20 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 325

Efemérides 20 de Novembro
Gil Brewer (1922 - 1983)
Este autor já foi incluído no CALEIDOSCÓPIO 9 (Clicar) de dia 9 de Janeiro, data da morte do autor. Como o critério adoptado logo de seguida foi considerar nas Efemérides apenas as datas de nascimento dos autores aqui fica um novo registo.
Gilbert John Brewer nasce em Canandaigua, New York EUA. Escreve 33 romances de mistério / detective entre 1951 e 1970. Sob o pseudónimo Al Conroy escreve 13 livros em parceria com o escritor Marvin Albert. Publica 50 contos sob o seu próprio nome, 11 contos sob o pseudónimo Bailey Morgan e ainda 7 contos como Eric Fitzgerald. Usa também um outro pseudónimo literário: Elaine Evans. Os personagens dos seus livros são o detective privado Lee Baron (Wild), os irmãos Sam & Tate Morgan. Gil Brewer apresenta frequentemente homens vulgares que se deixam envolver com mulheres que acabam por os corromper e destruir. No Brasil estão editados vários livros de Gil Brewer, em Portugal faz parte de algumas colectâneas de contos policiários,mas há apenas registo de um romance do autor:
1 – Ânsia De Posse (1968), Editora Íbis.


John Gardner (1926 – 2007)
John Edmund Gardner nasce em Seaton Delaval, Northumberland, Inglaterra. Publica o seu primeiro livro, The Liquidator em 1964 com que inicia a série Boysie Oakes, um homem medroso que é contratado para espião por engano. O autor é mais conhecido por ter dado continuidade, à serie James Bond criada por Fleming, com 16 livros, 2 deles adaptados ao cinema, e também pelos 3 romances, cujo protagonista é o famoso Professor Moriarty de Conan Doyle. John Gardner é um dos primeiros autores de thrillers a escrever mais de 40 livros, muitos dos quais bestsellers. Em Portugal os livros policiários do escritor têm sido editados pelas Publicações Europa-América (Clicar)



 
TEMA — FERIMENTO NO CÉREBRO
Depoimento de Sir Sidney Smith professor de Medicina Legal da Universidade de Edimburgo

É comum admitir-se que quando o cérebro é seriamente ofendido, a acção voluntária fica imediatamente suspensa e que a morte ocorre dentro de um período de tempo muito curto. Este princípio não é necessariamente correcto e, se não for contestado, pode levar a investigação por um falso rumo e até a um erro de justiça.
Imagine-se que é encontrado um corpo com um grave ferimento produzido no cérebro por uma alma de fogo e que se supõe que este ferimento produziu uma imobilidade instantânea e rapidamente fatal. Imagine-se também que o aspecto das manchas de sangue existentes no corpo e no local indicam que o corpo foi deslocado a uma considerável distância do sítio onde o ferimento foi produzido. Se se aceitar a primeira ideia de imobilização imediata, nesse caso o facto de o corpo ter sido deslocado envolve a ideia de crime. E, no entanto, pode ter-se tratado de um caso de suicídio ou de acidente e a pessoa ter andado ou ter-se arrastado desde o local do ferimento até ao sítio onde morreu. Posso ilustrar esta teoria com um dos muitos casos em que os factos não admitem dúvida.
Numa noite de Inverno um actor, já de idade, saiu da sua casa em Edimburgo e não voltou. Como os seus hábitos eram um pouco irregulares, isto não causou grande inquietação. Na manhã seguinte, às sete horas e meia tocou à campainha. A criada, ao abrir-lhe a porta, viu que ele trazia o sobretudo vestido, chapéu e o guarda-chuva pendurado no braço. Notou-lhe, também, consideráveis manchas de sangue no rosto. Alarmada, chamou a patroa. O ancião, contudo, disse:
— Não se preocupe. Vou lá acima lavar-me.
Colocou o guarda-chuva no bengaleiro do átrio, pendurou o casaco e o chapéu e subiu ao quarto de banho onde sofreu um colapso e perdeu os sentidos. A polícia foi informada do que se passava e ele foi conduzido ao hospital. Não recuperou os sentidos e morreu três horas depois sem fazer qualquer declaração.
Não havia qualquer mistério quanto à causa da morte. O homem recebera um tiro na cabeça. A bala entrara por baixo do queixo e, embora à volta do ferimento não houvesse qualquer sinal de marcas de pólvora, encontrei pólvora entre os tecidos levemente dilacerados da base da boca. Isto significava que a arma fora apoiada à pele por baixo do queixo e sugeria suicídio. A bala continuava o seu trajecto para cima, atravessara o cérebro, que ficou gravemente lesionado e saíra pelo lado esquerdo do osso frontal do crânio. O buraco de saída tinha cerca de três centímetros e meio de diâmetro e o seu tamanho e forma sugeriam que fora causado por uma bala de revólver de calibre 45 que, antes de sair, tivesse ricocheteado de lado.
Enquanto o corpo era examinado, a polícia procurava determinar os movimentos do homem desde que saíra de casa. Seguiram uma pista de sangue até a um jardim público situado do outro lado da rua. Nesse jardim, havia um abrigo e no banco deste foi encontrado um revólver de calibre 45, mais tarde identificado como pertencente ao morto; em frente ao assento havia uma grande poça de sangue. No tecto do abrigo, mesmo por cima do assento foi descoberto um orifício produzido por uma bala rodeado por fragmentos de cérebro e de osso. Por conseguinte, descobriu-se o local exacto dos acontecimentos. A hora certa da ocorrência foi mais difícil de determinar.
O homem saíra de casa a uma hora ignorada da noite anterior e parecia provável que tivesse passado parte dela no abrigo. Começara a nevar às seis horas da manhã e na neve distinguia-se, nitidamente, um rasto de pegadas e de manchas de sangue que ia desde o abrigo até à relva em frente, continuando num círculo de cerca de cento e sessenta e cinco metros e voltando ao abrigo. Via-se também um rasto que ia do abrigo à casa em frente. Um exame feito às manchas de sangue dentro e fora do abrigo e ao rasto na neve indicava que o ferimento devia ter sido produzido um pouco antes das seis horas. Parecia que depois de se ter alvejado a si próprio, descansara no abrigo, com a cabeça pendente para a frente, originando desse modo a poça de sangue em frente do banco. Depois andara pelo jardim e voltara para o assento, onde voltou a descansar um momento. Finalmente, às sete horas e meia regressou a casa.
Soube-se que o homem passara por consideráveis dificuldades financeiras e domésticas e estivera sob a errónea impressão de que sofria de cancro. Cartas que ele escrevera no dia anterior à tragédia indicavam a sua intenção de se suicidar. Não havia, pois, qualquer dúvida.
O ferimento produzido no cérebro era grande. Porções deste tinham saltado através do cimo da cabeça até ao tecto do abrigo. Estou absolutamente certo de que num caso destes, muitos de nós estariam prontos a dar a opinião de que o ferimento teria produzido um imediato estado de inconsciência, seguido de morte rápida. Contudo, determinou-se, sem sombra de qualquer dúvida, que o suicida, depois de disparar o tiro contra si próprio continuou vivo, durante várias horas, percorreu a pé uma considerável distância, voltou para casa, realizou actos com um certo fim e falou lógica e inteligivelmente antes de perder a consciência. Este caso constitui um exemplo impressionante do que se pode fazer depois de um grave ferimento no cérebro.
Publiquei o relato deste caso no Police Joumal, em 1943. Doze anos mais tarde foi de grande utilidade, visto que levou a comutar uma pena de morte, num caso julgado em Ceilão.



TEMA — CONTO POLICIÁRIO NACIONAL — QUEM SOU EU PARA JULGAR
De Severina Fortes
Quando o grito e o estrondo da queda se ouviram a mãe de Carla abriu a porta e espreitou para fora, dizendo aflita:
— É a tia! Caiu pela escada… Oh! Meu Deus! Débora!
Só então acorreu e olhou, dominando o receio. A tia lá estava, desmaiada, a cabeça e os ombros apoiados no patamar intermédio e, as pernas ainda nos degraus, levantadas, numa posição incrível. A empregada dos tios surgiu a seu lado, viu a gravidade da queda e prontificou-se a chamar o 115.A mãe, ajoelhada junto à sua irmã, segurava-lhe a mão livre e dava-lhe palmadinhas carinhosas, tentando que despertasse, sem o conseguir. Nada se podia fazer a Débora, nem convinha mexer-lhe.
Os vizinhos iam aparecendo, comentando por cortesia a insegurança aos degraus estreitos e gastos, decerto felizes por não terem sido eles a caírem. Carla, sem os ouvir, era incapaz de afastar a atenção dos pés erguidos. E, não lhe suportando a nudez agressiva, calçou-lhe os seus sapatos, rasos, guardando os da tia, um deles com o salto solto.
Passou depois a impacientar-se pelo atraso de socorros. Débora ainda não se mexera e um pouco de sangue escorria do nariz. Finalmente, a ambulância encostou ao passeio ao mesmo tempo que o pai de Carla chegava — mesmo a propósito para acompanhar a cunhada e a mulher ao hospital.
Chegara a vez de abrandar a própria tensão embora preocupada. Quis saber se o tio Miguel, marido de Debora, se apercebera do que se passara. A empregada dera-lhe um calmante e dormia, não havendo a certeza do que sabia.
Ainda bem. Dificilmente poderia sossegá-lo, se ela mesma não estava.
Coitada da tia!
Há cerca de dez anos fora o marido a sofrer o acidente brutal, causando-lhe a invalidez: agora era ela, quem sabe para quê.
A par das recordações, o remorso tocava-lhe a consciência por ter acalentado um rancorzinho por ela, injustamente, vendo bem, por não estar só…
Olhava ainda mais para trás e via o casal perfeito formado pelos tios — ambos belos: ele calmo e eficiente, ela alegre e confiante na vida, a seu lado. Sempre lhe parecera ser essa união mais coerente que a dos seus pais — a mãe alta e forte, o pai pequeno e magro: ele mulherengo, ela ciumenta. As cenas em casa eram terríveis, dramáticas…
Débora e Miguel, morando no mesmo andar, achavam graça, riam. Havia sido com eles que Carla e Bela (a irmã) aprenderam o ângulo divertido das zangas dos pais, e a notar como arrulhavam depois da noite dormida. Agora, sozinha e pensativa, Carla lamentava não ter entendido a tia. Que amara sempre o tio Miguel, não tinha dúvidas, rodeando-o de ternura, sem hipocrisia. O resto, o que aconteceu, não tinha nada com o amor! É que Débora ora ainda uma mulher carente, cheia de fogo interior quando o marido ficou preso à cadeira de rodas. Seria preciso ter arrefecido mais para recusar o quinhão de erotismo — negado pela doença do marido — oferecido sem escândalo, ali à mão e conveniente. Como se pode avaliar os anseios de cada um?
Como quem olha um velho retrato que se vai rasgar e deitar fora, Carla buscou no quase esquecimento a lembrança do acto equívoco entre Débora e o seu pai, entrevisto pela nesga da porta quando saía da visita ao tio, na manhã do casamento de Bela.
Ilibara o pai por se ter habituado a não tomar a sério as aventuras que o exagero da mãe lhe atribuía; e ao conhecer o segredo, bem guardado, culpou a tia pela falta de escrúpulos no desrespeito ao tio Miguel. E daí o rancor!
A mãe nunca desconfiou, jamais alguém falou disso, e Carla não contou a ninguém. Pobre Débora! Não chegou viva ao hospital.
Depois do funeral precisou de ir à repartição e só voltou a casa à tarde. A mãe procurava não chorar e o pai estava pálido, enfiado.
Como estaria o tio? Sabia da queda de Débora e da hospitalização — nada mais se lhe tinha dito.
Apanhou os sapatos da tia e foi ter com ele. Encontrou-o de olhos fechados no lugar do costume de frente para a rua, na saleta. Emagrecera ou mirrara? — e havia rugas rio seu rosto emaciado.
Beijou-o ao de leve na testa e sentou-se no banquinho, conservando os sapatos na mão.
O tio Miguel perdera a voz, mal ouvia. Respondia e fazia pedidos por acenos e rabiscos feitos com a mão esquerda, por ter ficado com movimento nesse braço, embora diminuído. Passados instantes, quando abriu os olhos, Carla perguntou-lhe se precisava de alguma coisa.
Mas Miguel só tinha olhos para os sapatos de Débora, fixando-os intensamente, sem mostrar ter ligado importância ao cuidado da sobrinha. Atenta ao que lhe prendia a atenção, sentiu-se impelida a indicar o salto que pendia, julgando ser esse o interesse. Provavelmente teria sido a causa da queda que provocara a morte…
Em seguida, sem saber porquê, ou por aquele instinto que nos leva a remediar o que se desarranja, apoiou o salto no seu lugar no sapato, tentando encaixar os pregos nos furos correspondentes, para não ficar caído. Só restava um prego! Os outros tinham sido voltados e batidos desajeitadamente.
Admirada, não pôde deixar de pensar: como foi que isto aconteceu? para depois os poisar no chão, a seu lado, sorrindo para o tio a procurar atenuar-lhe os pensamentos dolorosos que lhe transtornavam a feição.
Respeitando-lhe a dor, tomou-lhe as mãos (ainda belas!), como tanta vez fazia para o animar, apreciando os dedos esguios, desviando a vista do seu desamparo. Foi assim que reparou no dedo pisado, com a unha quase toda negra.
Como foi que isto aconteceu? Perguntou-se de novo sem notar que usara as mesmas palavras, encarando-o enquanto tocava delicadamente no polegar dorido da mão direita.
Miguel tentou, com desespero, encobrir, o dedo machucado, começando a chorar. As lágrimas corriam pela face tensa, livremente, sem procurar suster os soluços.
Comovida com o seu pranto, Carla limpou-lho suavemente, percebendo como a força do amor pela mulher acabava de abafar a raiva acumulada, vendo aparecer, quase a medo, a resposta às perguntas de há pouco.
Mirando-a com curiosidade retomou entre as suas a mão doente, a que não mexia; que, no entanto, pode prender o sapato para o salto ser arrancado, e retê-lo, a fim de os pregos poderem ser batidos — por isso o dedo ficara sujeito a apanhar com a peça que servira para bater, por falta de suporte capaz.
O que a vida faz das pessoas! Sem falar, deixou-o chorar atá querer, imaginando o que teria visto ou pressentido — o sofrimento calado e impotente, o ambicionado desejo de desforço, os planos alucinados de vingança, afinal não querida verdadeiramente.
Por fim as lágrimas secaram. Miguel ficou desoprimido, entregue à sua fraqueza e solidão, de olhos baixos e envergonhado por ter sido descoberto o seu intento, à espera de ser acusado de crime.
Carla dispôs-se a sair. Rodeou-lhe os ombros com um braço murmurando baixinho ao seu ouvido:
— Querido tio! Quem sou eu para julgar?
E, conscientemente, deitou os sapatos no lixo.


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