14 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 319

Efemérides 14 de Novembro
Frederick Irving Anderson (1877-1947)
Frederick Irving Anderson nasce em Aurora, Illinois, EUA. Jornalista e escritor policiário, mais conhecido pela sua prolífica ficção de contos, a maioria dispersos em publicações da especialidade, os pulp magazines, como o The Saturday Evening Post.
Escreve apenas três livros: The Adventures Of The Infallible Godahl (1914), The Notorious Sophie Lang (1925) e The Book of Murder (1930).



TEMA — CONTO — O SUBDELEGADO PARR E OLIVER ARMISTON CONTRA SOPHIE LANG
De Frederick Anderson
O autor tece nos seus contos as mais intrincadas e engenhosas divagações. Foi um criador de personagens nas quais releva o subdelegado Parr, caçador de criminosos e Oliver Armiston, o escritor “extinto”. A eles se junta a notória e singular Sophie Lang — ladra e embusteira inacessível. Conseguimos encontrar um único conto sobre Sophie — publicado no McClure’s Magazine em 1921 — onde o trio referido se confronta.
Aqui o apresentamos para vosso e nosso prazer, num arranjo de M. Constantino.

O Nº142, no lado sul da rua, era uma residência de pórtico alto e caves inglesas, uma sobrevivência daquela cómoda e bastante recente época de Van Bibber, em que Manhattan ainda era uma ilha nativa e seus habitantes dispunham de espaço à vontade e conservavam hábitos de vida abundante.
Era ocupado pela viúva de Amos P. Huntingdon. O falecido, um homenzinho insignificante e inofensivo, apenas uma vez alcançara a notoriedade jornalística, ao voar acidentalmente pelos ares quando procurava fabricar borracha sintética. A viúva era uma figurinha de porcelana de Dresden; como prova de sua categoria social, costumava guiar uma elegante caleça cor de ameixa, puxada por uma ainda mais elegante parelha de cavalos tosados, e de boleia, quando ela guiava, iam um cocheiro e um lacaio de libré cor de ameixa, dois homens severos e de meia-idade, de barba rapada.
Aquela parte da cidade, antigamente aristocrática, iniciara a sua migração de uma rua lateral.
Do lado oposto da rua, no Nº143, havia uma oficina que em fuligem, barulho e cheiro, não diferia em nada de suas vizinhas. Uma pessoa observadora poderia ter notado, com alguma curiosidade, que todos os seus mecânicos eram jovens de seis pés de altura e cento e oitenta libras de peso. Sem que se soubesse ou suspeitasse, o Nº 143 pertencia à polícia; era uma das armadilhas cuidadosamente dissimuladas que esse arquidetective, o Subdelegado Parr, de Centre Street, colocara em lugares surpreendentes, em toda a extensão da urbe.
Às dez horas de uma manhã do princípio de inverno, um carro de algum valor deteve-se com uma sacudidela, suspirou e morreu diante do lancil do Nº143. O chofer, um homem de seis pés de altura e, digamos, 185 libras de peso, desceu, levantou o capot e ficou a olhar o motor com o ar desnorteado.
Um mecânico de cabelos cor de fogo, seis pés de altura e cento e oitenta e cinco libras de peso, saiu da oficina, mostrou um interesse cheio de simpatia e enfiou a cabeça debaixo do capot.
— O Chefe quer um relatório sobre o Nº142 — disse o chofer, curvando-se e falando ao ouvido do mecânico.
O mecânico recomeçou a mexer na máquina, ao mesmo tempo que estudava com o canto do olho aquele respeitável domicílio fronteiro, o Nº142, vagamente conjecturando que a volta do catavento de Center Street viera pôr a viúva de porcelana de Dresden sob a vigilância policial.
Uma hora depois, Mrs. Amos Huntingdon desceu os degraus da entrada e entrou na sua caleça. Tinha pés pequenos, encaixados em elegantes botinas, que uma moderna saia curta mostrava; a tez era muito branca, os olhos azuis, e os cabelos daquele peculiar tom de mogno que só se conserva por meio de constantes cuidados; vestia luto carregado, com correção perfeita.
O lacaio envolveu-a em mantas de pele de toupeira e trepou para a boleia; a vistosa parelha pôs-se em movimento com perfeita cadência. O mecânico de cabelos cor de fogo pareceu chegar à conclusão de que era preciso experimentar o carro. Pôs a funcionar o hipocondríaco motor e seguiu no rumo da caleça cor de ameixa.
Em Columbus Circle, esse eterno remoinho do tráfego, o sinal fechou-se contra a carruagem cor de ameixa e os cavalos pararam, logo rodeados de todos os lados por motores a roncar. A atenção de um homem de chapéu côco castanho, que andava no passeio, foi despertada pelo condutor do automóvel parado logo atrás da caleça. O homem deteve-se e, cruzando despreocupadamente o olhar com o mecânico tirou o chapéu côco — embora o tempo estivesse gélido — e enxugou a testa. O mecânico respondeu assoando-se com um lenço vermelho.
A massa de veículos começou a mover-se. Mas o mecânico de cabelos cor de fogo tinha perdido o interesse pela caleça. Virou para leste, e em dez minutos estava de volta ao Nº143.
— Vem alguém a seguir-nos? — perguntou a viúva .
— Não, senhora — respondeu William, o lacaio, falando com o canto da boca, sem -mover os lábios, ao receptor colocado junto de seu ombro. — Havia um — acrescentou, encorajadoramente. Era o mecânico do outro lado da rua, mas virou numa esquina e desapareceu.
Mrs. Huntingdon não se deixou iludir por uma sensação de segurança. Durante doze anos fora extremamente circunspecta. Nesses doze anos, nunca saíra de carro sem perguntar, mais cedo ou mais tarde: “Vem alguém a seguir-nos William?”.
Naquela tarde, dois diligentes jovens, trazendo pesados instrumentos, bateram à porta do Nº142 para examinar o contador da luz. No dia seguinte, operários da companhia telefónica pediram licença para subir ao telhado pelo interior da casa a fim de desenredar os fios. Um inspector do departamento de águas veio examinar as torneiras e num dado momento, quando se inclinava para fora de uma janela da sala de visitas, perguntou polidamente por cima do ombro se Mrs. Huntingdon queria fazer o favor de lhe passar a sua lupa; a viúva acedeu com toda a gentileza, agarrando distraidamente o objecto com a mão em que segurava o seu lenço de renda.
Ao partir, o homem ofereceu-lhe a caneta para assinar o talão, mas não percebendo o gesto, a mulher usou a sua própria caneta. Apareceram outros visitantes. Ao fim de uma semana, estava nas mãos de Mr. Parr um relatório completo sobre o Nº142.
Tinham falhado apenas em um ponto: não conseguiram levar nada com as marcas dos róseos dedos da viúva.
Mais tarde, ao examinar-se a lupa em Center Street:, encontrou-se apenas uma indistinta reprodução do lenço de rendas da viúva.
— Eu sei que é moda atribuir a nós, polícia, o papel de cabeças duras no moderno drama detectivesco — disse o Subdelegado Parr, acomodando-se em sua favorita poltrona, junto à escrivaninha de Oliver Armiston. — Um polícia estúpido faz sempre sucesso!
Lançou um olhar maligno a Oliver, que alisando com os dedos a sua madeixa de cabelos grisalhos, ergueu os olhos mas não se dignou responder.
Oliver Armiston, o escritor extinto, era mais uma fase da espantosa versatilidade do Subdelegado Parr. Em geral, Parr servia-se da lógica, não da intuição. Graças à sua longa experiência dos hábitos das criaturas a que dava caça, preparava as suas armadilhas, o caçador selvagem, retirava para ir consultar o seu curandeiro. Era Armiston que ocupava essa posição. Armiston fora um escritor de histórias sensacionais e impressionantes. Um mistério insolúvel ou um desfecho indeciso despertava as faculdades adormecidas do extinto escritor, assim como o soar de um gongo reanima um velho cavalo de carro de bombeiros. Parr preparava o palco para Oliver, com personagens e cenários; levantava a cortina sobre uma trama imobilizada, e em tom persuasivo convidava Armiston a meter mãos à obra. Às vezes os resultados tinham sido espantosos.
— A falar verdade — observou confidencialmente Parr — nós não descobrimos o crime. É o crime que se descobre a si mesmo.
— É uma pena que os perpetradores não sejam igualmente amáveis — disse Oliver.
— Mas, meu caro, eles são amáveis. É justamente aí que está o ponto — acudiu Parr, expansivo.
— Eles desmascaram-se a si mesmos, Parr?
— Oh, sim. Inevitavelmente. Isto é… eventualmente. Sem dúvida, é preciso levar em conta o factor tempo. Nós limitamo-nos a esperar Todo cão tem as suas pulgas — disse Parr, inclinando solenemente a cabeça para o gordo Buda, que estava a um canto do gabinete. — Todo o escroque tem o seu delator. Não sei de nenhum caso em que isto falhasse, Oliver.
— E quanto ao lobo solitário, o escroque sem amigos?
Parr fungou desdenhosamente.
— É fanfarrão — respondeu com teimosia. — Delata a si próprio, A si próprio ou a outro, no fim!
Bateu ferozmente no peito.
— Permita-me um exemplo — continuou em tom sério — Nunca ouviu falar em Sophie Lang? Desconfio que não. Ela não é do seu tempo.
Armiston abanou a cabeça o nome não significava nada para ele.
— Nos velhos tempos — disse — costumávamos confiar o caso Sophie Lang aos nossos rapazes mais prometedores. Era como mandar um aprendiz de mecânico procurar uma chave inglesa para canhotos.
— Ah, ah! Uma escroque legendária! Mas isso é formidável! — exclamou Armiston, estalando os dedos.
— Sim, legendária — assentiu o subdelegado. — Nunca a vimos. Nós conhecíamos apenas pelos seus trabalhos. Quando levávamos uma rasteira, dizíamos: “foi Sophie”. Quando era dado algum golpe engenhoso, dizíamos: “foi Sophie”. Costumávamos dizer que Sophie assinava os seus trabalhos mais sérios, como qualquer outro artista. Bem — disse Parr, enfiando as mãos nos bolsos e espreguiçando-se — finalmente nós arquivámos Sophie como um “trabalho inacabado”.
Fixou os olhinhos ferozes em Armiston e esperou. Armiston esperou também.
— Sophie apareceu — disse Parr em voz baixa.
— Com um par. de algemas! exclamou Armiston.
— Ainda não… mas em breve.
— Uma delação?
— Certamente. Que mais poderia ser?
— Mas quem… quem foi o delator?
Parr assumiu uma expressão ofendida.
— Quem — repetiu. Como diabo hei-de saber? Que me importa? Uma carta anónima. Encarreguei-me do caso Sophie Lang na minha velhice. Percebe o que isso tem de engraçado, Oliver? Mas desta vez ela não é um animal inexistente, Sophie…
Fez uma pausa para maior efeito.
— Sophie é Mrs. Huntingdon — concluiu.
— A viúva… a viúva do seguro contestado?
Parr fez que sim, Com os olhos cintilantes.
Armiston achou irritante a satisfação de Parr.
— Há alguma coisa que sugira a ideia de Sophie? — perguntou.
— Há aquele quarto de milhão de dólares — respondeu Parr, com uma risadinha.
— Deixe lá os seus pés, Parr — disse Oliver sarcasticamente. Depois, com súbita inspiração: — Ela assinou o trabalho? Você diz que ela costuma fazê-lo… ou costumava.
— Não há nenhum ponto fraco nos elementos de prova dela — disse Parr.
É a assinatura habitual de Sophie. Límpida. A sua viúva retraída derrotou por duas vezes a companhia de seguros. Lançaram sobre ela a tarefa de apresentar as provas. Não foi tarefa difícil… para Sophie.
Deu uma gargalhada.
— Ela ainda não recebeu o dinheiro; estão a arranjar tempo para outro apelo. Vão tornar-se antipáticos por perseguir assim uma pobre mulher indefesa. Mulher indefesa! Essa é boa!
E o riso sacudiu o corpo de Parr.
— Investigou os antecedentes dela? — perguntou Armiston.
— Naturalmente. Todos investigaram. Antecedentes irrepreensíveis. Irrepreensíveis demais. Sophie é assim.
  Qual é o ramo dela, Parr? — perguntou Armiston, quando o outro terminou.— Qualquer um. Sophie não é muito exigente, — respondeu Parr. Acrescentou com um olhar meditativo: — Tenho na minha colecção um pisa-papéis com fios de cabelo humano … e algumas impressões digitais. Sempre desejei ter as impressões digitais de Sophie.
Levantou-se e começou a abotoar o casaco, olhando para Armiston e sorrindo.

— Vem alguém a seguir-nos?
A patética viúva sorria quase alvoroçadamente ao avisar o criado.
A fiel sentinela acrescentou que o mecânico de cabeloscor de 'fogo andava a pé, dessa vez.
— Vá devagar — ordenou a solitária mulher. — Não o obrigue a correr.
A saltitante parelha de Mrs. Huntingdon deteve-se na esquina da avenida.
Sophie alvoroçou-se. Aquilo era quase sutileza da parte da polícia. Era uma homenagem merecida; a sua dignidade assim o exigia. Riu baixinho: quase a primeira autêntica manifestação de regozijo desde a sua viuvez. Logo tornou a fechar os bonitos lábios sobre os lindos dentes.
Desde então, Mrs. Amos P. Huntingdon desapareceu gradualmente de cena. A aparência exterior continuou — as vestes, a fala, o ar dorido; mas atrás de tudo aquilo estava Sophie, observando com os olhinhos penetrantes. Por vários dias, consagrou todo o seu talento ao esforço de apanhar o mecânico de cabelos cor de fogo no acto de confiá-la aos ternos cuidados de um substituto. Sem embargo, nunca logrou perceber o momento exacto. Aquilo é que era astúcia! Então resolveu dar um dos seus golpes caracteristicamente audaciosos.
William, depois de a ter envolvido nas suas mantas de pele de toupeira, atravessou a rua e, dirigindo-se ao homem de cabelos cor de fogo, com a singular condescendência dos criados de categoria superior para com os meros artesões, informou-lhe que sua patroa desejava falar com ele.
— Como se chama? — perguntou, quando o homem se deteve respeitosamente, de chapéu na mão, à porta da sua carruagem.
— John Hanrahan, minha senhora — respondeu o homem.
— Eu tenho-o observado já há algum tempo, John, sem que você o soubesse — tornou ela gentilmente — Você vai entrar ao meu serviço — informou a viúva, com o ar grandioso de quem presta um favor inestimável. E, sem esperar resposta, comunicou a John que ele devia acompanhar William para trazer um novo automóvel, pois queria desfazer-se da parelha porque o pavimento era muito duro para os cascos dos animais.

Poucos dias depois o próprio Parr, retido por um de seus inspetores de trânsito numa esquina movimentada, teve a sombria satisfação de ver Sophie sair com o seu mecânico de cabelos cor de fogo. O novo- carro era, a seu modo, tão perfeito como o tinha sido a parelha de cavalos — um automóvel importado da França, onde sabem fazer essas coisas. Ela estava a gozar à custa do mecânico. Parr não pôde reprimir uma risadinha: aquilo era tão característico de Sophie!
A viúva de porcelana de Dresden (ou o que restava dela para consumo popular) não alterou em nada a sua rotina superficial. Em casa ou na rua, os seus olhinhos moviam-se sempre lentamente de um lado para outro, atrás da cortina de longas pestanas. Antes de decorrerem muitos dias, conseguira localizar os companheiros de matilha do seu mecânico de cabelos cor de fogo,
Alguma coisa devia estar para acontecer.
Ela examinava sorrateiramente os ferrolhos, trancas, portas, rebordos de janelas e superfícies pintadas, à procura de marcas reveladoras.
Era com a máxima delicadeza que ela lidava com o seu telefone — estavam à escuta das conversas, naturalmente. Sempre que o utilizava, ela pousava o auscultador levemente, e logo tornava a apanhá-lo para escutar durante minutos a fio.
Entretanto o nosso amigo Mr. Parr, o subdelegado de polícia, que se encarregara do caso Sophie Lang, andava sombrio e desagradável. Ao fim de quatro semanas, bocejava e mostrava-se carrancudo.
— A maldita história está parada, congelada! — resmungou uma vez, acomodando-se na sua cadeira favorita, junto à escrivaninha de Armiston.
— Parr — disse Oliver abruptamente, por cima do transmissor do telefone — você não fez nenhum esforço para encontrar o marido: Naturalmente foi ele o delator. Suponho que o pobre diabo se cansou de andar escondido.
Foi instantâneo o efeito dessas palavras, ou antes desse acto, sobre o subdelegado de polícia. Ele estendeu um, braço de gorila e arrancou o aparelho das mãos de Oliver.
— Ela estava ao telefone? — perguntou.
— Certamente — respondeu Oliver com toda a tranquilidade.
Apontou para a agulha eléctrica, que oscilava no centro do mostrador.

Enquanto o comboio de Lakewood avançava pelas pontes levadiças que passam por cima dos estuários da Baía de Newark, a viúva de porcelana de Dresden rodava por colinas e várzeas em direção a Byarn, pequeno vale, onde a airosa parelha adquiria novos cascos e pelagem de inverno em sonolento repouso. Aquela manhã, obedecendo ao impulso do momento, lembrara-se dos seus amados cavalos com uma ponta de remorso. Como de costume, era o honesto John Hanrahan, o mecânico de cabelos cor de fogo, que ia a conduzia o carro. A alguma distância atrás o homem de chapéu de côco castanho trocara o chapéu por um boné.
Depois de chegarem à quinta, ele estava na cozinha, pensando amargamente na vida, quando entrou uma petulante criadinha francesa, uma criatura rosada e roliça em estilo Chippendale, com saltos altos que lhe davam um caminhar de cãozinho de água. Ela viu a sua própria imagem num espelho e, diante dos olhos assombrados de John, começou a ensaiar aquelas mesmas artes de coqueteria que ele, em sua ignorância, sempre julgara espontâneas quando exercitadas sobre homens indefesos. Nessa altura a criaturinha deu com os olhos nele. Não se perturbou nem um pouco. Avançou a passinhos miúdos e delicados.
Cruzou afetadamente as mãos sobre o aventalzinho de rendas e fitou-o por entre as pestanas. Depois ambos cravaram os olhos no caixote da lenha e sorriram com ar satisfeito.
Uma hora mais tarde, quando a patroa mandou aprontar o carro, o mecânico de cabelos cor de fogo (criado na cidade) tinha mudado de opinião sobre os atrativos do campo.

Na parte oeste da Broadway, entre as fábricas de espaguete e as casas de ferro, um homem de uniforme mal costurado e boné com uma tira de latão e um número — o que anunciava ser um maquinista — deteve-se diante de um carcomido pórtico, e, subindo três degraus desconjuntados, tocou à suja campainha. Em resposta apareceu uma volumosa mulher siciliana.
O maquinista subiu um lance de escadas e, no primeiro patamar, depois de alguma hesitação, escolheu uma porta do lado da frente da casa e bateu com força. Escutou de boca aberta, preocupado. Depois tornou a bater, cada vez mais forte: Acima dele abriam-se e fechavam-se portas, e umas cabeças desgrenhadas espiavam-no por cima do corrimão. Mas a porta que era objeto de sua solicitude continuava impassível diante dele.
O homem voltou à rua e, a passos vivos, percorreu um quarteirão em direcção ao norte. Chegando à esquina avistou um polícia.
— Que é? — perguntou o polícia.
— Ali — disse o maquinista, fazendo parar o polícia e apontando por entre as vigas da estrutura elevada da ferrovia.
— Acho que aquele homem morreu. Há trinta e seis horas que está sentado diante daquela janela. A princípio estava a ler um jornal. Mas não nas últimas horas.
Explicou então que tinha passado e tornado a passar por aquele rosto na janela, durante os seus turnos do dia e da noite finalmente, o caso bulira-lhe com os nervos e ele fora ver o que se passava. O homem estava morto, sem a menor dúvida.
O polícia levantou a janela encardida e apitou, sem dar mais atenção ao homem sentado na cadeira. Apareceu logo outro polícia a correr. Pouco tempo depois, um carro negro encostou a traseira à porta e levou o corpo, coberto com uma manta grosseira.
Alguns moradores, aterrorizados,-declararam que o homem residia na casa havia alguns meses, e que era pobre, “oh, sim, muito pobre”. Tinha o hábito de se sentar àquela janela durante horas, às vezes durante dias. Nenhum amigo vinha visitá-lo? Quem poderia saber?
No dia seguinte um pequeno grupo fúnebre partia da “empresa”', com a limitada pompa que os pobres podem dar aos seus mortos. Havia quatro carruagens, três das quais vazias, com as cortinas fechadas, e na primeira ia o único acompanhante, um pedreiro.
Na volta, o polícia do charuto veio abrir a porta da primeira carruagem — era preciso assinar alguns papéis, para os arquivos.
Quando o pedreiro desembarcou, viu à sua frente o pórtico de um grande edifício, de torres maciças e torrinhas de tijolo vermelho. Recuou involuntariamente, mas o homem do charuto agarrara-o com firmeza pela manga do casaco. Fê-lo entrar numa ampla sala, onde se encontra um outro homem.
Era o Subdelegado Parr.
— Então, como foi? — perguntou Parr, erguendo os olhos — Sophie quase se saiu bem — Liquidar o velho trapalhão daquele modo, pondo-lhe arsénico na bebida e deixar o cadáver aos nossos cuidados, para ser entregue ao primeiro que aparecesse e o identificasse. Pensou que não corria nenhum perigo, não, William?
Era William, o lacaio, retocado, com algumas rugas a menos, tão plausível como um cheque adulterado. Mas era William. Engoliu em seco.
— Venha cá.
Parr apontou um pisa-papéis de vidro, que estava em cima da escrivaninha.
— Nunca viu isto? Responda-me! — disse com súbita ferocidade.
William olhou parao pisa-papéis e tornou a fitar o subdelegado, mas continuou em silêncio.
— Como se chamava Amos P. Huntingdon há doze anos, quando deixou as impressões digitais nesse pisa- papéis, no Homicídio de Park Place?
Parr referia-se a um crime que ficara registrado nos anais como um mistério famoso. — Que foi que vocês fizeram voar pelos ares, na fábrica de borracha sintética, William? — perguntou Pare. Foi um cesto de gatos ou de cães… ou você foi buscar outro dos seus irmãos ao necrotério? Sophie mandou incinerar os restos com tanta pressa que nós não tivemos tempo de examiná-los.
O subdelegado riu. William também. Por essa risada, Parr compreendeu que todas as perguntas seriam inúteis. Nesse momento a porta abriu-se e Armiston entrou, brandindo uma bengala.
— Leve-o para baixo! — rosnou Parr a um subordinado. — Denuncie-o por cumplicidade no homicídio de John Doe, aliás Amos P. Huntingdon.
Armiston deixou cair a bengala com estrondo e recuou, num gesto de susto tão genuíno que o polícia que o acompanhava lhe travou do braço, julgando ser ele o criminoso.
— Não, não é aquele; é este — disse Parr, apontando para William.
Os olhos do subdelegado cintilavam. Depois William foi levado para fora do gabinete, Parr disse a Armiston com certo regozijo:
 — É notável, Oliver! — e acrescentou, esfregando as mãos com ar satisfeito  — como foi que lhe ocorreu a ideia de pôr Sophie contra o marido? Você sabia que Sophie estava a escutar ao telefone, naquele dia em que me disse no seu gabinete que eu devia procurar o marido… que tinha sido ele o traidor. O traidor!
— Bem, naturalmente. Era a melhor coisa a fazer — concordou Oliver, agora lisonjeado. -- Eu sabia que você não conseguia encontrá-lo. Sabia que o único meio era assustá-la, fazendo com que ela própria saísse atrás dele… e então os seus homens poderiam segui-la no encalço.
— Para falar verdade, ela tomou-nos a dianteira — respondeu Parr — Sophie cumpriu a sua parte; fez aparecer o homem. Morto… — acrescentou sombriamente.
Contou em poucas palavras como o falso Amos P. Huntingdon, que voara pelos ares numa explosão na fábrica de borracha sintética e fora queimado, terminara encontrando a morte de maneira tão obscura, que a polícia nunca teria ficado a saber quem era ele, se não fosse por um descuido de Sophie.
— Mas Sophie…
— Oh, Sophie agora está a vir para aqui — disse Parr — Sente-se e espere. Há-de vê-la.
Uma hora antes, a viúva de porcelana de Dresden saíra a fazer o seu passeio da tarde, levando o mecânico de cabelos cor de fogo para tomar ar. Na Rua 42, um agente do trânsito disse com maus modos:
— Encoste.
O mecânico obedeceu com alacridade.
— Dê-me as suas chaves — Ordenou o agente.
Pegou as chaves e calmamente fechou as portas do carro. Agora Sophie não poderia escapar, a não ser quebrando os vidros.
— Leve-a para a esquadra! — disse o agente.
Enquanto Parr e Oliver conversavam, foi anunciada a presença de Sophie. A graciosa mulherzinha, toda vestida de preto, entrou chorando e fungando no lenço, por baixo do véu.
— Levante a cortina, Sophie  — disse Parr, radiante. — É aqui que você vai passar a noite.
Ela ergueu o véu, mostrando um rosto sulcado de lágrimas e pateticamente bonito. Parr levantou-se da cadeira com uma imprecação.
— Que brincadeira é esta, Hanrahan? — berrou para o mecânico de cabelos cor de fogo.
— Brincadeira, senhor? Brincadeira ? — protestou Hanrahan.
— Olhe para ela, idiota! — bufou o subdelegado. — Olhe o que você nos trouxe aqui? Uma boneca de trapos, vestida de luto!
Aqui a jovem mulher irrompeu numa torrente de palavras.
— Eu não compreende — lamentou-se com um sotaque francês. — Eu sou a criada de Madame Huntingdon. Ela mudou-se. Eu vim para à cidade, há três, quatro dias, para ajudar. Ela mudou-se. Esta tarde, eu saí para tomar um pouco de ar. O polícia fechou-me dentro do carro. Eu gritei… chorei… bati na vidraça. Cheguei aqui. Então este homem disse-me “não faça barulho…”
Hanrahan segurava a cabeça com as mãos. Recordava aquele episódio na cozinha da quinta, que o fizera achar tão atraente o campo, alguns dias antes.
— Onde foi que você arranjou essas roupas? — inquiriu rudemente o subdelegado.
— Madame… ela me deu… não precisava das roupas. Meu marido… ele morre… il est mort!
— Leve-a daqui! — rugiu Parr.
— Qual é a acusação? — perguntou o dócil Hanrahan.
— Ora, qualquer coisa — bufou Parr; — qualquer coisa, desde que os jornais não fiquem a saber de nada. Você, um detective! Você, a trabalhar no caso Sophie Lang!
Depois a porta fechou-se e foi Armiston que quebrou o penoso silêncio.
— No fim de contas — disse, em tom sonhador — foi mesmo uma obra-prima assinada! Hem, Parr?



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