1 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 306

Efemérides 1 de Novembro
Arthur Morrison (1863 - 1945)
Arthur George Morrison nasce em Poplar, East End, Londres. Jornalista e escritor conhecido pelas novelas realistas sobre o East End de Londres e também pelos romances e as short stories policiários. O seu personagem principal é o Investigador Martin Hewitt (ver TEMA), que surge pela primeira vez em Março de 1894 no conto The Lenton Croft Robberies publicado emThe Strand Magazine. Com este protagonista, Arthur Morrison publica mais 25 contos em várias revistas da especialidade e escreve os livros: Martin Hewitt, Investigator (1894), The Chronicles Of Martin Hewitt (1895) The Adventures Of Martin Hewitt (1896) e The Red Triangle (1904).


Gerard Fairlie (1899 - 1983)
Francis Gerard Luis Fairlie nasce em Kensington, Londres. Jornalista, argumentista e escritor policiário. Publica The Man Who Laughed em 1928, escreve mais 13 romances policiários até 1958. Cria ainda as séries Mr. Malcolm (3 títulos) e Victor Caryll (6 títulos). Depois da morte do escritor Sapper — CALEIDOSCÓPIO 272 (Clicar) — Gerald Fairlie da continuidade à série Bulldog Drummond criada por aquele escritor.


TEMA — ESTUDOS DE LITERATURA POLICIÁRIA — MARTIN HEWITT, UM DOS RIVAIS DE HOLMES
Por M. Constantino
Tem sido frequentemente assinalado pelos estudiosos da matéria, que o detective é o personagem chefe, digamos o personagem principal da narrativa policiária. Os acontecimentos que constituem a intriga são rapidamente esquecidos pelos leitores; são banidos igualmente da sua memória os nomes e as características dos principais suspeitos e mesmo do eventual culpado. Em contrapartida, o detective queda-se bem vivo na recordação do público, talvez porque na maior parte dos casos a sua acção não se limita a uma centena ou duas de páginas de um livro, mas porque ressurge sucessivamente em várias obras do autor. Por outro lado, o poder de arrebatamento que flui do personagem domina o espírito do leitor, marcando fundo a sua recordação. Assim foi e continua a ser, por enquanto.
Em plena época vitoriana — a rainha vitória, que nasceu como Alexandrina Victória reinou de 1837 a 1901 — seguindo a onda de êxito de Sherlock Holmes, personagem de Conan Doyle, aparecem diversas tentativas de “rivais”, mais ou menos bem sucedidas. Assim surge Martin Hewitt pela pena de Arthur Morrison, um dos mais credíveis émulos de Sherlock Holmes.
Martin Hewitt é um detective privado, com escritório no Strand londrino, perto da estação de Charing Cross, que se apresenta como conselheiro policial dos grandes bancos e companhias de seguros, dedicando-se em especial, ao esclarecimento de roubos e burlas. É um homem corpulento, ainda que de mediana estatura, bem barbeado de trato afável. Segundo ele, o seu sistema de investigação nada tem de especial, por quanto se limita a aproveitar as faculdades mentais.
Curiosamente, a primeira série de histórias do personagem em causa, foi ilustrada por Sidney Paget, o mais consagrado intérprete de ilustrações de Holmes.



TEMA — CONTO DE MAURICE LEVEL — DIA DE TODOS OS SANTOS
De pé, com a capa de hospital que a fazia parecer ainda mais magra, a doente estava imóvel junto à cama. Tinha a cara magra e olhos azuis tão grandes que todo o seu rosto parecia iluminado: olhos dolorosos, profundos.
A cara pálida, maçãs do rosto vermelhas da febre e um sulco descendente, caminho que as lágrimas tinham traçado.
Quando o médico parou diante dela, baixou a cabeça.
— Bem, pequena da cama nº4, que é que me disseram? Quer sair?
Ela respondeu num sussurro:
— Sim, doutor.
— Isso é uma tolice. Levantou-se apenas há oito dias. Com o tempo que faz, ficará outra vez doente. Espere. É infeliz aqui? Alguém lhe fez mal?
Com o mesmo tom humilde e muito doce, ela responde:
— Não… Oh não, doutor.
— Então?
Desta vez, com um pouco mais de energia na voz, ela disse:
Eu preciso sair.
E, falando muito depressa, antecipando a pergunta continuou:
— Hoje é dia de Todos os Santos. Prometi levar flores à campa do meu amigo… Jurei… Ele só me tem a mim… Se eu não for, ninguém irá… Eu jurei…
Uma lágrima deslizou por debaixo da pálpebra. Ela limpou-a com os dedos.
Um pouco emocionado por esta dor terrível, talvez por curiosidade, talvez mecanicamente, ou para não ficar calado sem uma palavra de compaixão, o médico perguntou:
— Há muito que ele faleceu?
— Quase um ano
— Do quê? Sabe?
De repente ela pareceu mais frágil, com ombros encolhidos, mãos mais pálidas, olhos semi-cerrados e lábios trémulos, murmurou:
— Foi executado.
O médico mordeu os lábios
— Oh! Desculpe, pobre pequena. Se realmente precisa, vá… Não apanhe frio. Regresse amanhã.
… Transposto o portão do hospital, ela tremeu.

Era uma manhã melancólica de Outono. A água escorria pelas paredes. Estava tudo cinzento: o céu, as casas, as árvores despidas e o horizonte nebuloso onde as pessoas passavam depressa, fugindo da tristeza das ruas.
Como tinha ficado doente em pleno Verão, vestia uma saia muito fina e um corpete de linho claro. A fita amarrotada à volta do pescoço esquelético dava-lhe um ar ainda mais lamentável. Saia, fita, corpete que o sol talvez fizesse sorrir e que pareciam chorar neste dia hesitante.

Começou a caminhar com um passo indeciso, parando a cada minuto, ofegante e com a cabeça pesada. As pessoas com quem se cruzava, voltavam-se por segundos. Ela parecia hesitar, pronta a falar, depois, medrosa, olhava para a direita e para a esquerda e retomava o seu caminho. Atravessou assim metade de Paris. No cais, ficava imóvel, a comtemplar o rio pesado e lamacento. Um frio intenso penetrou-lhe o corpo e temendo não conseguir avançar, prosseguiu o seu caminho.
Atravessada a Praça Maubert e Avenida des Golbelins, sentia-se quase em casa, no seu bairro. Depressa encontrou figuras conhecidas, pessoas que ao vê-la passar diziam:
— Mas… não é a amante de Vandat? Como ela mudou!
— Qual Vandat?
— Vandat, o assa…
Ela apressou o passo e crispou as mãos sobre o rosto, para não ouvir o final da palavra.
O dia começava a acabar quando ela chegou ao hotel mal afamado onde residia antes de ficar doente. Entrou. Chulos e meninas jogavam às cartas no cafezinho do rés-do-chão. Quando a viram gritaram:
— Olha! Está aqui “Meus Olhos” (chamavam-lhe assim antigamente. Queres tomar alguma coisa, “Meus Olhos”? Senta-te…
Um pouco emocionada, sufocada pelo fumo espesso e acre que pairava, de repente ficou muito corada, respondeu:
— Não… não tenho tempo… A patroa está?
— Sim. Estou aqui.
Sorriu, timidamente.
Madame, vinha buscar umas roupas. Tenho frio com estas…
— Levamos as tuas tralhas para o sótão, não sei bem onde estão. Enquanto as procuram, fica aqui para te aqueceres.
— Não, não tenho tempo… eu já volto.
Dirigiu-se para a porta. Um homem achincalhou-a:
— Já a trabalhar. Não perdes tempo.
Saiu, e o frio parecia ainda mais cortante, depois de ter permanecido naquela atmosfera demasiado quente.
No passeio as pessoas passavam, ramos e coroas de flores nos braços; pessoas de luto em marcha lenta; outras endomingadas, também com ramos de flores, mas conversando e rindo, a caminho do cemitério mas sem grande emoção, como se cumprissem um dever, onde há tanto de hábito como de sentimento. E nada como ver estes homens, mulheres e crianças para poder adivinhar quem estava perto do luto e com a dor presente.
Ao longo da calçada, estavam parados pequenos carrinhos flores. Crisântemos inclinavam-se, sobre as rosas: de um lado e do outro as mimosas deixavam cair sobre as violetas pólen dourado. Mais perto do cemitério, diante dos marmoristas, potes com flores nas prateleiras, tristes, idênticos, evónimos de folhagem sombria, mais adiante as sempre-vivas e coroas grandes, orvalhadas.
Ela observava tudo aquilo com um olhar de inveja, sonhador.
— Se eu pudesse levar-lhe… a ele! … no fundo do cemitério, num quadrado triste e deserto, onde ele dorme sem uma cruz, sem uma palavra!
— Assassino!
Não pesava muito nisso. Era o homem adorado, o amante, que estava lá. O amante que tivera o corpo dela, toda a sua alma… Num momento de loucura, ele matara… Não pagara a sua terrível dívida?
Desde o dia em que o levaram, ela jurara a si mesma, não ser de mais ninguém. Nunca mais. Jurara abandonar a vida de mulher perdida, jurara trabalhar, tornar-se honesta, para ser esquecida. Não foi o suficiente, par que ela pudesse lembrar-se.
Continuava a olhar para as flores. O vendedor disse-lhe:
— Um ramo? Crisântemos? Rosas?
Vai-se embora sem responder, porque não tem nem um centavo.
Então uma ideia fixa-se na sua cabeça: “Flores. Preciso de flores… tenho de lhe dar… Jurei.”
Cansada e com fome, sem pensar nisso. Apenas pensava na terra nua, lá em baixo, na terra que umas flores animariam durante algumas horas… Sim, mas e o dinheiro! Naturalmente teve uma ideia que nem sequer roçou o pudor que retornara depois de feito o voto de honestidade.
Como um bom artesão que regressa à oficina para recuperar as ferramentas e retomar as suas funções, com um gesto mecânico, compôs o cabelo, esticou o bolero e começou a andar pelas ruas, onde tantas vezes vagueava à noite para fazer o trabalho, sem alegria nem tristeza, enquanto o seu homem jogava no cabaré.
Caminhava, com o olhar à espreita, arqueando o corpo, provocante, sibilando aos homens, entre dentes:
— Psstt! … Ouve…
Mas todos, ao vê-la tão pálida, apressavam o passo. Porque o rosto dela já não estava realmente feito para o prazer, nem o corpo esguio, nem o busto com os ombros salientes debaixo da roupa demasiado clara.
Antigamente, quando era bonita, quando ela era “Meus Olhos”, não ficava muito tempo parada, mas agora…
— Psstt! … Ouve… Psstt! … loiro bonito..
Todos passavam sem sequer voltar a cabeça. O dia acabava mais depressa. Enquanto percorria o passeio pensava:
— Vai fechar antes de conseguir comprar as flores…
Um nevoeiro fino caia, impalpável, silencioso e as formas inundavam-se de sombras. No rosto emagrecido só se viam os olhos, os seus olhos dolorosos e febris.
Na esquina de uma rua deserta caminhava um homem, gola do sobretudo levantada, mãos nos bolsos. Ela tocou-o ao de leve, e colocando toda a força de desejo murmurou:
— Escuta… vem comigo…
Ela olhou-a por um momento. Ela aproximou-se, mergulhando o seu olhar no olhar dele, um olhar infinito, que já não era o olhar promissor de menina.
Ele pegou-lhe no braço. Então ela entrou no hotel mal afamado onde estivera à pouco. Rapidamente, ela pediu entreabrindo a porta:
— A minha chave… uma vela…
A patroa sussurrou-lhe docemente:
— No 23, segundo andar, terceira porta.
Ela disse, da mesma forma:
— Eu sei…
Os homens e as meninas inclinaram-se, e, enquanto subia a escada ela ouvia gracejos e risos.

Quando desceu a noite tinha quase já chegado. Atirou um rápido “Adeus” ao seu companheiro de um momento e começou a correr. Parou diante do vendedor de flores, agarrou um ramo ao acaso e lançou as duas moedas claras que tilintavam na mão.
Depressa, depressa, correu até ao cemitério. As pessoas saiam em grupos. Tremia:
— Desde que chegue a tempo! …
Na entrada, o porteiro preveniu:
— Demasiado tarde. Está fechado.
Suplicou:
— Oh! Senhor! O tempo de entrar e sair… dois segundos…
— Então, vá lá, mas depressa.
Correu pelas alamedas, tropeçando nas pedras. O caminho era longo. Mal podia respirar, com uma sensação de peito a arder. No Muro dos Executados parou, caiu de joelhos e com as flores espalhadas pelo chão. Grandes lágrimas escorriam-lhe pela face, pelas palmas das mãos com que escondia o rosto. Tenta rezar, mas já não sabe orações, e com os lábios na terra, chora:
— Meu querido! Meu querido! …
Depois, cansada, tão cansada, já não sentia as pernas, no entanto, com um bocadinho de alegria no coração, levantou-se e foi-se embora.
Sorriu ao guarda:
— Como vê, não me demorei.
Agora que visitara o seu homem, tinha consciência do cansaço e do frio. Arrastou-se para tossir, apoiando-se contra a parede.
Chegada ao hotel, abriu a porta. Na sala, demasiado quente, enfumarada, as meninas e os chulos continuavam a jogar. Ficou imóvel à entrada e disse “olá”.
As conversas morreram. Fez um esforço para sorrir.
No fundo da sala, uma mulher recostou-se na cadeira e gritou:
— Diz lá, “Meus Olhos” fizeste uma bela conquista, na tua rentrée!
Ela encolheu os ombros. A outra continuou:
— Não sabes quem é?
— Não…
— Pois vem! É o Bingue!
“Meus Olhos” balbuciou:
— Que é que estás a dizer? O…
E a mulher, emborcando um gole, e continuando a jogar, atirou-lhe:
— O Bingue… O carrasco, pois quê!

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