1 de julho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 183

EFEMÉRIDES – Dia 1 de Julho
James M. Cain (1892 – 1977)
James Mallahan Cain nasce em Annapolis, Maryland, EUA. Jornalista nos anos 20, mais tarde argumentista em Hollywood e escritor é um dos criadores do romance negro. É considerado como um dos mestres do género Hard Boiled, com violência e conteúdo sexual, embora o autor recusasse esse título. Em 1934 publica o primeiro livro, The Postman Always Rings Twice, que foi por duas vezes adaptado ao cinema com sucesso. No total escreve 18 romances de mistério/detective, 2 peças de teatro e 3 argumentos para cinema. Em Portugal estão registadas as seguintes edições:
1 – O Destino Bate À Porta (1966), Colecção Miniatura, Livros do Brasil. Título Original: The Postman Always Rings Twice (1934).
2 – Pagos A Dobrar (1984), Nº2 Colecção Horizonte Romance, Editora Horizonte. Título Original: Double indemnity (1936).
3 – Alma Em Suplício (1984), Nº4 Colecção Horizonte Romance, Editora Horizonte. Título Original: Mildred Pierce (1941).
4 – Serenade (1985), Nº7 Colecção Horizonte Romance, Editora Horizonte. Título Original: Serenade (1937).



William L. DeAndrea (1952 – 1996)
Nasce em Port Chester, New York, EUA. Colunista e escritor de policiários publica o seu primeiro romance Killed In The Ratings em 1978, também o primeiro da série Matt Cobb, que tem 8 livros editados. O autor, admirador de Nero Wolfe, cria a série Niccolo Benedetti (3 títulos) que pretende ser uma homenagem aos grandes detectives e escreve ainda a serie de espionagem Clifford Driscoll. William L. DeAndrea recebe 3 Edgar Awards: em 1979, Best First Novel com Killed In The Ratings (1978); em 1980 Best Paperback Original com The Hog Murders (1979; em 1995, Best Critical Work com Encyclopedia Mysteriosa - A Comprehensive Guide to the Art of Detection in Print, Film, Radio, and Television (1997).


TEMA — ESTUDOS DE LITERATURA POLICIÁRIA — OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA NARRATIVA POLICIÁRIA CLÁSSICA (Parte I)
por M. Constantino

PROPOSIÇÃO
Definição
Realidade
Ficção Narrativa Clássica

1. Considerando o hibridismo de que se reveste, qualquer definição generalizada da narrativa policiária, com apriorismo, apresenta dificuldades inultrapassáveis.
A classificação ainda que excessivamente ambígua, resulta na observância de determinada narração, a qual na sua concepção se contém numa manifestação criminal.
A norma comum da sua arquitectura, impõe que a intriga seja concebida a partir do problema ou enigma, a impossibilidade da sua resolução e o desvendar do mistério.
2. Numa primeira fase há que distinguir a narração imaginária da verdadeira.
Neste último campo é necessário determinar se o conteúdo é puramente real ou se se está em presença de uma crónica novelada. Não é indiferente por “no mesmo saco” as “Memoires” de Vidocq, descrição da vida e aventuras do célebre polícia francês, a biografia de Al Capone, uma história dos crimes da Máfia, a recompilação de crónicas forenses, julgamentos e crimes célebres, que correspondem a factos reais, e a novelização desses mesmos factos, nos quais podendo seguir embora directrizes reais são rodeadas de alguma fantasia, bastante para criar a tensão do mistério e intriga indispensáveis ao interesse do leitor.

3. Pelo contrário, o romance, a novela, o conto, o problema policiário — jogo lógico de raciocínio proposto por revistas e jornais como passatempo — são ficção pura, circunscritos à habilidade, fantasia ou imaginação dos autores. Carecem de realidade, movimentando-se na adopção de modalidades e procedimentos ardilosos de cada autor.
É nesta expectativa que se distinguem a ficção detectivesca de aventuras policiais, da máscara negra, suspense ou psicologia criminal.

4. Resumindo esquematicamente

NARRATIVA POLICIÁRIA



Vida de Vidoc

REAL
História da Máfia


Crónicas, artigos




SEMI REAL
A Sangue Frio (novelização de Truman Capote)





Romance
Detectivesco Puro
(clássico)
FICÇÃO
Novela
Aventuras Policiais

Conto
Máscara Negra

Problema
Psicologia Criminal
ou de Crime






5. No que concerne à narrativa de detective (base temática a desenvolver), a clássica narração que origina todo o género policiário, na prática, nenhuma dificuldade resulta, aparentemente, em diferenciá-la dos outros géneros policiários.
Estrutura-se na existência de um crime ou delito misterioso ou enigmático (por tal também se apelida de “narrativa de enigma”, já que a designação de “mistério” é muito mais ampla e pode aplicar-se a toda uma generalidade) face ao qual o detective, investigador ou simples curioso, recorrendo a pistas e interrogatórios desmascara o culpado.
Pode ocasionalmente ocorrer a não existência de crime, tão só a presunção da sua existência. É o caso contido em “Os crimes da Rua Morgue”, na qual não existia delito humano, as mortes misteriosas, se bem que constituam enigma bastante para dar lugar a uma investigação e consequente descoberta da verdade.
Uma outra derivação do género, mas nele incluído, é a chamada narração “invertida”. Nesta, sabe-se quem cometeu o crime, e como foi cometido, residindo o interesse em seguir o trabalho de detective na vida árdua da investigação, registar as pistas que o criminoso inadvertidamente deixou ao cometer o crime, até à sua identificação.

6. A narrativa pura, clássica ou de detective, faz efectivamente do problema ou enigma a desvendar, todo o centro -de gravitação do seu interesse, ao redor do qual gira toda a história, O enigma actua como desenvolvimento da narrativa, e a busca da sua solução, a elucidação ou explicação é o motor que impulsiona e mantém todo contexto.
É evidente que o autor frequente e genericamente inclui aspectos individuais, sociológicos, fantasiosos terroríficos, etc., para dar impacto à obra e confundir leitor, contudo, qualquer que seja essa derivação determina sempre a resolução do enigma fulcral,
(continua)


TEMA — ALGO DE SOBRENATURAL — DÍVIDA ANTIGA
De Severina Fortes
Não seria talvez o primeiro dia de verdadeiro verão nesse ano, no entanto era decerto aquele em que o senti verdadeiramente no sangue e no espírito.
Estivera doente, muito doente, e convalescia. O meu corpo sedento de sol e ar impeliu-me para a rua. E, sem saber bem como, reminiscências infantis levaram-me ao Cais das Colunas, à beira do rio Tejo, onde tanta vez em criança ia ver os barcos.
Não, o Tejo já não parecia o mesmo. Estava sujo e cheirava mal. As águas, agora mais baixas, deixavam ver detritos que constrangiam.
Levantei os olhos aos mastros dos barcos, filtrei como pude apenas o cheiro a maresia e segui pela Ribeira das Naus, rumo ao Cais do Sodré.
O encanto mantinha-se. Ali estava a Estação da linha de comboios para Cascais. Quantas vezes, e aí revia-me como era então, juvenil e alegre, quantas vezes embarcara nesses comboios a caminho das praias, praias ainda suficientemente limpas para serem usadas com confiança!
Porque não ir até Cascais de comboio? Havia tanto tempo que não utilizava esse transporte…
Comprei um bilhete e entrei na gare. Um comboio acabava de partir, mas não me importei. Entrei no que seguiria primeiro e sentei-me na última carruagem. Estava vazia. Escolhi um lugar junto da janela, ao lado do rio, ajeitei melhor os meus óculos de sol e esperei.
Os lugares foram ficando ocupados, mas só distraidamente o percebia, entretida a ver as gaivotas e perguntando a mim própria se ainda haveria delfins no Tejo como havia na minha adolescência, saltando fora de água e mergulhando em redor dos barcos que nos levavam à Trafaria.
Um barulho mais vivo fez-me olhar os meus companheiros de viagem e, como sempre me acontece quando viajo num transporte público, admirei intimamente a extraordinária ordem da Natureza que nunca reúne, num grupo de pessoas, duas semelhantes. Haverá qualquer excepção, mas-regra cumpre-se sempre.
Logo que habituei os olhos à claridade menos intensa do interior da carruagem, reconheci a senhora sentada na minha frente. Não havia dúvidas: era a Clementina, a minha companheira de classe na escola primária. Desde então não mais a vira, mas era ela sem engano possível. Do outro lado e mais atrás um grupo conversava e ria; um grupo de mulheres em que reconheci antigas condiscípulas da mesma classe e que provavelmente sempre ficaram a conviver e ali também estavam.
A coincidência chocou-me. Pensara em princípio dar-me a conhecer a Clementina, no entanto uma espécie de receio, ainda vago mas a delinear-se, fez-me calar.
Olhei de novo o rio já bravio, um “mas” minha tarde esplêndida.
Não espero que me acreditem. Nem eu própria que vi e assisti ainda acredito. Uma a uma reconhecendo todas as ocupantes do compartimento. Todas condiscípulas da mesma escola, todas mulheres sensivelmente da minha idade. Nenhuma criança, nenhum homem e, com excepção daquele grupo, ninguém parecia reconhecer-se.
Tive medo, medo puro, sinal de alarme dentro de mim perante um acontecimento ilógico.
Entretanto o comboio partira. Ainda havia lugares vagos, talvez que na estação seguite entrassem passageiros diferentes…
 Esperança vã que logo se desvaneceu!
Mais duas passageiras conversando, mais duas ex-companheiras e só um lugar sem ninguém Talvez que na outra estação saíssem alguma: que os passageiros que entrassem dessem novo ambiente.
Entrou um homem idoso. Olhei-o com curiosidade. Reconheci-o, sim, conhecera-o em tempos, mas não me lembrava de onde.
Não podia ser verdade. O que estava a acontecer nunca, mesmo nunca acontece!
No entanto acontecia com aparente naturalidade naquela tarde magnífica de sol e diante dos meus olhos. E porque só aos meus? Teria a doença por que passara deixado em mim traços que davam um poder de receptibilidade super normal?
Não sei.
Fiquei apavorada. Impulsivamente levantei--me e dirigi-me à porta de saída, resolvida a sair no primeiro apeadeiro. Logo que parámos quis abrir a porta e sair, mas, cheia de terror, um terror incrível que me fazia transpirar uma viscosidade que nunca sentira no meu corpo, verifiquei que a porta encravara.
Ia gritar. Tinha que gritar. Olhei para todas, todas aquelas mulheres com quem brincara, que tratara por tu, com quem passara horas e horas e que agora me horrorizavam como fantasmas insensíveis.
Do outro lado da carruagem a porta de ligação abriu-se. Reanimei-me. Ali estava uma saída.
Com uma calma aparente que ainda hoje me dá admiração, atravessei pela coxia aquele grupo de pesadelo, parei para deixar passar o revisor que tinha entrado e fui para a saída.
Na minha intensa tensão havia alívio, um alívio que me queria penetrar mas que um auto-domínio doloroso não deixava.
No mesmo instante, embora o intervalo me parecesse longo, muito longo mesmo, o revisor chamou-me. O bilhete. Sim, era isso. Nada havia de mais natural. Olhei-o enquanto lhe estendia o cartão para ser perfurado com o alicate próprio e, ali na minha frente, voltei a ver de bibe infantil o Fernando, o filho da contínua da escola; conhecê-lo-ia em qualquer lado pela mancha vermelha junto do ouvido esquerdo e pelos olhos azuis deslavados.
Já com o bilhete na mão fiquei estática. Não sei o que foi mais forte em mim, se o medo, se o espanto.
Que fazia ele no meio de nós? O que o levaria ali? Não andara na nossa classe, pois esta era feminina e, mesmo ele, era mais novo uns anos.
Afastou-se de mim e falou ao homem, ao único homem que além dele ali estava, e foi então que me lembrei. A verdade atingiu-me então e deu-me forças para me arrancar àquele lugar. Corri para a porta, abri-a sem dificuldade, e isso maravilhou-me, andei até ao fim do outro compartimento, esperando avidamente a paragem.
Desci a tremer receosa por cair. Dei uns passos e sentei-me num daqueles bancos que a estações da linha têm.
Devia ter um ar transtornado, pois as pessoas que passavam fitavam-me intrigadas.
Não sei quanto tempo para ali estive sem querer pensar em nada. Quando o princípio de uma ideia surgia, afastava-a, não a queria.
Mas a verdade soubera-a ao reconhecer motorista da carrinha da escola, ao lembrar-me daquele passeio a Cascais que a classe fizera no último ano e no qual leváramos o pequeno Fernando, estimado por todas. Fora um passeio bonito e o dia estivera assim, tal e qual, mas só por um triz escapámos da carrinha ter caído por uma ribanceira, desastre esse do qual dificilmente teríamos escapado, a não ser alguém com muita sorte.
Entardecia quando reuni forças para falar aos meus, pedindo para me irem buscar. Estava abatida, abalada e triste.
Sentia uma amargura extrema, uma certeza dentro de mim que eu não queria definir e me desgostava como um presságio.
Mas aquilo que eu não queria admitir, num; espécie de auto-defesa, e a que teimosamente fechara o espírito, transmitiu-o o locutor da televisão nos documentários do acontecimento durante noticiário, enquanto mostravam, em reportagem a última carruagem, desfeita, do comboio onde eu fora num impulso infantil; carruagem que se soltara e despedaçara, assim como os corpos quo levava dentro, levados a pagar uma velha dívida a que eu escapara, por sorte, a tal sorte que salva vidas de desastres pavorosos ou, quem sabe, eu não devesse nada e só fosse levada a testemunhar que nada foge impunemente à ordem das coisas estabelecidas.
A Natureza espera, mas não perdoa.



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