22 de junho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 174

EFEMÉRIDES – Dia 22 de Junho
Mary Fitt (1897 – 1959)
Kathleen Freeman nasce em Yardley, Birmingham, Inglaterra. Professora, especialista em grego é autora de vários livros sobre a Grécia Antiga e Filosofia, também de poesia e livros infantis. Em 1936 escreve Murder Mars The Tour, sob o pseudónimo Mary Fitt, iniciando-se na literatura policiária. Publica 9 romances policiários e várias short stories, estas protagonizadas pelo detective Pitt ou pelo detective Frizbrown. Publica também 19 livros da série Mallett, que surge pela primeira vez em Expected Death em 1938; Mallett é um inspector da polícia, mais tarde Superindent, que é muitas vezes secundado por um médico, o Dr. Fitzbrown. A escritora publica sob o mesmo pseudónimo, Mary Fitt, 12 livros de mistério para jovens. No campo da literatura policiária escreve sob o seu verdadeiro nome — Kathleen Freeman — um livro de short stories The Intruder, And Other Stories (1926) e Gown and Shroud (1947) e sob um outro pseudónimo Stuart Mary Wick And Where's Mr Bellamy (1948) The Statue and the Lady (1950). A partir de 1950 Kathleen Freeman faz parte do Detection Club já referido no Caleidoscópio 173. Em Portugal apenas foi possível encontrar um livro da escritora, editado em 1968 pela Atlântida, Coimbra, na Colecção Juventude: Areias Movediças, The Shifting Sands (1958) no título original; um livro que relata as aventuras de dois adolescentes ingleses e do seu tutor numa Beirute do final dos anos 50.

Hillary Waugh (June 22, 1920
Hillary Baldwin Waugh nasce em New Heaven, Conneticut, EUA. É considerado um dos melhores e mais prolíficos escritores americanos de literatura policiária, responsável pela divulgação junto dos leitores das técnicas e procedimentos policiais utilizadas em investigações reais. Escreve cerca de 50 livros, sob o seu nome ou utilizando os pseudónimos Elissa Grandower, Harry Walker e H. Baldwin Taylor. Em 1989 recebe o Grand Master Award from the Mystery Writers of America, o que o iguala a figura como Agatha Christie, Mary Higgins Clark, Mickey Spillane ou Hitchcock. Em Portugal estão editados:
1 – O Sono Eterno (1961), Nº35 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: Sleep Long My Love (1959)
2 – A Última Vez Que A Viram (196?), Nº42 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: Last Seen Wearing (1952)
3 – Choveu Naquela Noite (1962), Nº49 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: That Night It Rained (1961)
3 – A Última Senhora (1963), Nº59 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: The Late Mrs D (1962)
5 – O Trapo E Um Osso (1964), Nº71 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: A Rag And A Bone (1954)
6 – A Vítima (1965), Nº78 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: Born Victim (1962)
7 – O Homem Desaparecido (1966), Nº97, Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: The Missing Man (1964)
8 – O Bloqueio (1968), Nº11 Colecção Enigma, Editora Ática. Título Original: Road Block (1959)
9 – Assassínio Sádico (1968), Nº4 Colecção Clube do Crime-Selecção de Autores, Editora Palirex. Título Original: Death And Circunstance (1963)
10 – O Princípio Do Fim (1970), Nº144 Colecção Enigma, Edições Dêagá. Título Original: End Of A Party(??) (1959)
11 – Acaba Comigo (1972), Nº156 Colecção Enigma, Edições Dêagá. Título Original: Finish Me Off (1971)
12 – O Hóspede Fantasma (1972), Nº166 Colecção Enigma, Edições Dêagá. Título Original: The Shadow Guest (1971)


TEMA — LITERATURA POLICIÁRIA — O ROMANCE E O FOLHETIM POLICIÁRIO
De Augusto Freitas
O texto que de seguida se transcreve, com a devida vénia da revista Investigação, é da autoria de Augusto de Freitas, um estudioso da literatura policial dos anos 50 do século XX. Esperamos que os citados nos perdoem, porém, o estudo aborda um aspecto pouco debatido da literatura policiária e merece todo o apoio e divulgação.
M. Constantino


Está feita já de há muito tempo a distinção entre o romance e o folhetim. Entre nós foi objecto de uma exposição doutrinária muito esclarecedora, num ensaio de João Gaspar Simões, dedicado à criação no romance. São duas entidades literárias diferentes e inconfundíveis, diferentes na técnica de construção e no valor cultural próprio.
Esta distinção, feita no campo literário em geral, pode e deve ser também aplicada ao campo da ficção policial. Ela permitirá adquirir-se maior valorização deste género de romances, porquanto se institui uma superior consciência na elaboração da história. Partindo-se do princípio que o romance é entidade com mérito literário, e que o folhetim carece dele, se o escritor tiver bem presente o que distingue um tipo de outro, pode elevar-se a um plano qualitativamente mais considerável.
Mas ocorre perguntar o que distingue então o romance do folhetim. Muitas pessoas, mesmo as que escrevem, ignoram esta diferenciação, e por isso não extraem dela todas as consequências benéficas que naturalmente resultam para o escritor prevenido.
A acção no romance assume completamente um aspecto de drama ou de comédia, produto de uma “maneira específica de ser” dos personagens. No romance qualificado está banida a influência do acidente fortuito ou de força maior. Os acontecimentos são concebidos, deliberados e executados, em virtude de “energia psíquica”, e não pelo acaso das circunstâncias. No romance policial, quer a acção do criminoso, quer a acção do investigador, devem ser determinadas pela inteligência e senso respectivos, sem a intervenção dos “acasos felizes”, acasos que, certamente, acontecem na vida real, mas que, apesar disso desqualificam a obra, se aproveitados em excesso. Este repúdio que a ficção romanesca deve ter pelo acaso, apesar de este ser, na verdade, frequente nas investigações reais, lembra-nos analogamente a situação do pintor que, se reproduz certos poentes que já todos temos presenciado, ninguém o toma a sério não obstante a reprodução ser fiel e perfeita.
Em contrapartida do que dissemos para o romance, a acção no folhetim é produto das circunstâncias ocasionais, e isto a ponto de os personagens deixarem de ser humanos, para nos aparecerem como uns joguetes nas mãos de uma série de complicações, que de resto não superam, porque se as vencem é também devido a tudo menos à sua capacidade realmente humana. O folhetim policial é “literatura de cordel”, e a sua abundância tem prejudicado bastante o conceito que até há pouco se veio tendo do romance policial. Mas, uma vez desfeita a confusão entre o verdadeiro romance detectivesco e o folhetim sensacionalista, aquele demonstra merecer um lugar aparte na consideração dos amantes da literatura, e demonstra não merecer o desdém de certas pessoas que ainda insistem que o romance policial constitui um grau inferior das manifestações literárias.
Tido este ponto de vista em consideração, verificaremos que o romance policial se encontra até num excelente plano de exploração artística. Ele representa um aproveitamento artístico do “direito processual instrutório e judiciário”. Ora, como, assinalou Radbruch na sua “Filosofia do Direito”, “a qualidade que torna o direito apto a ser um objecto atractivo para a arte, consiste nas inúmeras antíteses que no seu seio residem…”. Entre essas antíteses poderemos assinalar as que se verificam entre o “ser” e o “dever ser”, entre o “direito positivo vigente” e o “direito natural”, entre o “direito legítimo” e o “direito revolucionário”, entre a “liberdade” e a “ordem”, entre a “justiça” e a “equidade”, entre o “direito” e a “graça”. A criação artística, cujo objectivo primeiro é a exploração do “antitético”, apodera-se do direito com especial predilecção, e dramatiza as situações evidentes dessas antíteses. A Antígona é uma das mais altas expressões de antítese. Simplesmente, enquanto o drama helénico preferia sublimar o direito objectivo, o direito vigente na sociedade, a literatura e a arte modernas preferem especular com o lado subjectivo do direito, e portanto a exploração do sentimento jurídico dos indivíduos na sua luta e revolta constantes contra a ordem jurídica estabelecida. Assim, como diz Radbruch, o direito vigente é para a arte moderna, o fatal destino contra o qual vem quebrar-se a existência do indivíduo.
Um dos aspectos de antítese na vida prática do direito, e que tende naturalmente a conquistar os espíritos, porque o “desconhecido” seduz, é o da oposição entre a “aparência no crime” e a “verdade do crime”.
A curiosidade do público por sessão de julgamento, e a mesma curiosidade sobre a dinamização da vida policial, investigatória, levaria forçosamente à criação de uma forma de arte em que fosse explorada a referida antítese. Eis porque, contra a vontade de certos “botas-de-elástico”, a literatura policial se afirma e domina.
Tal como na vida real, em que ao crime de violência se substituiu o crime de fraude ou de inteligência, na literatura, a exploração do campo criminal tende a sair da aventura folhetinesca para a actividade inteligente. Por isso o verdadeiro romance policial deve ser dedutivo, e despido do aspecto aventureiro e audaz, sensacionalista e desumanizado, que é próprio do grau inferior da folhetinice. Enquanto assim não for, estaremos numa fase experimental.
No romance policial temos que distinguir duas actividades humanas fundamentais — a do criminoso e a do investigador.
A actividade do investigador sintetiza-se na recolha dos indícios da acção do criminoso, e no aproveitamento inteligente deles, para se descortinar a verdade do crime. Na recolha dos indícios deve estar presente toda a energia humana de ordem intelectual cognoscente, em especial a atenção e a vontade. Na aproveitamento desses indícios deve jogar toda a energia humana de ordem reflexiva, como os juízos e o raciocínio de vários tipos e modos.
A actividade do investigador tem sido o fulcro principal e quase absoluto das novelas policiais. Isto compreende-se por se tratar, como temos insistido sempre, de uma literatura de inteligência, mais que de uma literatura de emoção.
Mas toda a bela tem “senão”…
O cuidado de nos dar uma investigação inteligente, tem levado os escritores da ficção policial a desprezarem com frequência, ou melhor, a não considerarem no volume ideal um dos aspectos mais curiosos e realistas que este tipo literário deve explorar. Referimo-nos à apresentação do criminoso.
Mas além desta preocupação, outra causa domina a falsa estrutura, ou a nula estrutura, que, de modo geral vicia os criminosos apresentados nas obras de ficção policial e judiciária. Esta é, sejamos francos, a ignorância rotunda de que a maior parte dos autores consagrados, revelam sobre o que seja moral, social, antropológica e sociologicamente, um criminoso.
Temos lido centenas de romances policiais. A verdade é que, se constatamos, genericamente, a existência de muitos passos de índole folhetinesca quanto à actividade do investigador, quem sofre e tem sido maior vítima dessa doença, é o criminoso, e isto pelas razões acima apontadas.
Por esta razão, em especial e como já dissemos, tem sido muito desconsiderado este tipo de romance. A publicação, nesta revista “Investigação”, dos fragmentos que Fernando Pessoa nos deixou como paredes-mestras de uma novelística policial de grande mérito, demonstraram como, a um escritor de timbre não falta a preocupação superior de construir um tipo de criminoso que tenha alguma realidade psicológica ou psicopatológica.
Há pois que valorizar-se o lado da actividade do criminoso, para afastar o romance do folhetim, aventureiro e acidental. A determinação psicológica do criminoso tem mesmo uma projecção que o detective faz dos indícios que recolhe e ajuíza. Com efeito, se a psicologia do criminoso fizer parte do material com que ele lida, a dissertação do investigador sobre este aspecto, eleva-o sob o ponto de vista intelectual, e dá outra categoria ao seu próprio tipo, e ao ficcionismo da história.
Mas porque razão os escritores policiais não têm enveredado por este caminho, e vêm seguindo desde sempre uma técnica em que o realismo psicológico do criminoso está ausente?
A resposta só pode ser uma, que está dada de há pouco, mas que repetimos. Trata-se de uma impossibilidade técnica sobre problemas do criminoso e do crime. Isto porém é remediável.
Escreva-se um pouco menos, estude-se um pouco mais.


TEMA — O CRIME NA LITERATURA NÃO POLICIÁRIA — A MORTE NO REGATO — Retalhos da Vida de um Médico
de Fernando Namora
— O homem matou-se a valer, gaita! P’ra que os braços e as pernas não se segurassem à vida, enrolou a corda na pedra e tirou daí o sentido.
— Uma pedra daquelas na mão do Chicanas?!
Nesse momento, os meus olhos e os do delegado encontraram-se: houvera entre nós dois, de súbito, à queima-roupa, um vaivém de perguntas e respostas, mais intuídas que esclarecidas.
Mas surgiu, ao mesmo tempo, outro acontecimento mais inesperado ainda: o Marcelino Grandalhão, que tinha uma estalagem de comidas e bebidas com uns reservados onde eu, às vezes, enfiava umas horas a beberricar conhaques, deu um tiro com os olhos no intrometido:
— Que tem isso de ser uma pedra daquelas?
A pergunta indignada, porém, morreu aí, pois lá em baixo passava-se alguma coisa mais excitante do que as palavras, O cadáver fora deitado na margem, de barriga para cima, a pele da cara dum amarelo de bobo, todo ele inchado, horrível, abjecto. Os guardas rasgavam-lhe a roupa, para que nós pudéssemos, enfim, actuar. Nessa altura, eu, tão agoniado como os outros, empurrei a iniciativa para o meu colega e ofereci-me como relator. Ele não aceitou. Esse duelo de amabilidades tornava-se ridículo, mas quanto mais eu olhava as pestanas e sobrancelhas roídas pelos peixes, esses olhos vazados, que as mandíbulas dos borda-los tinham ulcerado, mais me sentia incapaz de dominar a repulsa; e, por último, quase supliquei ao colega que tomasse o papel de margarefe. O sol descia sobre a tarde, era uma presença mole, um charco de luz incendiada onde os nossos corpos estivessem soterrados. Feito de lume e nojo. Uma das mulheres desmaiou. O outro médico, em mangas de camisa, a face vermelha gemendo suor, abriu caminho com o canivete, enquanto eu apontava ao lavrador Cortes o horror daquela anatomia. O lavrador segurava-se em pé por vergonha.
— Vá para casa, lavrador, que isto enjoa-o — insisti eu, velhaco, vingando-me naquele momento das farroncas do suserano e também para que os outros não dessem pela minha fragilidade,
— Não se rale, doutor; isto disfarça-se com um cigarro.
Capa de Manuel Ribeiro de Pavia

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