2 de dezembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 337

Efemérides 2 de Dezembro
Emery Bonett (1906 - 1975)
Felicity Winifred Carter nasce em Ecclesall, Sheffield. Inglaterra. Escritora e dramaturga, em 1936 vê editado o seu primeiro romance, A Girl Must Live,— inicialmente publicado em folhetins na revista Leisure, e mais tarde, em 1939, adaptado ao cinema. A autora torna-se conhecida também pelos livros policiários que escreve em parceria com o marido John Bonett (Clicar), que em geral se encarrega do tema, enredo e planeamento do romance e Emery que se dedica ao pricesso e escrita. Além dos livros e peças que têm em comum Emery Bonett publica individualmente Never Go Dark (1940), Make Do With Spring (1941), e High Pavement (1940), editado também como título Old Mrs Camelot.



TEMA — ENIGMA CRIMINAL COM 104 ANOS — CRIME IMPUNE
No dia 31 de Maio de 1908 às 6 horas da manhã, Rémy Couillard, criado do pintor Adolphe Steinheil, entrou como de costume, no quarto do seu patrão, no primeiro andar de uma vila no beco sem saída de Ronsin no bairro de Vaugirard. Deparou, então, com um horrível espectáculo. Caído de bruços sobre o patamar da escada, o pintor estava morto. Perto dele via-se um “alpenstock” (bastão ferrado para alpinismo), mas não havia uma só gota de sangue. Na cama, a sogra do pintor, a velha Senhora Japy, estava estendida com as vestes em desordem, e um tampão de algodão na boca, também assassinada. Enfim, a mulher do pintor, Sra. Marguerite Steinheil, esta viva, estava amarrada aos pés da cama. Ajudado por um vizinho que acorrera aos seus gritos, Couillard desamarrou imediatamente a esposa do pintor, que contou como, durante a noite, três homens vestidos de longos capotes negros e de barbas postiças, haviam entrado em casa na companhia de uma mulher ruiva, estrangulando-lhe o marido e a mãe.
“Na escuridão”, explicou ela, “confundiram-me com minha filha Martha que felizmente partira na véspera com a cozinheira Mariette Wolff, para a nossa casa de campo de Bellevue, o Vert Logis. Foi, sem dúvida por isso que me pouparam.”
Nas primeiras investigações, a polícia iria recolher certo número de indícios estranhos, aparentemente valiosos, mas em termo dos quais se iria girar durante três anos, sem resultado. Notou-se em primeiro lugar, que a chave da porta da vila havia desaparecido. Nunca mais seria encontrada. Descobriu-se também no armário da cozinha um rolo de cordas semelhantes àquelas com as quais a senhora Steinheil fora amarrada.
Esta última, a única testemunha do crime, fez uma descrição detalhada da maneira pela qual o seu esposo e a sua mãe haviam sido estrangulados pelos misteriosos agressores. Na confusão da luta, que se teria desenrolado em plenas trevas, um tinteiro fora derrubado, sujando-a de tinta por todo o corpo. Além disso, uma pedra do único anel que ela então usava havia caído. Um cão de guarda, que deveria provocar muitas discussões, fora afastado do jardim na véspera, quando, habitualmente, era solto todas as noites.
A hora do crime? Um pequeno relógio de parede atirado pelos assassinos no fundo de um armário, deixara de trabalhar com a mola quebrada aos doze minutos depois da meia-noite. Tais eram as indícios desse obscuro caso, aos quais se veio juntar prontamente o depoimento do criado. Da última vez em que vira o pintor, este pedira-lhe uma garrafa de conhaque e um capo para preparar um grogue.
“Uma mulher ruiva e três homens de capote”, dissera Madame Steinheil, a quem os jornais já chamavam “Meg”, o nome que lhe davam os íntimos.
Recolhendo informações no meio dos pintores, a polícia viu-se pouco depois na pista de trezentas mulheres ruivas. Todas elas podiam ter sido antigas modelos do pintor ou ainda suas amantes.
“Adolphe, apesar dos seus bons costumes, tinha uma ligação com a cantora Nora N… afirmou Meg, que sem hesitar reconheceu a sua rival, numa fotografia. Mas a cantora estava no estrangeiro havia meses.
Dois dias depois, foram encontrados na casa de um vendedor de roupas velhas os famosos capotes que haviam sido roubadas de um teatro judeu.
Entretanto, o caso não se esclarecia. Os depoimentos recolhidos estavam longe de se harmonizar.
A polícia anunciou que a vila trágica fora violada por arrombadores dois anos antes, mas não foi capaz de dizer por quem. Um cocheiro afirmou ter conduzido, na noite do crime, dois homens e uma mulher, ruiva esta última, para o beco Ronsin. Aliás, todo o bairro viu, os assassinos, mas em horas diferentes e em diversos lugares : uns num café, palestrando em voz baixa; outros, ao escurecer, vigiando a calçada ; outros, ainda, sobre os telhados, ao luar.
Procurava-se por toda a parte a mulher ruiva, nos cabarés de Montmartre, nos cafés de Montparnasse, mas seguiam-se vinte pistas diferentes, ao mesmo tempo. Suspeitou-se assim de um jornalista americano tido como honesto, o Sr. Burkingam, que a Sra. Steinheil julgou reconhecer. Suspeitou-se de álibis indiscutíveis.
Certa imprensa julgou mesmo dever acusar os agentes da Alemanha, em virtude das origens alsacianas da vítima, o que provocou viva emoção em Berlim.
Depois de passados seis meses, a 21 de Dezembro, foi preso o criado de quarto Rémy Couillard, em cuja carteira se encontrou uma carta de Martha Steinheil ao noivo e a famosa pedra que faltava ao anel de Meg.
Dessa vez, a opinião pública convenceu-se de que fora encontrado o culpado. “Foi ele quem matou meu pobre marido…” — declarou Meg em lágrimas ao juiz de instrução, Leydet. “Agora com a cabeça repousada, livre dos atrozes pesadelos que me perseguiam todas as noites, eu reconheço-o formalmente”.
“Sou inocente…”, repetia Couillard indignado. “Foi alguém da família Steinheil que colocou esses objetos comprometedores na minha carteira. Estou a ser vítima de uma pavorosa maquinação.”
Mas vistoria realizada no seu quarto não deu nenhum resultado e as autoridades foram obrigadas, apesar de tudo, a reconhecer que as presunções eram demasiado vagas. A descoberta da pedra levantou, aliás, uma série de novas questões: Quem arrancara a pedra do engaste do anel? Porquê Couillard a teria estupidamente colocado na carteira, guardando-a durante seis meses? Ou, então, quem a teria posto lá e com que fim? Inopinadamente, verificou-se um fato espectacular: um joalheiro apresentou uma prova irrefutável das mentiras de Meg, diante dela, no gabinete do juiz.
“Esse anel, Madame? Foi a senhora mesma quem me pediu que retirasse a pedra, o que fiz devolvendo-lhe a jóia e a pedra, separadas.”
Ao ouvir isso, a Sra. Steinheil empalideceu e desmaiou.
Obrigada a reconhecer a falsidade de suas acusações, Meg foi prontamente presa e julgada por cumplicidade no crime, enquanto o infeliz Couillard, posto em liberdade, movia uma acção cível contra ela.
Enquanto isso a mulher encontrara meios de denunciar outro dos seus criados, Alexandre Wolff, também reconhecido inocente.
Encarcerada na prisão de Saint-Lazare, na cela numero 13, a Sra. Marguerite Steinheil converteu-se numa monstruosa celebridade. Os jornais publicavam listas completas dos seus amantes e davam mil e um detalhes de suas aventuras galantes, que fariam empalidecer de inveja a própria Messalina. A lista dos amantes abrangia a quase todo o Almanaque de Gota. E houve quem afirmasse, com a maior seriedade do mundo, que o próprio Guilherme II fora um hóspede discreto dos seus apartamentos de Bellevue e Meudon.
Mas acima de tudo, foi a sua aventura com Félix Faure que monopolizou a atenção. Meg era, informava-se, amiguinha do falecido presidente da República. Ora, na mesma época em que toda a cidade dizia que Félix Faure estava em colóquio íntimo com uma mulher por ocasião do seu falecimento súbito e misterioso, descobriu-se em casa de Meg uma seringa. Meg passou, então, a ser chamada a Dubarry do Vaugirard, a mulher fatal que se aproveitava dos momentos de fraqueza de suas vítimas para fazê-las absorver um entorpecente.
Os interrogatórios pareciam de resto confirmar esta tese. Dela não se conseguia arrancar senão acusações ao seu falecido esposo.
“Eu não o amava”, dizia ela. “Fui levada a fazer um casamento de conveniência mas queria divorciar-me porque ele tinha costumes infames”.
Depois, não teve dúvida em confessar a sua vida dissoluta e em reconhecer as liberalidades dos seus amantes, que ela atribula a uma certa tia Lily".
Vingativo, Couillard converteu-se em seu acusador, afirmando que ela premeditara o crime, misturando um soporífero às bebidas da mãe do marido, depois de ter telefonado a cúmplices para que a ajudassem a cometer o crime antes de amarrá-la ao leito.
Ela, porém, negava a pés juntos, contentando-se com admitir o irrefutável e em sustentar a história abracadabrante dos três fantasmas de capote e da mulher ruiva.
Passaram-se dezoito meses. A Sra. Steinheil, definitivamente acusada de uxoricídio e de parricídio, teve de responder ao júri. No intervalo, não deixou as manchetes dos jornais. Em primeiro lugar, informou-se que o juiz de instrução se fizera seu amante! Foi preciso confiar o inquérito a outro magistrado que reuniu um processo compreendendo três mil seiscentos e quarenta documentos, perfazendo treze mil e seiscentas páginas! Certas pessoas querendo com fantasia secundar a justiça, apresentar queixa contra ela pelo assassinato do Presidente Félix Faure. O bulevar tomou conto do caso
No Bouffes Parisiens, uma peça de Xanrof e de Fred Amy, “L’Impasse”, manifestamente inspirada no caso, tinha casas cheias todas as noites. Personagens apareciam e desapareciam.
Acusado por um louco, um certo Ângelo, explorador de mulheres, foi preso e depois posto em liberdade.
Resultado: cinco mil pessoas inscreveram-se para assistir ao júri, onde foram necessárias dez audiências para o julgamento de “Dubarry de Vaugirard”.
Ao cabo de tudo isso, uma absolvição; os jurados responderam “não” aos onze quesitos, segundo anunciaram as edições especiais disputadas pela multidão.
Posta em liberdade, Marguerite Steinheil foi morar na Inglaterra. Recusou o pedido de casamento do seu advogado Steinhard, e casou-se em 1917, com um nobre inglês, Lord Abinger. Enviuvou ainda uma vez, dez anos depois. Entretanto, a sua filha Martha se recusou a revê-la depois da liquidação da vila e dos móveis.
Com os anos, veio o esquecimento. Mas ninguém jamais pode afirmar, nem mesmo os detectives particulares chegados do outro lado da Mancha, se os três homens de capote preto e uma mulher ruiva amarraram realmente Meg à cama, antes de estrangular sua mãe e seu esposo.
E muita gente continua a acreditar que Félix Faure não morreu de morte natural.
Julgamento da Sra. Steinheil

TEMA — CONTO MÁRIO DOMINGUES — UMA TRAGÉDIA MESQUINHA

Acossados pela ambição, tio Ambrósio latoeiro, e sua mulher Ermelinda, assentaram em partir para as Áfricas em demanda de fortuna. Estiveram primeiramente tentados em embarcar para o Brasil mas como de lá vinham desanimadoras notícias acerca da famosa árvore das patacas, que já não florescia nem dava fruto, decidiram optar pelo continente negro, pleno de riquezas abandonadas. Constava-lhes que andavam por lá os diamantes pontapés, sem que lhes desse mais importância do que a dispensada na sua aldeia às pedras dos caminhos. Os pretos já não comiam as pessoas assadas no espeto, como noutros tempos, nos tempos de D. Sebastião, e quem tivesse lume no olho e fizesse pacto com os feiticeiros, que eram homens de muito saber, depressa alcançaria a fortuna que, em muitos anos de trabalho, tio Ambrósio não granjearia a remendar panelas e cafeteiras.
Um engajador de boas falas, achando-os predispostos, decidiu-os a emigrar. E como Ambrósio a quem a ideia seduzia, aparentasse ainda certa relutância em sacar do fundo do baú uma parte do pé-de-meia para dispêndios da viagem, o engajador assediou de perto e em particular a tia Ermelinda, dizendo-lhe em segredo:
— Vossemecê, aqui nesta aldeola do Minho, se o ti Ambrósio morrer, fica na miséria, sem uma broa para entreter a fome. Em África pode fazer fortuna e, mesmo que ele morra pelo caminho, chega aqui com dinheiro para luzir, para comprar a quinta dos Setemontes e viúva, casar com o Henrique Brasileiro, que está cheio de ouro.
As palavras do engajador fizeram germinar com mais pujança as ambições de Ermelinda. O pensamento que no seu íntimo lhe era mais grato acarinhar, era o do possível matrimónio com o Henrique brasileiro, que a desprezara anos antes pela sua pobreza. Foi mais por-despeito, do que por simpatia que ela se unira ao tio Ambrósio que, apesar de rijo, não era rico e já entrara na casa dos cinquenta.

Não levou muito tempo a convencer o marido a partir. O engajador, mediante boa percentagem, arranjou-lhes as passagens e, um belo dia, antevendo as riquezas que os esperavam, lá partiram para a Guiné, na terceira classe incómoda de um paquete nacional.
Acolheram-se a uma povoação insignificante, onde não haveria uma dúzia de brancos, entre a população negra. E, ao cabo de seis meses, começaram a descrer das maravilhas que tinham ouvido contar acerca das Áfricas misteriosas. Havia alguns feiticeiros por lá, era certo, mas o que de mais extraordinário fizeram ante os seus olhos assombrados, foi, uma vez que Ermelinda se queixara de uma forte dor num braço, arrancarem-lhe, sem que na pele quedasse o menor vestígio alguns pregos e pedacinhos de ferro, que se ocultavam dentro da carne dorida.
O estranho facto assombrara-os, mas não satisfizera suas ambições insofridas.

Principiavam a desanimar quando, uma tarde, um árabe, que acasos misteriosos levaram àquela terra, embuçado na sua vestimenta branca lhes bateu à porta.
Quis o misterioso visitante falar em segredo ao tio Ambrósio. No coração do latoeiro penetrou luminoso raio de esperança. Pressentiu que se lhe ia revelar algumas das sonhadas maravilhas.
O Árabe chamou-o a um canto da casa e falou-lhe baixinho para que ninguém mais ouvisse o que dizia. Mas Ermelinda, curiosa como todas as mulheres, escutou tudo, oculta atras dum tabique.
— O Senhor — dizia o árabe, dirigindo-se ao tio Ambrósio — possui uma grande fortuna enterrada no seu quintal.
Uma chama de alegria brilhou nos olhos do latoeiro.
— Mas nunca a poderá encontrar sem o meu auxílio — prosseguiu o árabe, acarinhando uma barba espessa e emaranhada. — Se me promete que dividirá comigo essa quantia, que nos poderá transformar nos homens mais ricos deste mundo, revelar-lhe-ei o local exacto onde ela se encontra.
O tio Ambrósio teve de amparar-se à parede para evitar que a comoção o derrubasse. Chegara, enfim, a almejada felicidade.
— Exijo ainda duas condições -— continuou serenamente o mouro, afectando não atentar na emoção do europeu — guardar segrede perante sua mulher e ajuntar ao ouro que lhe vou desencantar todo o dinheiro que possua.
Ambrósio recuperou o ânimo para dizer que a última condição era violenta, mas o árabe ergueu o dedo ao céu, invocando o testemunho de Alah, para afirmar a- sua sinceridade e acrescentou:
— O seu dinheiro juntar-se-á a essa grande fortuna para anular o malefício que o ouro oculto contém. Voltaremos a enterrar o tesouro e o seu dinheiro no mesmo local. Dez dias depois tornarei aqui para dividirmos irmãmente os nossos bens.

Sem uma palavra, o coração palpitante no peito, Ambrósio acedeu e conduziu o árabe ao quintal. Com o auxílio duma enxada cavaram fundo o buraco ate que um grande pode de barro surgiu. O latoeiro espreitou e viu muitas libras em ouro reluzentes e novas cintilando ao sol. Para convencer-se melhor da realidade meteu a mão em garra e trouxe um punhado de ouro. Esfregou depois os olhos para ter a certeza de que não estava sonhando.



O árabe contemplou-o com um sorriso misterioso e Ermelinda, fremente emoção, espreitava a cena deslumbrante. E como o europeu não se decidisse a repor no seu lugar o punhado de livros, juntando-lhe as do seu pé-de-meia, o mouro incitou-o:
— Vamos, Ambrósio, apressemo-nos que pode alguém surpreender-nos.
Ambrósio esvaziou no buraco as escassas libras das suas economias, que tilintaram lá dentro, humildes, envergonhadas de se encontrarem entre tantas irmãs.
Voltaram a tapar a cova, apagando os vestígios da escavação.
A porta, o árabe, despedindo-se, disse:
— Ambrósio, dentro de dez dias poderemos ser donos do mundo. Adeus…
E desapareceu.
— Que te queria aquele homem? — perguntou Ermelinda, mal o árabe se perdeu de vista.
Ambrósio, que não sabia ter segredos para com a mulher, fez esforços sobre-humanos para não contar a verdade, a deslumbrante verdade que lhe enchia o pensamento, e repondeu:~
— Mais tarde o saberás…
Ela não se mostrou mais curiosa porque sabia, tão bem como o marido, todos os pormenores do estranho acontecimento.

Nessa noite, nem um, nem outro, puderam conciliar o sono. O tesouro ocupava todos os seus pensamentos. Sonhavam acordados, fingindo que dormiam. Ermelinda visionava o seu regresso a terra, com grandes cordões de ouro ao pescoço, anéis enormes em todos os dedos. Pensava nas casas e quintas que poderia comprar e na riqueza enorme que ainda lhe sobraria para ocultar num baú chapeado de ferro, cuja fechadura de segredo só ela poderia abrir de madrugada, a horas mortas, quando todos dormissem, para à vontade, mergulhar as mãos nas libras tilintantes e luzidias.
De súbito, uma ideia sinistra atravessou-lhe a mente. Repeliu-a logo em seguida, receosa, anelante, como pessoa que foge do abismo que a seduz. Mas, lentamente, perversa, cautelosa, a ideia voltou de mansinho a bater-lhe à porta das ambições.
Ermelinda bem a pressentia, mas, enganando-se a si própria, fingia não se aperceber que ela estava ali próxima, disfarçada na sombra, esperando com paciência. Não se afastava — a perversa! E já andava em torno da sua consciência — a maldita e sedutora ideia! E acabou por se lhe apresentar, frente a frente — a desavergonhada — e falar-lhe sem hesitação nem pudor:
— Ermelinda — dizia-lhe ela — não sejas tola. Com essa fortuna que esta oculta no quintal podes voltar à terra e casar com o Henrique brasileiro. Tens a felicidade ao alcance da tua mão. Sim, matas o teu marido. Quem saberá, neste ermo, nesta terreola onde não há justiça, que tu assassinaste o tio Ambrósio? Mata-o e embarca para Portugal. Toda a gente admitirá que ele morreu de febres malignas.
Ermelinda adormeceu a altas horas,e sonhou que tinha regressado à aldeia, onde a recebiam com foguetes e musica.

No dia seguinte, a despeito de instada pelo marido, não quis jantar. Sentia-se adoentada. Tio Ambrósio bebeu o caldo distraidamente, pensando que já não faltavam senão nove dias para ser, como vaticinara o árabe, dono do mundo.
Meia hora depois sentiu que algo lhe queimava as entranhas. Era uma dor violenta, brutal, como se uma garra cruel lhe dilacerasse o estômago. Antes de morrer, perante o olhar ansioso e duro da mulher, que lhe espiava as contorções do rosto, Ambrósio com a clarividência que dá a proximidade da morte, ainda rouquejou:
— Miserável, envenenaste-me para ficares com o tesouro! Maldita sejas!
Ergueu-se, num último assomo de energia, correu para a porta e foi cair, de borco, sem vida, sobre o local onde as libras se ocultavam.

A morte do tio Ambrósio não causou estranheza. Ermelinda chorou muito e enterrou-o. E pôs-se a contar impaciente os dias que faltavam-para o regresso do árabe. Mas, ao décimo dia, o misterioso feiticeiro não apareceu.
Não se afligiu, ela com o caso. Julgou ver na ausência do árabe mais um desígnio da boa sorte. Tudo se conjugava para que fosse ela, só ela, a única possuidora do grande, tesouro. Na manhã seguinte, munida da enxada, cavou desesperadamente a terra. O pote maravilhoso surgiu, enfim, mas — Ó, surpresa! Ó fatalidade! — estava vazio.


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