14 de dezembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 349

Efemérides 14 de Dezembro
Wolf Haas (1960)
Nasce em Maria Alm, Salzburg, Áustria. Redactor em agências de publicidade, escreve entre 1996 e 2003 sete romances policiários, seis deles com o detective Simon Brenner como personagem principal. Os seus livros são marcados por uma sátira social forte, tensão e humor lacónico. Wolf Haas é um dos autores de maior sucesso com obras adaptadas a filme e detentor de uma dezena de prémios, dos quais se destaca o Deutsche Krimipreis — o prémio de crime alemão —, atribuído por três vezes ao escritor, em 1997 com Auferstehung der Toten, em 1999 com Komm süßer Tod e em 2000 com Silentium!; em 2000 recebe também o Burgdorfer Krimipreis, um prémio suíço de atribuição bienal para a literatura policiária de língua alemã.


TEMA — ALGO SOBRENATURAL — O DESENHO DO DESTINO
De W. F. Harvey
Creio ter vivido hoje o dia mais fantástico de minha vida e, enquanto os acontecimentos estão frescos na minha memória, quero transcrevê-los para o papel com a maior clareza possível.
Direi, para começar, que o meu nome é James Clarence Withencroft.
Tenho quarenta anos e gozo perfeita saúde, jamais soube o que é um dia de doença.
Profissionalmente sou desenhista, não de muito sucesso, mas ganho o suficiente para atender às necessidades imediatas, com os meus trabalhos em branco e preto.
O meu único parente próximo, uma irmã, morreu há cinco anos, de modo que sou independente.
Pela manhã tomei o pequeno-almoço às nove e, depois de dar uma espreitadela ao jornal da manhã, acendi o cachimbo e dei asas à imaginação, na esperança de descobrir algum motivo para o lápis.
A sala, embora de porta e janelas abertas, estava opressivamente quente e eu acabara de decidir que o local mais fresco e confortável nas vizinhanças seria o fundo da piscina pública, quando a ideia surgiu.
Comecei a desenhar. E estava tão atento ao meu trabalho que deixei o almoço intacto, parando apenas quando e relógio da Catedral bateu as quatro horas.
O resultado final — para um esboço apressado — era, tive a certeza, o melhor trabalho que já fizera.
Mostrava um criminoso no banco dos réus, imediatamente após o juiz dar a sentença. O homem era gordo — imensamente gordo. A carne pendia em rolos em volta do queixo; pregueava o pescoço enorme e grosso. Tinha o rosto completamente barbeado (talvez devesse dizer que uns dias antes se barbeara completamente) e era quase careca. Estava sentado no banco dos réus, os dedos curtos e desajeitados agarrados à balaustrada, olhando diretamente para a frente. O sentimento revelado pela expressão não era tanto de horror como de completa e absoluta frustração.
Não parecia haver nada suficientemente forte naquele homem para sustentar aquela montanha de carne.
Enrolei o desenho e, sem saber bem por quê, guardei-o no bolso. Então, com a rara sensação de felicidade que nos dá a consciência de um trabalho bem feito, deixei a casa. Creio que saí com a ideia de ir a Trenton, pois lembro-me de ter caminhado pela Rua Lytton e virado à direita, ao longo da Estrada Gilchrist — ao pé da colina onde os homens trabalhavam nas novas linhas do caminho-de-ferro.
Dali por diante, tenho apenas uma vaga recordação dos lugares por onde passei. Estava completamente consciente, apesar do terrível calor que emanava do asfalto poeirento, como uma onda quase palpável. Ansiei pelos trovões que as fileiras que nuvens cor de cobre prometiam, pendendo baixas no céu para os lados do ocidente.
Devo ter caminhado uns oito ou nove quilómetros, quando um menino me despertou daquele estado de sonho, perguntando as horas.
Eram vinte para as sete.
Quando ele, se afastou, tratei de verificar onde me encontrava. Descobri que estava diante de um portão que conduzia a um pátio rodeado de uma faixa de terra sedenta, onde havia flores — mostarda roxa e gerânios vermelhos.
Acima da entrada estava uma tabuleta com a inscrição:
CHS. ATKINSON
MONUMENTOS EM PEDRA
Trabalhos em mármores ingleses e italianos.
Do pátio vinha um assobio alegre, o barulho de golpes de martelo e o som frio do aço em contato com a pedra.
Um súbito impulso fez-me entrar.
Um homem estava sentado de costas para mim, ocupado a trabalhar uma laje de mármore curiosamente raiado. Ao ouvir meus passos, voltou-se e parei de repente.
Era o homem que eu desenhara e cujo retrato trazia no meu bolso.
Ali estava ele sentado, enorme, elefantino, o suor escorrendo da careca que , enxugava com um lenço de seda vermelho Mas, embora o rosto fosse o mesmo, a expressão era absolutamente diferente.
Cumprimentou-me sorridente, como se fôssemos velhos amigos e apertou-me a mão.
Desculpei-me pela intromissão.
— Está tudo tão quente e ofuscante lá fora — expliquei — que isto me parece um oásis no deserto.
— Não sei nada sobre oásis — respondeu — Mas sem dúvida que está quente, quente como o inferno. Sente-se, senhor!
Apontava a extremidade da pedra de túmulo na qual trabalhava e eu sentei-me.
— Belo pedaço de mármore, esse que o senhor tem aí — disse eu.
Ele abanou a cabeça:
— De certo modo, é — respondeu. — Esta superfície aqui é tão boa como qualquer um desejaria, mas há uma grande falha nas costas, embora creia que o senhor nunca chegasse a notá-la. Eu nunca poderia fazer um bom trabalho realmente com um pedaço de mármore assim. Neste verão forte, tudo vai bem: o calor infernal não a prejudica. Mas espere só até o inverno chegar. Nada como um pouco de gelo para descobrir os pontos fracos de uma pedra.
— Então, para que é isso?
O homem desatou a rir.
— Custaria a acreditar, se dissesse que é para uma exposição, mas é a verdade. Os pintores fazem exposições, também os pasteleiros e carniceiros; nós também fazemos. Todas as últimas novidades em pedras tumulares, sabe?
Continuou a falar sobre mármores — os que mais resistiam ao vento e à chuva, os mais fáceis de trabalhar; depois falou sobre o jardim e uma nova espécie de cravos que comprara. E, ao fim de cada minuto, largava as ferramentas, limpava a careca lustrosa e amaldiçoava o calor.
Eu quase nada dizia, pois sentia-me pouco à vontade. Havia algo misterioso, sobrenatural, no fato de encontrar aquele homem.
Primeiro tentei convencer-me de que já o vira antes, que aquele rosto, desconhecido para mim, se encontrava nalgum local recôndito da minha memória, mas sabia que apenas tentava encontrar um meio razoável para me iludir.
O Sr. Atkinson terminou o trabalho, cuspiu no chão e levantou-se com um suspiro de alívio.
— Pronto! Que acha disso? — indagou com ar de evidente orgulho.
A inscrição, que eu lia pela primeira vez, era esta:

À SAGRADA MEMÓRIA DE JAMES CLARENCE WITHENCROFT
NASCIDO A 18 DE JANEIRO DE 1916
SUBITAMENTE FALECIDO A 20 DE AGOSTO DE 1966
“Em plena vida, estamos na morte”

Durante algum tempo, mantive silêncio Depois, um arrepio gelado percorreu-me a espinha. Perguntei-lhe onde vira aquele nome.
— Ora, não o vi em lugar nenhum — respondeu o Sr. Atkinson. — Queria um nome qualquer e gravei e primeiro que me veio à cabeça. Por que pergunta isso?
— É uma estranha coincidência, mas acontece que é o meu.
Ele deu um assobio longo e baixo. — E as datas?
— Posso apenas responder pela data meu nascimento, que está correcta.
— A outra data é o dia de hoje. Que coisa mais esquisita!
Mas ele sabia menos do que eu. Contei-lhe sobre o meu trabalho daquela manhã, Tirei o desenho do bolso e mostrei-lho. Quando o olhou, a expressão do seu rosto alterou-se, até que se tornou mais e mais semelhante ao homem que eu desenhara. — E ainda anteontem — declarou — eu dizia a Maria que não existiam fantasmas! Nenhum de nós vira um fantasma, mas eu compreendia o que ele queria dizer.
— Com certeza o senhor ouviu o meu nome — aventurei.
— E o senhor deve ter-me visto em qualquer lugar e esqueceu-se! Não esteve em Clacton-on-Sea, em Julho passado?
Eu jamais estivera em Clacton. Ficámos silenciosos durante algum tempo. Olhávamos ambos a mesma coisa: as duas datas na pedra tumular, e uma estava certa.
— Entre e jante connosco — disse o Sr. Atkinson.
A sua esposa era uma mulher alegre e pequenina, com as bochechas luminosas e coradas da gente do campo. O marido apresentou-me como “um seu amigo que também é artista”. O resultado foi infeliz, pois depois de retiradas as sardinhas e o agrião, ela trouxe uma Bíblia de Doré e tive de sentar-me e expressar a minha admiração durante quase meia hora.
Voltei ao quintal e encontrei Atkinson sentado na pedra, a fumar.
Pegámos a conversa, no ponto em que a tínhamos interrompido.
— Perdoe-me a pergunta — disse eu — mas não sabe de nada que tivesse feito capaz de o levar a um tribunal?
Ele abanou a cabeça negativamente.
— Não estou falido, o negócio está a prosperar. Há três anos atrás dei uns perus a alguns guardas, na época do Natal mas é só do que me lembro. E eram pequenos também. — acrescentou, pensativo.
Levantou-se, pegou uma lata na varanda e pôs-se a regar as plantas.
— Duas vezes por dia em tempo de calor — comentou — e assim mesmo o calor as vezes leva a melhor sobre as mais delicadas. E os fetos, Santo Deus! Nunca poderiam suportar tanto calor. Onde mora?
Dei-lhe meu endereço. Levaria uma hora andando depressa para chegar a casa.
— O caso é o seguinte — declarou ele. — Vamos encarar os factos. Se o senhor voltar para casa esta noite, correrá o risco de acidentes. Um carro poderá atropelá-lo e há sempre as cascas de bananas ou laranjas, sem falar em escadas que caem.
Falava do improvável com tanta seriedade que seria motivo de risos seis horas antes. Mas eu não ri.
— O melhor que podemos fazer — continuou ele — é o senhor ficar aqui até à meia-noite. Vamos subir e fumar; lá dentro estará mais fresco.
Para minha surpresa, concordei.
Estamos sentados agora num aposento comprido e baixo, sob as telhas. Atkinson mandou a esposa dormir. Está ocupado em afiar algumas ferramentas numa pequena pedra de afiar a óleo, fumando um de meus charutos de vez em quando.
O ambiente parece carregado de eletricidade. Escrevo isso nesta mesa balouçante diante da janela aberta. A perna da mesa está quebrada e Atkinson, que parece um homem hábil com suas ferramentas, vai arranjá-la logo que termine de afiar o seu cinzel.
Já passa das onze agora. Em menos de uma hora partirei.
Mas o calor é sufocante.
O bastante para enlouquecer um homem.


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