19 de dezembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 354

Efemérides 19 de Dezembro
Eve Bunting (1928)
Anne Evelyn Bunting nasce em Maghera, County Derry, Irlanda do Norte. Estuda em Belfast, casa e vai viver para a Escócia, em 1958 emigra com a família para os EUA. Frequenta um curso de escrita criativa e publica o primeiro conto em 1971, The Two Giants, baseada na tradição irlandesa e num terrível gigante escocês. Inicia assim uma carreira de sucesso que conta mais de 250 livros destinados a um público jovem. Autora muito versátil — ficção científica, romance histórico, mistério — e é uma das mais conceituadas e das mais premiadas escritoras de literatura infanto-juvenil, assina os seus livros com Eve Bunting, Evelyn Bolton e A E Bunting. Na narrativa policiaria destacam-se: Coffin On A Case premiado com o Edgar Award para Best Juvenile Mystery em 1993 e ainda Is There Anybody There? (1989) e Spying On Miss Muller(1996) nomeados para o mesmo prémio.

TEMA — BREVE HISTÓRIA DA NARRATIVA POLICIÁRIA — (26)
Continuação de CALEIDOSCÓPIO 345 (clicar)
O fenómeno “Dime Novels” atingiu os Estados Unidos da América em 1860. Por dez cêntimos adquiria-se uma revista de capa colorida, editada por Irwin Beadle, em papel rugoso e barato com histórias da Guerra Civil Americana, westerns e também policiais de pouca qualidade. Porque eram baratos, adquiriram rapidamente destaque entre classes sociais pouco cultas ou menos favorecidas.
Muito deve a expansão do género de que nos ocupamos à revista focada.
Entretanto, revelando notável semelhança nos métodos de William Russell, já citado, Charles Martel (pseudónimo de Thomas Delf), publicou “The Detective Book” (1860) e Robert Curtis dá à estampa “The Irish Police-Officer” (1861), os quais não traduzem valor assinalável que não seja histórico.
Embora de forma imperfeita, valendo pela tentativa daquele que seria um dos escritores mais de assinalar, Thomas Bailey Aldrich (1836-1907) Clicar escreveu “Out of His Head (1862), colocando o problema, sempre interessante da morte num quarto fechado'
“Les Misérables”, ainda de 1862, de Victor Hugo (1802-1885) é, segundo a tradição, um dos melhores romances do séc. XIX. A exemplo dos romances sociais de Balzac e Eugène Sue, Victor Hugo é mais um porta-voz dos proscritos, do homem posto à margem pela sociedade hostil. Não é só Balzac, Sue ou Hugo a colocarem a questão, a crónica do século abunda em histórias desta natureza.
O herói de “Les Misérables”, Jean Valjean é um outro irmão de Vautrin, inspirado como ele, já antes o citamos (Clicar), na figura histórica que foi Vidocq.
Javert, o personagem oposto de Valjean, é o polícia que o persegue, o pior dos perseguidores, por fanático da lei, não é assaltado por dúvidas ou remorsos. Vive a lei e, quando pensou que a tinha traído para obedecer a uma lei bem Superior — puniu-se pelo suicídio
A obra apresenta-se como um livro intenso, turbulento e ao mesmo tempo terno, o seu aspecto policiário passa desentendido no fogo purificador do sofrimento e amor. Victor Marie Hugo tinha algo de comum com Valjean pois fora igualmente um banido por virtude da sua oposição à tirania de Napoleão III.
Um dos mais referenciados livros de Paul Féval (1816-1887) é, sem dúvida, “Jean Diable” (1852/53), título de um hebdomadário literário e satírico lançado pelo autor e Julian Lerner, em 1862, e que se propunha publicar em folhetins, aquele romance então inédito.
Não vamos expor as peripécias por que passou a revista, mas “Jean Diable”, então dentro da tradição policial própria de um folhetim de sucesso e sensação. Féval cria mesmo um detective, Gregory Temple, da polícia londrina que, em certa medida, era um polícia científico, porventura um primeiro arremedo do futuro Thorndyke.
Temple, não o sendo totalmente, ninguém o é, crê-se um infalível na dedução e escreve mesmo um livro que se intitula “Arte de Descobrir o Culpado”
Aparecido em livro apenas em 1865, publicado, todavia, originalmente em 1862 na revista “Once a Week”, cujo primeiro número saiu em Novembro, “The Notting Hill Mystery”, de autor anónimo, é um dos livros mais interessantes da época, porquanto, sem atingir o excesso de outros autores — que reduziram todo o texto a documentação vária — narra através de cartas e informações que o inspector Ralph Henderson, da companhia de seguros, vai colhendo sobre a morte de Madame R., com a junção de um fragmento de carta, fac-símiles de assinaturas ou letras, mapas, etc… A morte foi provocada por ingestão de antimónio e o enredo é bastante interessante, pois põe em causa a questão de se saber se é possível alguém envenenar-se sob hipnose.
É uma novela policial com todo o rigor, não obstante nem sequer ser mencionada pelos historiadores, e injustamente, pois sem pôr em causa Gaboriau (Clicar) crê-se que L’ Affaire Lerouge, escrito no mesmo período é igualmente um bom romance policial.
As últimas pesquisas indicam-nos que “The Notting Hill Mystery” foi reeditado posteriormente à II Guerra Mundial, atribuindo-se a Charles Félix, um autor não registado em qualquer dicionário biográfico ou bibliográfico.
Voltemos a Féval.
Segue-se que em 1863 publica “Les Habits Noirs”, uma obra extensa, mas que pouco tem a ver com a boa experiência que nos deixara “Jean Diable”. Conquanto apresente um detective, este não passa de um miserável chantagista que possui uma agência central que cobre uma variedade de sectores e empresas com esse mesmo fim.
De escassa importância, concedendo-se a citação, é “Strong Tales of Detective”, de um autor anónimo americano, “Die Schwarze Bibliothek”, de Joseph Pfundheller, autor alemão, ambos de 1863, cujo valor é o de contribuírem para a história da narrativa do género.
Joseph Sheridan Le Fanu (1814-1873), natural da Irlanda, mestre em criar atmosfera de mistério é o criador do método realista, idealizado como um “sobrenaturalismo realista”. Esta é a sua passagem pela modalidade gótica.
Mas o mérito de Le Fanu, pouco reconhecido no seu tempo, permite-lhe passar do fantástico à intriga com natural habilidade. Neste campo, a mais consolidada contribuição contem-se no brilhante e misterioso enigma que é “Wylder's Hand” (1864).~
“Wylder's Hand” é o caso do desaparecimento de Mark Wylder, um ser vulgar sem qualificações especiais que viaja de Londres ao estrangeiro, enviando de diversas cidades do continente, cartas grosseiras e agressivas. Em dado momento surge a suspeita de que Wylder está morto e é tão convincente a suspeita que o leitor acabará por não aceitar que reapareça. É, de facto, uma novela detectivesca bem preparada, recheada de pessoas abomináveis tais como o capitão Stanley Lake, o servil procurador Larkin, etc…
Mas a mais conhecida narrativa do autor é “Uncle Silas — A Tale of Bartran Haugh”, daquele mesmo ano, publicado por entregas na revista “Dublin University Magazine”, na qual combina o melodrama com o suspense, e o mistério detectivesco, o que lhe confere imensa popularidade.
Frequentemente introduz elementos policiais nas suas narrativas e podemos encontrar, antes dos livros citados, “The House by the Churchyard”, que é de 1863 e três livros posteriores aqueles, respectivamente, “Checkmate (1871), em que se debate o tema da cirurgia plástica como recurso para escapar à lei, e “Mr. Justice Harbottle” e “Green Tea”, que exploram transtornos psicopáticos.

O ano de 1864 reserva-nos uma surpresa. Pela primeira vez é destacada uma mulher detective, uma tal Mrs. Paschal de um autor desconhecido referenciada por Michael B. Slung, na antologia “Crime on Her Mind”.
Devemos considerar a desorientação sobre tal personagem, porquanto apareceu no livro de 1864 “Revelations of a Lady Detective”, de autor anónimo, como seis meses antes tinha aparecido no livro “The Female Detective”, de Andrew Forrester (pseudónimo de James Redding Ware (1832 – 1909), ambos publicados em Londres. Nada nos diz se é a mesma personagem achamos estranho que se publique duas vezes no espaço do mesmo ano.
Entretanto, aqui fica registado o mistério.
“Memórias de um detective de Nova Iorque: arquivo privado de J.B.” (1865), de John Williams (é esta a única anotação disponível encontrada), é um livro de trinta narrativas curtas. É mais um apontamento para a história. Nenhum historiador policial considera o valor dos textos, tão pouco se lhes refere.
“Maximilien Heller” (1865), de Henry Cauvain (1847-1899), título de romance e do personagem, um misterioso neurasténico homem de cerca de trinta anos, rico e bem instalado na vida, refugia-se entre os livros e a amizade de um gato, revela-se um investigador ocasional extremamente eficiente ao desvendar um crime impossível de quarto fechado. É um Sherlock Holmes em potência — que sairá da pena de Doyle alguns anos depois desta história — com interesses idênticos, o gosto pelos gatos e pela droga, raciocínio indutivo e um amigo e confidente que não só é médico, como o nome de Wickson soa próximo de Watson.
Tire o leitor conclusões. Terá Conan Doyle lido Maximilien?
Couvain é mais conhecido como novelista histórico, conta porém no seu activo o romance policial supra exposto e um outro escrito mais tarde: “La Main Sanglante” (1985).

Bastante bem escrito mas sem ter atingido grande projecção, é o romance de Adolphe Belot, “Le Drame de la rue de La Paix” (1865)
É em 1868 que Wilkie Collins publica a famosa obra “The Moonstone”, no jornal dirigido por Dickens, All The Year Round.
“The Moonstone” começa pelo desaparecimento de um diamante (a pedra da lua), que fora pertença de um príncipe indiano e que sobre ele lançara a maldição sobre quem o possuísse.
O diamante desapareceu; nenhum detective mais apropriado para o encontrar, do que o Sargento Cuff, da polícia secreta. Coloca-se praticamente pela primeira vez o polícia oficial acima do amador.
Como é hábito, existem sempre intenções de procedência. Assim, afirma-se que Cuff é baseado no inspector Jonathan Whicher do Departamento de Detectives de Londres, o mesmo que havia dado a Dickens — com nomes trocados — a possibilidade de ensaiar algumas pequenas histórias policiais.
Cuff é um mestre na observação, na busca de indícios aparentemente disparatados, nas atitudes suspeitas e uso da psicologia. É de frio carácter britânico, sem reacções temporais, conforta-se educadamente em todas as circunstâncias, sabe manejar as pessoas segundo a classe a que pertencem, com humor ou ironia clássica do inglês normal. Guarda para si todos os componentes do puzzle até ter na mão todas as peças.

Chegou a vez de referir o melhor livro de Émile Gaboriau, já aludido, “Monsieur Lecoq” (1869) e atentar na história e personalidade do jovem agente. Antes, chama-se a atenção do leitor para o facto de existir uma tradução em português, que será apenas uma condensação da obra que, na verdade, tem mais de 600 páginas.



TEMA — CONTO DE TERROR DE NATÉRCIA LEITE — O POLVO
Eos ares se fizeram escuros de repente. De meter medo. E o vento uivou como uma alcateia de lobos. E o mar em vagas alterosas começou a varrer o convés.
Foi um pandemónio. Não houve tempo para tomar quaisquer previdências e a procela era medonha.
Ondas altíssimas elevavam o barco na sua crista, como se ele fosse uma casca de noz.
O capitão ficou aterrorizado e toda a tripulação, por certo, também.
Parecia o fim.
E agarrou-se ao cordame e a quanto pôde, com quanta força tinha, na esperança de não ser arrebatado borda fora.
A seu lado o Peralta agarrava-se também. Agarrava-se às suas roupas, com o desespero dos aflitos, e o mar bravo sacudia-o, queria-os arrebatar convés fora.
O capitão sacudiu o Peralta, para se agarrar melhor ao seu apoio, e o companheiro lá foi, engolido pelo mar, os olhos muito abertos, os lábios gritando um socorro impossível.
Depois, ainda foi o Mateus quem o chamou da amurada, agarrado precariamente ao convés, e que ele ouvia sumidamente: meu capitão, por amor de Deus, de aqui uma ajuda, senão morro…
E estendia uma mão encharcada, esquálida, olhava-o com os olhos lá no fundo do rosto, no seu terror…
O capitão fez ouvidos surdos, e no instante seguinte já lá o corpo não estava, tragado pelas vagas, sem ter tido uma ajuda.
Mas depois, o capitão como que acordou daquele tremendo medo que o prostrara e abalara. Gritou ordens, largou o cordame onde cobarde se agarrara. E ele e a tripulação tiveram uma luta de gigantes, até que a procela se foi afastando e eles acabaram por fundear numa desconhecida enseada acolhedora.
Saíram os homens, ainda trémulos, encharcados do cabelo aos pés, julgando que tinha chegado a sua última hora, numa tempestade estranha, inquietante, e que os surpreendera a todos de repente.
Contaram-se. E, apesar de tudo, apenas faltavam o Mateus e o Peralta, que ninguém, a não ser o capitão, vira sumirem-se.
Acolheram-se a uma hospedaria que por ali encontraram, comentan-do os acontecimentos.
O capitão. Secou-se, bebeu rum quente com mel e sentou-se a uma mesa, cismático.
Ele, que diziam ter-se portado como um valente, só pensava no sacão que dera ao Peralta para o desprender da sua perna, das súplicas, abafadas pela tormenta, do Mateus antes de ser engolido pela fúria das águas.
Duas grossas lágrimas formaram-se-lhe no canto dos olhos. Que medo aquele lhe dera, que terror, para esquecer todas as normas de conduta dum capitão que se preza. Demorou-se a tripulação nos comentários, trémula ainda dos acontecimentos. Resolveu-se verificar, no dia seguinte, os estragos do barco, para verem se podiam ou não continuar viagem.
O capitão recolheu-se a um tosco e pequeno quarto, cheio de arrumes de navegação mas limpo e a cheirar a maresia e boas ervas.
Deitou-se, mãos debaixo da cabeça, pensando e repensando nas suas culpas, que só ele sabia, angustiado ao máximo com quanto se passara.
E conforme o tempo decorria iam--lhe pesando as pálpebras, com o sono, até que os olhos se fecharam de cansaço.
Mal se deixou dormir e lhe envolveu o catre a borrasca tormentosa, as vagas de uma altura medonha, passando-lhe sobre a cabeça, encharcando-o e arrastando-o ou pretendendo arrastá-lo para o abismo.
E lá das profundezas veio o polvo, um polvo gigante, com os seus oito tentáculos fortes e consistentes, que o enrolaram pela cintura e pelo pescoço. O capitão gritou. Não bastava a procela! Vinha aquele monstro enrolá-lo, suga-lo!
E os tentáculos eram os quatro braços e as quatro pernas do Peralta e do Mateus, que o agarravam e não o iam largar mais. E aqueles olhos eram os olhos dos afogados, cor de mar, aflitos, suplicantes, no meio daquele corpo monstruoso e disforme.
Eram os tentáculos os braços e as pernas dos seus dois tripulantes, que o agarravam, enlaçavam e asfixiavam.
O capitão sentiu que estava perdido e, na sua aflição, arrastado para as profundezas do mar alteroso…
 No dia seguinte, pela manhã encontraram-lhe o corpo morto, enrolado em grossa corda de navegar, parte da qual lhe dera a volta, num nó indestrinçável, pela cintura e pelo pescoço possante. As mãos estavam enclavinhadas e cravadas na corda, como garras.


Sem comentários:

Enviar um comentário