por sua corrupção ou ferocidade, em permanente desafio à ordem e à moral públicas.

Escreve Jorge Amado, referindo-se ao terreiro do morro onde o pai de santo imperava e se reuniam os vadios e brigões da capital baiana:
Aquela era sua aula proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam a carreira. Carreiras estranhas aquelas dos filhos dos morros. E carreiras que não exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão.
Nota Policiário de Bolso: Cambulhada — confusão, desordem.



TEMA — CONTO DE FICÇÃO CIENTÍFICA — O SORRISO DO QUADRO
De Ray Bradbury
Às cinco da manhã, no momento em que os galos começam a cantar nos campos vizinhos e que as fogueiras ainda não foram acesas, já havia uma fila na praça da cidade. Lufadas de neblina tinham encoberto a princípio os prédios em ruínas, mas agora, com a primeira claridade das sete da manhã, começavam a dispersar-se. Em toda a extensão da rua, em grupos de dois e de três, o povo acorria para o grande dia, o dia da feira, o dia da festa.
O menino estava bem atrás de dois homens que conversavam em voz alta no ar cristalino, e suas vozes, na manhã fria, pareciam duas vezes mais fortes. O menino saltava de um pé para o outro e soprava sobre as mãos vermelhas em forma de concha. Levantou os olhos para os dois homens vestidos de pano de saco sujo e acompanhou com o olhar a fala interminável de homens e mulheres.
— Ei, rapaz! O que estás a fazer acordado tão cedo? Perguntou o homem atrás dele
— Estou a guardar o meu lugar na fila.
— Por que não voltas para a cama e dás o teu lugar a quem realmente aprecia essas coisas?
— Deixa o miúdo em paz, disse o homem da frente, voltando-se bruscamente.
— Falei na brincadeira…
O homem que estava atrás colocou a mão sobre a cabeça do menino que, com um movimento dos ombros, a afastou.
— Estranhei ver um menino fora da cama tão cedo. Só isso…
— Pois fique sabendo que o menino aqui é um apreciador de quadros, disse o defensor do garoto, um homem chamado Crigsby. Como te chamas, rapazinho?
— Tom.
— Pois bem, Tom! — Vais cuspir bem longe daqui a pouco, não é mesmo?
— Claro que vou!
Toda a fila riu com a resposta.
Um homem vendia café quente em chávenas lascadas, na frente da fila. Tom ergueu os olhos e avistou o pequeno fogareiro e a bebida que fervia na panela enferrujada. Não era café verdadeiro. Era feito com grãos que cresciam no mato fora da cidade, e as pessoas pagavam um tostão a chávena para aquecer a barriga. Poucos porém tomavam aquele café, porque poucos tinham aquela fortuna.
Tom olhou em frente para o lugar onde a fila começava, junto a um muro de pedras destruído por bombas.
— Contam que ela sorri, — disse o menino.
— Pois é, confirmou Crigsby.
— Contam que é pintada sobre uma tela.
— Verdade. E é por isso que não me parece ser o original. A pintura original, pelo que sei, foi feita em madeira há muito tempo atrás.
— Dizem que ela tem quatrocentos anos.
— Talvez mais. Ninguém sabe exatamente em que ano nós estamos, para falar a verdade.
— Estamos em 2061!
— Isso é o que eles dizem, menino. Um bando de mentirosos. Pode ser 3000 ou 5000, quem vai saber. Durante um bom tempo as coisas andaram numa confusão tremenda. Só sobraram alguns restos e pedaços.
A fila caminhava devagar pelas pedras frias da rua.
— Falta muito ainda? perguntou Tom.
— Mais alguns minutos. Ela está cercada com uma corda de veludo, presa em qua-tro estacas, para impedir as pessoas de se aproximarem. Agora, presta atenção ao que eu te vou dizer. Nada de pedras! Eles não deixam atirar pedras.
— Entendi.
À medida que o Sol subia no céu, os homens despiam os seus casacos rotos e tiravam os chapéus ensebados.
— Por que estamos na fila? perguntou finalmente Tom. Por que vamos cuspir nela?
Crigsby não olhou para o menino; parecia em vez disso observar a altura do Sol.
— Olha, Tom, há muitas razões! Procurou distraidamente um cigarro que já não existia num bolso que havia desaparecido há muito tempo. Tom tinha visto este gesto um milhão de vezes.
 — É uma espécie de ódio, Tom. Ódio por tudo que é do passado. Sabes como foi que viemos parar neste estado? As cidades em ruínas, as estradas destruídas pelas bombas, metade das plantações de trigo brilhando de radioactividade. Não, concordas comigo que tudo virou de pernas para o ar?
— É verdade.
— Pois essa é a razão. A gente acaba odiando tudo o que nos arruinou e destruiu. Assim é a natureza humana. Talvez seja irracional, mas é assim.
— No fundo não sobrou quase nada que a gente não odeie, disse Tom.
— Exacto! Especialmente todos aqueles malditos políticos que governavam o mundo antigamente! É por causa deles que hoje morremos de frio, moramos em cavernas, que não temos nada para fumar, para beber, que não temos nada, a não ser as nossas festas, percebes, Tom, as nossas festas…
Tom lembrou-se das festas dos últimos anos. No ano em que tinham rasgado e queimado todos os livros na praça, quando o povo bebeu até se fartar. Depois a festa da ciência, há um mês atrás, quando levaram para a praça o último automóvel que sobrou. Sortearam uma rifa e o ganhador pode martelar à vontade a lataria do carro. Passava do meio-dia. O mau cheiro da cidade destruída aumentava com o calor. Criaturas assexuadas engatinhavam pelo meio dos prédios demolidos.
— Será que ela nunca mais vai voltar, rapaz?
— O quê? A civilização? Ninguém mais quer saber disso. Eu pelo menos não quero!
— Pois olha, não era tudo tão ruim assim, comentou alguém na fila. Havia algumas coisas boas.
— Não adianta lamentar-se agora! — exclamou Crigsby. Nem isso dá!
— Ah, — insistiu o outro — acabará por aparecer alguém, um dia, que vai corrigir tudo. Alguém com imaginação, lembrem-se das minhas palavras, alguém com coração…
— Não. Não vai ­ cortou Crigsby.
— Pois eu digo que sim. Alguém que gostará de coisas bonitas! E que nos dará novamente uma civilização simplificada onde viveremos em paz!
— A primeira coisa que acontecerá vai ser a guerra!
— Talvez não, desta vez.
— Finalmente, chegaram à praça da cidade. Um homem a cavalo, vindo aparentemente de muito longe, entrou a correr. Segurava um papel na mão. No meio da praça, exposto a todos os olhares, havia o espaço cercado pela corda. Tom, Crigsby e os outros faziam provisões de saliva, enquanto avançavam lentamente, empurrados pelos que vinham atrás.
— É nossa vez, Tom! Vamos correr!
Quatro polícias tomavam conta dos quatro cantos do quadrado delimitado pela corda, quatro homens que tinham no pulso uma cordinha amarela, símbolo da autoridade. Estavam ali para impedir que o povo atirasse pedras.
Tom parou diante do quadro e contemplou-o longamente.
— O que estás à espera, Tom? Cospe em cima!
A boca do menino estava seca.
— Vamos, Tom! Despacha-te!
— Mas… — disse Tom lentamente — ela é tão bonita!
— Olha! Eu cuspo por ti!
Crigsby cuspiu e o jacto de saliva voou na luz dourada do dia. A jovem do quadro sorria para Tom e seu sorriso era sereno, misterioso.
— Ela é tão bonita, repetiu Tom.
— Anda lá, vamos, senão a polícia…
De repente houve um grande silêncio. Há um instante atrás eles gritavam com o menino porque ele não se, mexia, e agora todos olhavam atentamente para o homem a cavalo.
— Como ela se chama? — perguntou Tom sem afastar os olhos do quadro.
— A mulher? Acho que é Mona Lisa. Isso mesmo, Mona Lisa.
— Atenção! — gritou o homem montado no cavalo. — Por ordem do governador, hoje, ao meio-dia em ponto, o quadro exposto nesta praça será entregue ao povo, para que todos possam participar de sua destruição.
Tom não teve tempo para gritar. Imediatamente a multidão, com berros e empurrões, abriu caminho em direção ao quadro. Ouviu-se o ruído de pano rasgado. A polícia fugiu. A multidão arrancava os pedaços do quadro como os abutres famintos a atacar as carcaças. Empurrado por um movimento mais brutal, Tom foi atirado para junto do quadro destruído. Imitando cegamente a atitude dos outros, estendeu a mão, agarrou um pedaço de tela e puxou. Sentiu a tela ceder, caiu ao chão, foi pisado e atirado como uma bola para fora da confusão. Coberto de sangue, com a roupa rasgada, observou as velhas que mastigavam os pedaços da tela, os homens que quebravam a moldura, pisavam, e reduziam tudo a pedaços. Somente Tom se mantinha afastado e silencioso no meio do tumulto. Olhou para sua mão, a mão que apertava contra o peito o pedacinho de tela cuidadosamente escondido.
— Olá, Tom! — gritou Crigsby.
Sem responder, Tom fugiu dali a soluçar. Seguiu o caminho esburacado pelas bombas, atravessou um pequeno ribeiro e continuou o caminho pelos campos desertos, sem olhar para trás, com o punho cerrado por baixo do casaco.
Ao entardecer, chegou ao lugarejo e continuou a andar. Às nove horas da noite entrou na fazenda em ruínas. Atrás da metade do paiol que tinha ficado em pé, ouviu a respiração regular da família adormecida: a mãe, o pai e o irmão. Entrou furtivamente pela pequena abertura e deitou-se ao comprido no chão, com a respiração ofegante.
— És tu, Tom? — perguntou a sua mãe no escuro.
— Sim, sou eu.
— Onde é que tu estavas? — berrou o pai.
— Dorme! — disse a mãe com a voz de sono.
Tom voltou a respirar normalmente. Tudo estava calmo agora. Sua mão continuava apertada contra o peito. Permaneceu nessa posição durante uma meia hora, com os olhos fechados.
Foi então que sentiu o luar frio entrando pelo telhado. O pequeno quadrado de luz movia-se no interior do paiol e passava lentamente sobre seu corpo. Só então a mão se descontraiu. Bem devagar, com todo cuidado, prestando atenção aos que dormiam ao seu lado, afastou o braço do peito. Hesitou, respirou profundamente e depois, prendendo a respiração, abriu a mão e desdobrou o minúsculo fragmento da tela pintada.
Ele tinha na mão o sorriso.
Admirou-o demoradamente sob a luz branca do céu da meia-noite, enquanto repetia consigo, lentamente, calmamente: é o sorriso, o adorável sorriso.
Uma hora depois podia vê-lo ainda, embora já tivesse dobrado cuidadosamente e escondido o fragmento da tela. Fechou os olhos e o sorriso continuou na escuridão. E continuava ali, reconfortante, quente e delicado quando ele adormeceu finalmente, e o mundo descansou — enquanto a Lua subiu e tornou a descer no céu frio da manhã.


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