1 de junho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 153

EFEMÉRIDES – Dia 1 de Junho
Pierre Souvestre (1874 - 1914)
Pierre Wilhem Daniel Souvestre nasce em Plomelin, Finistère, França. Advogado, jornalista e escritor é conhecido pela parceria que mantém com Marcel Allain para criar o anti-herói Fantômas. Fantômas surge em 1910, é um génio do crime, o mestre de todos os mestres e torna-se numa figura muito popular. Protagoniza 32 romances e vários filmes. Em Portugal também está editado o Fantomas. A edição mais antiga que é possível identificar data de 1914, uma publicação de Salazar Cardoso & Alves, do Porto e com o título Fantomas: Um Romance. Na década de 50 a Editorial Dois Continentes edita na Colecção Fantomas 21 romances de Pierre Souvestre e Marcel Allain. Em 1957 a Livraria Civilização substitui a Editorial Dois Continentes na publicação dos livros de Fantomas e não só reedita alguns títulos como completa a edição de toda a obra.

TEMA — ANATOMIA DO CRIME — A BALA QUE ESPEROU PELO ALVO CERTO
Brincar com o coração dos outros, especialmente com o coração de uma mulher apaixonada, nem sempre, ou nunca, é coisa acertada. Certo que quando Henrique Z. abandonou Violeta depois de três anos de namora, nunca lhe passara pela cabeça que ela fosse uma rapariga de “extremos” e se suicidasse. Acabara de o saber quando o irmão de Violeta, de pé na sua frente, lhe dera a cruel notícia com uma arma apontada ao seu peito, afirmando que o ia matar. Henrique julgou-se um homem morto. Não teve sequer tempo para balbuciar um arrependimento, quando o rapaz puxou o gatilho. Sentiu um ardor no peito e caiu desmaiado. Todavia, a bala roçara pelo peito e fora cravar-se numa árvore próxima. Não se apercebeu disso o irmão da rapariga que julgando ter cumprido a sua missão, voltou a arma contra si e disparou um tiro fatal no ouvido.
Quando acordou do desmaio, Henrique deparou-se com a tragédia aliás fora uma dupla tragédia. Verificou que a ferida no peito não era grave apenas uma queimadura, um risco transversal que ficaria para sempre.
Durante os vinte anos seguintes Henrique não voltou a pensar no assunto. Ninguém lhe pedira contas pelo sucedido aos irmãos suicidas. As próprias autoridades policiais aceitaram a sua “falta de conhecimento” das razões do duplo suicídio.
Um dia resolveu fazer uma limpeza, incluindo cortar a árvore, agora muito maior, junto da qual vivera um momento único da vida — encarar a morte de frente. Abriu um buraco no troco e utilizando dinamite encheu o buraco e acendeu o rastilho. A explosão atirou fragmentos em todas as direcções e levou a bala a atingir em cheio o coração de Henrique, matando-o instantaneamente — a bala encontrara enfim o alvo certo pelo qual esperara vinte longos anos!



TEMA — CONTO POLICIÁRIO DEDUTIVO — ARROZ PARA DRAGÃO DOURADO
De M. Constantino

No rosto sem beleza, um ar melancólico denunciado pelos olhos oblíquos, escuros e nostálgicos. A cabeça rapada estava coberta por um chapéu de palha: a bata amarela atada à altura dos rins e as calças de algodão azul enroladas até aos joelhos.
Desde a madrugada que seguia por entre colinas e vales com seus campos prontos para a sementeira do arroz. Sentiu fome. A trouxa, pendurada às costas, não continha alimento. Até então, comera escassos e esquecidos frutos silvestres, raras, muito raras tigelas de arroz lhe haviam sido estendidas.
Parou olhando os pés grandes e bem feitos. Sorriu suave.
Um trovão estalou ao longe, silenciando os pássaros. O orvalho delicado da chuva que há uma lua acompanhava o seu itinerário, acariciou-lhe o rosto. Vozes vieram de perto. Levantou a cabeça. Ao lado do carreiro, três homens de rabichos soltos, vestidos de desbotado algodão castanho, sentavam-se sobre frágeis ramos de verde salgueiro.
Aproximou-se humilde. Olhou nos olhos, um por um, os velhos camponeses imóveis. Levantou os olhos em prece.
- Irmãos, poderei merecer a graça de um pouco de arroz? Sou Kim. Um noviço no templo do Lótus Sagrado.
- Oh, sim. Ouvi falar de ti! És aquele a quem chamam o Dragão Dourado, Símbolo da Sabedoria Celeste – volveu o camponês de rosto magro, corpo esquelético, levantando-se.
- Sou Li – acrescentou.
- O Mestre o disse – respondeu Kim. – Mesmo num monte de esterco a flor do lótus cresce cheia de doce perfume e deleite; também o discípulo do Iluminado brilha entre os que andam nas trevas.
- Sou Lan. Não podemos ajudar-te! – disse o homem baixo, rechonchudo, de boca enorme, rasgada de orelha a orelha, pousando a cabeça entre os joelhos erguidos.
- Chang é o meu nome – disse o terceiro puxando pelos pêlos brancos de venerável barbicha. Passivamente me resigno à dor, aceitando-a como inevitável. Mas, oh Cheio de Exaltação, como mitigar a fome dos nossos? Há duas vezes os dedos das minhas mãos trémulas, revolvíamos a terra. Quando o dia se perturbou com a chegada da noite, afastámo-nos para recolher bambus tenros. Regressámos. O saco onde guardávamos o arroz para sementeira tinha desaparecido. Yu, o lenhador, o único homem vivo que vimos em todo o dia, criticou-nos a suspeita de que tirara o saco. Ameaçou-nos. Regressámos à aldeia, tristes mas confiados que o remorso o fizesse devolver-nos o saco. Hoje viemos para lhe suplicar a devolução em nome de trinta filhos e oferecer-lhe parcela da colheita. Quando chegámos, Lan avisou-nos de que Yu deixara a cabana junto do tronco carcomido, mostrou-nos os bagos esparsos que vão daqui à cabana. Deduzimos que Yu levou o saco às costas fortes sem reparar que tinha um pequeno buraco por onde saiu o arroz acusador.
Li mostrou os grãos sobre a terra lamacenta. Kim seguiu os indícios reveladores até à cabana abandonada. Ajoelhou-se na estrada. De coração perturbado e rosto afogueado, voltou para junto dos camponeses.
- Irmãos. Quem imagina a verdade no erro e vê erro na verdade, nunca chega à verdade, mas segue vãos desejos. Yu não levou o saco. O homem insensato, o que almeja a ventura por meios ilícitos está entre vós. Não o castigueis. O bicho-da-seda tece o seu casulo e fica dentro, assim o ladrão ficará preso ao seu acto. Permitis que recolha e me alimente de alguns bagos do arroz caído?
Os três camponeses olharam-se incrédulos.
Kim baixou-se. Apanhou pequena quantidade de bagos e esfregando uma mão na outra fez soltar as ténues cascas. Soprando-se levou à boca os cristais brancos, mastigando-os.
Afastou-se, lento e firme, sem olhar para trás. Parou, reflectiu e murmurou, em auto-crítica.
- O Mestre o disse, não esqueças os teus revezes nos momentos de êxito. Tudo o que somos é resultado do que temos pensado; encontra-se em nossos pensamentos e é edificado com os nossos pensamentos.
Retomou a marcha.
Kim voltou a ouvir a voz cansada que gritava.
- Uh! Uh!
Chang, tanto quanto as entorpecidas pernas o permitiam, aproximava-se de mãos estendidas
- Aguardai, aguardai, não nos deixeis na ignorância. Indicai o pecador.
Kim reflectiu.
- O Mestre o disse: a peçonha não afecta a mão que não tem ferida, nem recai o mal sobre quem não o comete. Se um homem ofende uma pessoa inofensiva, inocente e pura o mal recai sobre o néscio que o cometeu, assim como a poeira que alguém lança contra o vento. Vede, o homem não foi justo. Tirou o saco e fez gerar a infâmia sobre Yu.
“Tu próprio o disseste, irmão. Duas vezes os dedos das tuas mãos o arroz desapareceu. Como poderiam manter-se tantos dias os bagos abandonados, sem que os pássaros os levasse nos seus bicos ligeiros e esfomeados? Como não te lembraste, duas vezes os dedos das tuas mãos, não tivesse germinado o arroz na terra enlameada? Não viste tu as minhas mãos facilmente soltarem as cascas frágeis? Hoje mesmo o impuro se deleitou, regozijou traçando uma trilha acusadora para Yu. Irmão, tu e Li, não o poderiam ter feito sem o conhecimento de todos; tu o disseste, Lan vos avisou que Yu deixara a cabana, chegou primeiro, portanto Lan é impuro. Em verdade, o Mestre o disse: assim como a chuva penetra uma casa de ruim telhado, assim a má acção penetra a mente irreflectida”.
Caminhando, Kim breve se perdeu na distância…



Sem comentários:

Enviar um comentário