16 de junho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 168

EFEMÉRIDES – Dia 16 de Junho
Victor Canning (1911 – 1986)
Nasce em Plymouth, Devon, Inglaterra. Escritor de quase uma centena de livros de aventura e suspense. Usa os pseudónimos Julian Forrest e Alain Gould. Cria as séries Rex Carver, Smiler e Crimson Chalice. Autor famoso, cai no esquecimento depois da sua morte. Teve várias obras adaptadas ao cinema, sendo as mais conhecidas as de Hitchcock: Disappearing Trick (1958) e Family Plot (1975), Intriga Em Família em Portugal, onde aparentemente só foi editado, para jovens, um livro de aventuras e suspense onde os náufragos de um cargueiro se veem envolvidos num clima de terror e crimes misteriosos.
1 – Aventura Na Somália (1963), Colecção Biblioteca para Todos, Editorial Minerva. Título Original: The Burning Eye (1960)


TEMA — LITERATURA POLICIÁRIA — É DIFÍCIL SER NEGRO
De M. Constantino

Não é fácil ser um homem de cor. Dificílimo quando se dá a circunstância de ser detective privado. Sou, de facto, as duas coisas.
Sou negro, um metro e oitenta e cinco aproximadamente, peso cento e três quilos bem pesados e chamo-me Toussaint Marcus Moore, de Nova Iorque em homenagem a Marcus Garvey Toussaint, o patriota de Haiti, Touie para os íntimos. Fumo cachimbo e uso tabaco “Cais de Londres” de cheiro agradável, tenho uma garota de norte Sybil, telefonista do serviço urbano, uma “branca sombreada” que na cidade poderia facilmente passar por branca, mas no Harlem a sua cor e as feições denunciam-na como pessoa descendência negra.
Moro num rés-do-chão de apartamentos de Sugar Hill, com dois amigos: Ollie que é soldado do corpo de bombeiros e um fotógrafo de nome Ray, que trabalha como cozinheiro auxiliar para ter de comer. É um negócio vantajoso para os três, visto que as despesas são divididas na razão de vinte e cinco dólares para cada um, apenas um pouco mais do que se paga no Harlem por um quarto. Ocupo a sala da frente, que também serve de escritório. Na parede tenho emoldurada a minha dispensa do serviço militar, em cima da estante de livros uma redoma de vidro contendo as estrelas de bronze e prata — os meus troféus da guerra — e coloquei na janela um letreiro que proclama: Investigador Particular Licenciado.
Fui capitão no exército. Após dar baixa, em 1948, cursei a Universidade de Nova Iorque ao abrigo da Lei dos ex-combatentes, trabalhei como guarda de reforço numa agência de investigações, por influência de Sid, um camarada, antigo aviador que conheci em Roma em 1945. No entanto convenceram-me para prestar novamente serviço militar e quando me dispensaram, em 1963, sem ter sido enviado para a Coreia, encontrando-me sem trabalho, fundei a minha própria agência.
Sybil queria que fosse carteiro, um emprego que me daria tempo para brincar aos detectives. Disse:
— Se ambos ganhássemos um ordenado fixo poderíamos viver confortavelmente Touie, repara que tens trinta e cinco anos e é tempo de teres juízo. Sei que a guerra te tirou a oportunidade de seguires a carreira de jogador de futebol e os cinco anos passados no exército foram afinal, uma espécie de férias. Agora que o primeiro emprego público te é oferecido, não o rejeites.
Deixem falar!
Não á fácil, isso não!
Embora o meu “Jaguar” seja um modelo antigo de oito anos atrás, que me custou 600 dólares, e o facto de qualquer coisa estrangeira sempre chamar a atenção, atrair a atenção é o que menos me convém, mas as pessoas persistem em olhar-me como se tivesse saído de um disco voador. É claro que aos olhos de um negro posso ouvir:
— Faz bem aos olhos ver um preto bem vestido, como você. Depois de tanto lavrar e passar, reconheço roupa dispendiosa.
Mas a vida é mais negra que o meu rosto. Se paro á beira da estrada junto de um pequeno restaurante onde calculo devem servir bem um homem faminto, ouço invariavelmente:
— Acho que talvez pretendesse almoçar, Sendo forasteiro, talvez ignore que não é hábito gente da cor fazer refeições neste estabelecimento.
Ou mais abruptamente:
— Não pode sentar-se. Não servimos aqui gente de cor. Não viu o letreiro?
Da facto o letreiro lá esta, pintalgado de moscas a anunciar “Reservamos o Direito de Não Servir”.
É quanto basta.
À pergunta: Há algum hotel em que possa ficar por alguns dias? A resposta é constante:
— Não existe aqui hotel para gente de cor!
E se o meu interlocutor é gente da minha raça, acrescenta uma breve desculpa:
— Presumo que é de fora, a cidade não é ruim para gente de cor, apenas um pouco atrasada…
Razão, razão, tinha o meu velho pai ao lembrar-me:
— A vida de um negro nada vale, pois não tem direitos que os brancos sejam obrigados a respeitar. A lei é essa, filho, conforme a decisão proferida em 1857 pela Corte Suprema no processo Dred Scott: Nunca esqueças isso!
Nada fácil!
(Ed Lacy)

Razões raciais estarão na origem da quase total inexistência, durante muitos anos, de detectives negros. Os protagonistas negros foram ignorados no panorama policiário europeu, e quer a nível da narração quer da cinematografia, os EUA, a maior potencial ao nível mundial, limitou o polícia negro a um subordinado à ordem dos brancos, figuras secundárias que mais não teriam de estabelecer e vincar as barreiras sociais que existiam, ou como moeda de crítica, testemunhando a sua inferioridade P.10222, sua inferioridade. Mais vilões do que heróis e frequentemente vítimas.

O primeiro protagonista negro da moderna narrativa, Toussaint Marcus Moore, não é um polícia, mas um detective privado, e aparece em 1957 em Roam To Swing, ao qual se segue Moment Of Untruth, de Ed Lacy pseudónimo de Leonard S. Zinberg hábil escritor de novelas violentas, nascido em Nova Iorque em 1811, onde igualmente faleceu, em 1968.
Touie, diminutivo porque é conhecido, evidenciando embora, desde o seu aparecimento as desvantagens da cor da pele, que ultrapassa com verdadeiras doses monstras de persistência, para assombro dos seus contactos, tem licença oficial de detective privado de uso de armas, e utiliza, como qualquer detective americano da sua época, os métodos dos brancos, cuja escola frequentou.
Outro protagonista, Lee Hates, igualmente criação de Ed Lacy, pelos vistos um realista, mais polícia do que negro, é um integrado na sociedade criada pelos brancos, membro da polícia nova-iorquina, especializado em questões raciais, para as quais está aparece em 1965 em Harlem Underground e, posteriormente, em And Black And White.
Também em 1965, Virgil Tibbs, criação de John Dudley Ball nascido em Schenectady, estado de Nova Iorque, em 1911, (note-se a dupla coincidência com Lacy), é tenente da força policiai de Passadena (Califórnia) e notável representante da sua raça na literatura do género, com honras de figurar no grande ecrã.
Um negro fisicamente volumoso nascido há cerca de trinta anos na cidade de Wells, em pleno Sul, de onde saiu para se incorporar na polícia, inteligente, capacitado e infalível especialista em casos de homicídio. Não se preocupa demasiado pela problemática étnica, sendo embora um bom negro, consciente de sua etnia, é superdotado além do mais, em paciência, resignação, eficiência e dedicação ao seu trabalho.
Cinturão negro no judo, só recorre à violência quando é inevitável. Os métodos profissionais são os tradicionais. Os problemas pessoais são escassos. Respeitado por negros e brancos, destes só se diferencia na cor da pele. O seu primeiro caso regista-se em In The Heat Of The Night, segue-se The Cool Cotontail (1966), Jonny Get Your Gun (1969), Five Pieces Of Jade (1972), The Eyes of Buddha (1976), Then Came Violence (1980) e Singapore (1986).
As potencialidades de exploração de um personagem policial negro não estão esgotadas. John Shaft, um negro gigantesco, que tem no sangue a violência, é um representante de Hard-Boiled americana. Produto genuíno do Bairro de Harlem, órfão desde muito menino, recolhido sucessivamente por diversas mães adoptivas, criou-se nas ruas entre lutas e amizades duvidosas, mas que lhe seriam úteis no futuro.
Alistado nos Marines, participa na guerra do Vietname, donde traz três feridas de baias, cujas cicatrizes conserva. Regressa convertido em herói, emprega-se numa agência de investigações durante algum tempo até abrir o seu próprio escritório em Times Square, iniciando verdadeiramente a sua carreira de detective privado. Carreira cheia de violência e sexo. Shaft é na realidade um homem violento e desapiedado que mata á menor ameaça — atirar um homem pela janela do seu escritório; é igualmente, um homem sexualmente irresistível, que odeia visceralmente os homossexuais e os judeus.
Vestido de couro negro e possuidor de um luxuoso apartamento em Greenwich Village, não parece ter dificuldades, superadas em boa parte pela força hercúlea e amizade do tenente da polícia distrital John Anderozzi
A carreira de John Shaft, criação de Ernest Tidyman, nascido em Cleveland, Ohio, em 1928, iniciou-se em 1970 com Shaft, ao qual se segue Shaft’s Big Score (1972), Shaft Among The Jews (1974), Shaft Carnivel Of Killers (1974), Goodbye Mr. Shaft (1975), morrendo em The Last Shaft (1975), depois de vingar a morte do seu amigo e protector tenente Anderozzi, de um atentado da Máfia.
Dois personagens são de referir: Grave Digger (Coveiro) e Coffin (Ataúde) Ed Johnson, criação de Chester Himes, escritor nascido em Jefferson City, capital do Estado de Missouri, em 1909, e falecido em Alicante (Espanha) em 1984.
A obra do autor frequentemente tem, sido classificada como epopeia de um povo, o negro, ou de uma raça, em luta pela sobrevivência e busca de entidade própria, considerando-se, como verdadeiro protagonista, o enclave urbano de Harlem, no coração de Nova Iorque.
Harlem , distinta de outra sociedade que a rodela, forma uma sociedade peculiar. É a visão desse mundo exótico superlotado de falsos profetas, jogadores, travestis, drogados, vendedores, prostitutas, gangsters, ladrões, uma fauna humana que, num frenesi constante de carreiras, perseguições, fugas, lutas, usa toda a espécie de violência como meio de satisfazer pequenas ou grandes ambições ou necessidades.
Grave Digger Jones e Coffin Ed Johnson são habitantes de Harlem, nasceram nesse mundo frenético de pesadelo mantêm-se nele integrados como polícias que são. Honrados e incorruptíveis, cobram emolumentos privados como todo o polícia que se preza. De forte compleição, mesmo gigantesca, utiliza métodos similares aos meliantes do Harlem, único sistema para se conseguirem impor. A pistola de Coffin Ed pode matar uma pedra e a de Grave Digger enterrá-la, diz-se.
Conhecem bem os seus irmãos de raça, a violência como arma quotidiana, mas não abusam da condição de polícias, porém, não abandonam os seus enormes revólveres, que são efectivamente o que lhe confere autoridade entre os seus congéneres; sem eles, certamente seriam prontamente eliminados, por constituírem uma representação do homem branco, ainda que débil, porque o branco não tem lugar no superlotado território dos negros
A dupla iniciou-se em For Love Of Imabelle (1957), seguindo-se The Real Cool Killers (1959), The Crazy Kill (1959), The Big Gold Dream (1960), All Shot Up (1960), Cotton Comes To Harlem (1965), The Heat's On (1966) e Hot Day Hot Night (1969),
O trama policial e a intriga, a própria da actuação dos dois polícias, perde em função da tragicomédia humana que se representa, aqueles serão apenas um pretexto para descrever quotidianamente o bairro e as suas gentes. Em todo o caso, Coffin e Grave Digger cumprem a sua missão de protagonistas.
Tem-se ainda notícia de um vago inspector Max, criação de Pierre Very (França), limitando-se o demais cenário do personagem negro a um papel de fugura secundária.



Um jovem guarda passou balançando o cassetete. Tinha cara de italiano. Procurei lembrar porque eu não tinha prestado concurso para a carreira policial. Provavelmente por já ter ultrapassado o limite de idade.
Ele olhou-me e eu sabia o que ele pensava:
— O que estará este negro a fazer por estas bandas?
Senti o seu pensamento de desprezo

É assim.

Realmente é difícil ser-se negro, muito difícil!

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