30 de julho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 212

Efemérides 30 de Julho
Mario Spezi (1945)
Nasce em Sant’Angelo in Vado, Itália. Jornalista, cronista, redactor da secção cultural do diário florentino La Nazione, é também um escritor reconhecido de crime real. O seu livro mais conhecido, traduzido em 22 linguas, é Dolci Colline Di Sangue (2009) escrito em colaboração com o escritor norte-americano Douglas Preston, um relato sobre uma série de assassinos atribuídos ao monstro de Florença. Este caso tem sido objecto de estudo e investigação por parte de Mario Spezi, que chega a ser detido durante 23 dias em 2006, acusado de impedir a investigação policial; os detalhes desta situação estão descritos pelo autor no livro Inviato In Galera (2007). Em Portugal O Monstro de Florença foi editado em Junho deste ano e já foi referido pelo Policiário de Bolso (Clicar)



TEMA — CONTO — O ESPELHO DOS SOUSA BORGES
De Repórter X
No Teatro Sá da Bandeira, no camarim onde hoje se veste esse aristocrata da cena que é Alexandre de Azevedo — aristocrata pela alma e pelo carácter porque se fosse pelo sangue não me interessava — existe um velho e enorme espelho que forra quase toda uma parede da pequena antecâmara. O cristal mancha-se aqui e além, pelas garatujas que o tempo fez no aço. Uma moldura grave, uma moldura sombria e despintada pelo uso — o enquadra
Sempre que eu via Alexandre de Azevedo enlaçar uma gravata ou ajustar uma cabeleira frente àquele espelho — sentia, sem confessar, o frisson subtil duma profanação. E sentia-o — na intuitiva certeza que aquele espelho era um espelho morto; um espelho-cadáver; um espelho que merecia há muito o repouso definitivo dos mortos — no cemitério das cousas inúteis.
Não me surpreendi, pois quando outro dia, um velho frequentador de palcos, cronista oral das histórias do passado, habitué da tertúlia dos camarins, revelou despreocupadamente enrolando um cigarro “superior”, a história do velho espelho.
— Tem mais de duzentos anos — essa relíquia… Esteve durante largo tempo V a meados do século passado — forrando a parede do velho Águia D’Ouro — café e hospedaria, cenário por onde os elencos do Camilo desfilaram vezes sem conta. Nas “Cenas Contemporâneas” — Camilo evoca-o — como um ex-libris do café de que ele era também frequentador. Mor de Perdição” e os do seu grupo não acertaram o laço e o chapéu de abas direitas na auto-emoção duma entrevista amorosa… Mas antes de ir para Águia D’Ouro — esse espelho pertenceu a uma família ilustre que teve nome repintado do sangue no romantismo febril do Porto: os Sousa Braga… Se esse espelho falasse — contaria o idílio trágico entre a escrava de um pai tirano e um pobre poeta que de noite invadia castamente a sua alcova de virgem… Se ele falasse — havia de nos comover descrevendo o calvário dessa pobre pequena morrendo, numa agonia longa e dolorosa sob as torturas com que castigavam a lealdade do seu coração apaixonado. Se ele falasse — diária que o sangue de um poeta, fuzilado à traição, lhe salpicou de púrpura o seu cristal.
Os Sousas Braga fugiram do Porto… O poeta desaparecera… Zumbiam murmúrios de acusação… Diziam que ele caíra numa cilada e que o cadáver fora enterrado no jardim do palacete, ali para as bandas do Campo… Assustados os Sousas Braga leiloaram a casa foram viver para os arredores de Viana. No leilão — o velho espelho, que conhecera faustos duma burguesia doirada e as angústias de um romance de amor — foi levado para o botequim. Como ele veio até aqui ignoro-o… Mas se ele falasse — que de artigos você não faria.
Não podia falar — o velho espelho — porque o velho espelho é um cadáver — e os cadáveres não falam. Mas naquela noite, sob o fluido da palestra macabra, tive a sensação arrepiante que a alma do velho espelho, fantasma feito de reflexos, me fitava, fixamente, sinistramente — através o cristal. Os meus olhos, reproduzidos no espelho, esgazeavam-se vendo-se a si próprios esgazeados. Os meus olhos assustavam-me.
Disfarcei, pedi um cigarro—e fugi do teatro…



TEMA — BREVE HISTÓRIA DA NARRATIVA POLICIÁRIA — 18
Continuação de CALEIDOSCÓPIO 188 (clicar)
“On Murder Considered as One of the Fine Arts” (1827), de Thomas de Quincey (1785-1859), obra considerada como a “poética do crime”, não é uma narrativa policial ou criminal na acepção do termo, antes um ensaio, o primeiro ensaio sobre o crime, já que o autor entende que a “prática e a teoria devem evoluir “paripassu” Por outro lado, justificando o provérbio que afirma “ser bem ruim vento aquele que sopra sem proveito de ninguém”, o autor passa à tese.

Todos sabem qual foi o primeiro crime de morte. Como inventor do homicídio, progenitor de tal arte, Caim deve ter sido um génio de primeira água. Aliás, todos os Cains são homens de génio. Tubal Caim inventou penso eu, as tubas, ou qualquer coisa no género. Mas, fosse qual fosse a originalidade e o génio do artista, todas as artes se encontravam então na infância, e essas obras devem ser criticadas tendo sempre em vista tal facto. Mesmo a obra de Tubal talvez não merecesse, hoje em dia, a mais pequena aprovação em Sheffield; e, quanto a Caim (falo em Caim Sénior) não significa menosprezo dizer que o seu trabalho não foi lá grande coisa. Milton, no entanto, parece ter pensado de maneira diferente. Pelo seu modo de relatar o caso, parece ter sido o seu crime favorito, de modo que lhe dá uns retoques, com nítida preocupação pelos efeitos pitorescos
Ao que se enfureceu; e, enquanto falavam,
Atingiu-o no peito com uma pedra,
Que lhe cortou a respiração: caiu, e, pálido de morte,
Foi-se-lhe a alma libertando com o sangue derramado
(Paraíso Perdido, L XI)
Tendo sido a arte criada há tantos séculos, é lamentável ver como ela se deixou adormecer, sem o menor progresso, durante anos e anos. De facto, serei agora forçado a passar por cima de todos os assassínios, sagrados ou profanos, como manifestamente indignos de notícia, até muito depois da era cristã.
A Grécia, mesmo na época de Péricles, não produziu um crime sequer digno de nota, ainda que de escasso mérito; e Roma foi de génio tão pouco original em qualquer das artes, para ter êxito naquela em que o seu próprio modelo fracassou. De facto, o Latim perde o pé ante a ideia de assassínio. “O homem foi morto” — como é que isto soaria em Latim  “Interfectus est, interemptus est” é assim que se exprime a ideia de homicídio; a cristandade latina da Idade Média foi, por isso, forçada a introduzir uma palavra nova, dado que a fraqueza das concepções clássicas nunca o conseguiria fazer. “Murdratus est”, dizia-se no sublime dialecto daquelas eras góticas. Entretanto, a escala judaica do assassínio manteve vivo tudo quanto ainda sabia de tal arte, transferindo, gradualmente esses conhecimentos para o Ocidente.

Recorrendo, no entanto, e por instantes, à antiguidade clássica, não posso deixar de pensar que Catilina, Clódio e outros do mesmo corrilho, dariam artistas de primeira água; só há motivos para lamentar que a má vontade de Cícero tenha tirado ao seu país ocasião de se distinguir neste capítulo. Como vítima de assassínio, ninguém poderia ter servido melhor do que o autor das Catilinárias

Para voltar aos tempos do obscurantismo — com, o que todos quantos falam com precisão se querem referir em especial ao séc. X, e aos tempos imediatamente anteriores e posteriores, épocas naturalmente favoráveis à arte do homicídio, tal como o foram à edificação de igrejas em execução de vitrais, surge-nos, já perto do fim de tal período, uma grande figura da nossa arte; refiro-me ao Velho da Montanha. Era, na verdade, uma luz resplandecente, e não preciso de lhes dizer que a palavra “assassino” teve origem nele.


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