5 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 310

Efemérides 5 de Novembro
Dorothy Gardiner (1894 – 1979)
Nasce em Nápoles, Itália, mas cresce em Boulder, Colorado, EUA. Escritora e secretária executiva dos Mystery Writers of America onde desempenha um papel chave no desenvolvimento desta importante organização. Escreve 6 livros policiários, a maioria passados no Colorado: os personagens principais são: Sheriff Moss Magill e Mr. Watson. Dorothy Gardiner é uma das autoras de Raymond Chandler Speaking (1962) uma colectânea póstuma de cartas, excertos de textos, ensaios e uma novela inacabada do escritor.


TEMA — ESTUDOS DE PSICOLOGIA CRIMINAL — OBSESSÃO DE SANGUE
Pensassem todos como o personagem de Machado de Assis nas “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, e certamente o homicídio, ao menos por motivo de honra, não preocuparia juristas e carcereiros: — “esta injúria merecia ser lavada em sangue, se o sangue lavasse alguma coisa neste mundo.” O homem, herdeiro dos instintos de seus ancestrais, que se confundiam com as feras na ferocidade, pensa geralmente de modo diverso, e por isso é para o sangue que ele apela a cada passo, matando ou tentando matar por motivos que muitas vezes chocam pela futilidade. Mata-se por ódio frio e calculado. Mata-se por vingança. Mata-se por egoísmo. Mata-se por ambição. Mata-se por impulso cego e desordenado. Mata-se até por medo e por amor. Mata-se sem motivo algum…
E por isso, o capítulo do homicídio é o mais vasto e o que mais se renova no Direito Penal e na literatura.
O poeta paraíbano, Augusto dos Anjos escreve estes versos, que parecem um desafio à filosofia acomodatícia de Braz Cubas:

É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
De subir na ordem cósmica, descendo
À irracionalidade primitiva…

O psiquiatra Legrain, prefaciando a obra de Vladoff — L'homicide en Pathologie Mentale, abre o seu trabalho com esta afirmativa: “Um estudo sintético do homicídio chega a seu tempo. Cada fase da vida social tem suas síndromes determinantes que lhe ficam como uma luva. Penso que se poderá dizer sem risco de desmentido que a época que estamos vivendo é uma época em que se mata.”
Perguntamos: — somente a nossa época?
Positivamente, não.
Mas, não resta dúvida de que, em desacordo com a Cultura generalizada em todo o mundo, o lobo humano não se mostra mais dócil aos sentimentos de cordura e de respeito pela vida de seus semelhantes. “Alguma coisa de agudo vem servir de excitante nas camadas inferiores de nossa vida psíquica, e as paixões cegas, testemunhas retardadas das necessidades materiais do ser, se desencadeiam, enquanto por toda a parte o esforço social tende a aplainar o caminho”. Entre essas “paixões cegas” e os interesses sociais representados pela vida humana colocam-se as leis e a justiça.
Afinal, o que é o homicídio?
Pondo de parte as definições jurídicas, diremos que é o sacrifício de uma vida humana pela mão do próprio homem, fora daqueles casos que a mesma lei justifica, excepcionalmente, quer quando o próprio Estado aplica a pena capital, quer quando no dilema de perderem-se duas vidas pode o médico sacrificar uma em proveito da outra. Um impulso, um gesto, uma vontade, uma acção, uma omissão, basta para que se acrescente mais um ao rol das vítimas ou dos assassinos. Para os psiquiatras o homicídio resulta de uma reacção anormal. Assim, para Vladoff, o homicídio, ou a tentativa de homicídio, “é uma das variedades de reacções mórbidas, voluntárias ou automáticas, dos indivíduos atingidos por afecções mentais.”
As leis, até agora, têm considerado o crime como um fenómeno jurídico. Entretanto, juristas e psicólogos dão-se as mãos, forcando o advento de leis novas, em que predomina, ao lado da defesa social, o conceito da perigosidade como base dos sistemas repressivos.
A literatura, chapa fotográfica viva do homem em função do meio social, fixa o delito tal qual ele é, e por isso o seu estudo resulta de grande interesse para o próprio Direito Criminal.
Segundo Christovam de Camargo, nas suas “Notas de Ontem e de Hoje”, estamos:
“no reinado dos nervos, da pressa, do atarantamento, das resoluções súbitas, dos gestos bruscos, da obediência cega ao subconsciente.”
E o crime tem nesse ambiente de força, descrúpulo e descontrole do sentimento e do carácter, o melhor caldo de cultura para sua proliferação.

Por isso a literatura brasileira representa um campo excelente e pouco trilhado para estudo das características do crime no país, em especial, as do homicídio.
Em “Morro do Moinho”, de Martins Alves, temos simultaneamente dois crimes de sangue, cada um deles estereotipado de forma diferente: no primeiro caso, um disparo ocasional, determinado por circunstâncias para as quais não concorreu a autora; no outro, um homicídio que decorre de uma obsessão alcoólica, e a que se segue o desfecho brutal de um suicídio.
Chicute, a figura central do romance, é um tipo acabado de degenerado. As suas atitudes de ódio e de provocação para com o jovem de quem tem um ciúme feroz em relação a uma professora da localidade, correspondem nele, a uma ideia fixa que sucede ou é contemporânea de seus delírios alcoólicos. E o autor põe-nos em contacto com os protagonistas e os cenários da tragédia cearense nas páginas que se seguem:

Uma voz pastosa e fria vibrou na porta da rua:
— Bom dia!
Janú levou um susto. Liquinha quase caiu da cadeira. Recostado ao portal, todo debochado, um riso irónico esquecido no canto da boca, Chicute fitava-os de revés. — Cadê o Mestre? E antes de receber a resposta — Diga a ele que vim ver a encomenda.
Liquinha, profundamente agitada, sem dar palavras, ergueu-se e entrou.
Acanalhando o sorriso, agitando a cabeça num gesto zombeteiro, Chicute falou:
— Quando é que casa com a professora?
Janú corou, ajeitou-se e cresceu na cadeira.
— Chicute, deixemos de liberdade, cuide da sua vida que faz melhor negócio.
— Quá — quá — quá — quá. O' brabeza da peste! Tarará pensando que eu rezei pr'a a Mestra lhe enguiar?
— Moço, faça o obséquio de não falar mais comigo.
— E eu faço conta disso, -porqueira! Tu pr'a mim não vale o que o gato enterra.
E entre uma série rasteira de insultos, Chicute soltou uma palavra que fez Janu levantar-se.
Diante daquela reação impetuosa, Chicute repeliu-o a riso:
— Que é que você tá pensando do mundo que não diz?
Caracteriza-se, aí, a provocação. Chicute saca da manga do casaco um beiço de pneumático, quer dizer — um chicote, transpõe a soleira da casa para vergastar o desafeto. Mestre José, porém, surge do corredor exclamando:
— Cabra ordinário, você não é besta, não! Então você tem o topete de querer desrespeitar a minha casa? Por ali! Suma-se.
Liquinha, que tinha vindo com o pai, entrou, novamente, de carreira. Janú não tirava os olhos de cima de Chicute, que, tresandando a cachaça, apertava o pneu na mão direita e assestava em mestre José a fisionomia bestial, onde os olhos se moviam estrangulados nas órbitas e os lábios mostravam, nas comissuras, as manchas amareladas dos caninos salientes.
— P'ra fora! — rugiu Mestre José, dando um passo em frente.
Chicute, arrastando a perna para trás, ajeitou o pneu. Houve um minuto de indecisão. Depois, um estampido violento sacudiu o ar ambiente.
Chicute contraiu-se todo, soltou o pneu, jogou as mãos sobre o ventre, quis andar, mas as pernas vergaram, tremeram e abateu-se pesadamente, abafando um gemido.
Mestre José e Janú voltaram-se. De pé, na porta de dentro, desfigurada, rígida, Liquinha apontava uma arma.

É a reação inesperada. Legítima defesa. Medo. Brio ofendido. Tudo, porém, obra de um impulso subitâneo. Liquinha, moça amável e terna, incapaz de um desforço violento, faz-se de repente homicida dentro de seu lar, onde minutos antes vivia descuidada e feliz.

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