23 de dezembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 358

Efemérides 23 de Dezembro
Poul Ørum (1919 - 1997)
Poul Erik Nørholm Ørum nasce em Nykøbing Mors, Ilha de Mors, Dinamarca. Jornalista de profissão inicia a sua carreira literária em 1953 e até 1992 publica 39 livros: poesia, ensaios, memórias, colectâneas de contos e, principalmente romances, entre eles policiários. Os livros do autor são baseados nas suas próprias experiências. O personagem central dos policiários é o Inspector Jonas Morck,— alter-ego de Poul Ørum — que surge pela primeira vez em 1972 em Syndebuk (Bode Expiatório em tradução literal).


TEMA — CONTO DE EDGAR CAYGILL (ROUSSADO PINTO) — O NATAL DE TUKAN MACKENZIE
Tukan MacKenzie deu dois ou três passos dentro do saloon e sentiu um estremecimento. Pela primeira vez entrava num salão daqueles e ia encontrá-lo vazio, estranhamente vazio.
Nem um único cliente — nem sequer o taberneiro. Abandonado, frio, com algo no ambiente que fazia lembrar uma sepultura.
As cadeiras, desirmanadas, espalhadas pelos cantos, as mesas fora de ordem, o chão pejado de papéis, bolas de tabaco e invólucros de cartuchos, as garrafas, sujas de poeira, mal alinhadas em prateleiras esburacadas, os espelhos cobertos de nódoas, e, aqui e ali, ratos a passearem com aparente descontracção.
Tudo a representar a desordem, o desleixo que era estigma da vida naquele rincão que todos conheciam pelo nome de “Oeste” — o Oeste americano.
MacKenzie encostou-se ao balcão e bateu, aborrecido, no tampo do balcão de madeira, com ânsia de ver gente, conversar, de sentir alguém junto de si. Mas aos seus berros e socos, respondia o silêncio. Ninguém estava, nem ninguém aparecia.
Ele sabia porquê: era noite de Natal. Como se a noite de Natal não fosse como qualquer outra…
Esta, então, até trouxera o incómodo da neve. Lá fora, nas ruas, nos campos, nas montanhas, a neve caía em suaves farrapos, no desejo puríssimo de dar ao mundo vestes novas, mais purificadoras. E a neve derretia-se, tornava-se água, misturada com o solo.
MacKenzie ainda sentia as roupas molhadas, o corpo gelado, as mãos e os músculos tolhidos. Precisava de beber, conversar, andar, fazer qualquer coisa…
Furioso com o silêncio e com o abandono do salão, com uma estranha sensação no corpo — calcule-se, uma sensação de medo, ele!... — acabou por se calar e ficou a olhar o vácuo que o rodeava.
Naquele momento odiou tudo: o seu destino, o seu semelhante, a vida no Oeste, tudo, tudo! Não podia pensar que houvesse homens, habituados ao fumo e à pólvora, que se preocupassem com ninharias sentimentais como o Natal!
Que raio de magia podia haver nesta palavra para tornar os homens maus em bons, e, numa comunhão inconcebível, chamarem-se “irmãos”?!
Neste dia, nesta noite, até o xerife deixava os presos saírem da prisão para visitarem as famílias. É claro que isto nunca lhe acontecera, porque então bem podia o xerife esperar pelo seu regresso…
Voltou a gritar, a bater no balcão, agora mais enfurecido. Os ratos desapareceram, as garrafas tilintaram num mudo protesto. Mas o salão habituado ao calor dos fumos, às grandes gritarias e bebedeiras, permaneceu indiferente, mais frio do que nunca.
Este sossego, esta calma, este abandono levaram a ira do homem ao paroxismo — e sacou do Colt, sem saber o que fazia, e olhou em redor em busca de um inimigo, que não existia — um inimigo que era, ao fim e ao cabo, o silêncio.
Não! Ele nunca gostara do silêncio. Sem saber porquê, lembrava-lhe a morte; para ele, era a imobilização, o esquecimento, a decomposição do corpo…
Atravessou a sala em passadas largas e chegou à escada que levava ao andar superior. Subiu-a aos saltos, de três em três degraus, a bater forte com os tacões das botas, na ânsia de criar ruídos à sua volta. Correu o varandim, abriu todas as portas, mas sempre a mesma solidão.
Com tudo a girar à sua volta, mais embriagado pelos nervos do que pelas bebidas, nas quais mal chegara a tocar, disparou o Colt… uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes… até o tambor anunciar com um clic sonoro que estava vazio.
O fragor das detonações encheu o ambiente, fê-lo pulsar, quase lhe deu vida, mas foram segundos ilusórios porque o silêncio voltou!
Então uma espécie de fúria destruidora apossou-se de Tukan MacKenzie. Desceu as escadas, voltou a encher tambor da arma e colocou-se no meio do salão. Tiro após tiro, rebentou com as garrafas, os espelhos, e os candeeiros.
A escuridão envolveu-o, rasgada pelo brilho dos disparos. Nessa escuridão brilhavam os seus olhos como metal aquecido ao rubro.
De súbito sentiu a presença de vultos que se aconchegavam num dos cantos do salão. Voltou-se, rápido, e disparou, Mas os vultos recebiam as balas e continuavam aconchegados, sem se moverem.
“Alucinações!”, pensou. Riu-se. Os vultos não eram mais que os homens que ele abatera ao longo da sua vida e que a sua consciência colocara ali…
Virou-lhe as costas, mas eles apareceram no canto oposto, a fitá-lo, a prendê-lo às suas formas imprecisas. Sentiu um arrepio. Fechou as pálpebras e voltou a abri-las… Não se sumiram. Continuavam lá…
Então um dos vultos recortou a figura do velho Folowed, com os seus olhos bondosos, os lábios a implorarem compaixão, dizendo-lhe que constituía o único amparo de uma filha… Viu-se, indiferente, a disparar sobre ele e a fugir com o juro que o velho amealhara ao longo da vida, ou seja, de toda uma existência de trabalho.
Noutro dos vultos, aquele meio escondido e quase a desaparecer por detrás da coluna, reconheceu Keen, com a sua ingenuidade estúpida, que ele tão bem aproveitara para roubar.
O terceiro — não se enganava! — Era Mitchum, o caixa da agência de diligências, que lhe servira de alvo para que ele pudesse fugir com quatro barras de ouro.
E os outros, os outros — oh, todos se juntavam, todos vinham visitá-lo naquele salão que sabiam abandonado e silencioso, para o martirizarem, para o enlouquecerem — para o matarem!
A este pensamento, MacKenzie riu, riu tanto que se esqueceu que ria, e recuou, ao mesmo tempo que via os vultos avançarem, crescerem sobre si, tentando agarrá-lo…
Tanto recuou que passou a porta e se encontrou na rua, a andar, de costas, sem sentir a neve e a humidade, vendo os vultos a crescerem de número, cada novo vulto era uma velha cara sua conhecida — e morta.
Os vultos não eram mais do que a sua consciência a sofrer pela primeira vez os efeitos de todo um passado de crimes e morte

MacKenzie, de olhos esgazeados, via agora os vultos fundirem-se na neve que caía, transformando-se eles próprios em neve, tão brancos como sentia branco o gelado o sangue que lhe corria nas veias. O cabelo e a barba empastados em água, escorriam, o colete colava-se-lhe à camisa, esta ao corpo — e começou de novo a recuar, sem distinguir as luzes esbatidas que se divisavam através dos vidros foscos das janelas das habitações, sem ouvir as gargalhadas nem a música que partia desses lares engrinaldados pelo amor da maior noite do ano a noite de Natal, que unia todos os corações na presença de Deus!
Tukan MacKenzie, pela primeira vez, além de se sentir só e perseguido pelos xerifes de todos os Estados — sentia-se perseguido por si próprio!
Ele pressentiu que não podia escapar, que era o fim, a loucura. Sentiu o desejo de saltar para o cavalo e fugir — fugir de quê? — do Passado que fora de destruição, roubo e morte.
Mas os vultos começaram a crescer, ultrapassaram os telhados das casas e ligavam-se lá em cirna, no céu, de onde a neve caía. Bruscamente começaram a curvar-se sobre ele, com mil olhos e mil mãos, a tentarem agarrá-lo.
Tentou gritar por socorro. Não conseguiu. Da garganta saíam-lhe apenas gemidos de desespero a implorarem misericórdia, que fora coisa que nunca sentira por alguém… Suou… O medo instalou-se em cada uma das células do seu corpo. A neve parecia asfixiá-lo. Malditos fantasmas que resistiram às suas balas!
Que podia ele fazer? Correr, afastar-se, sair daquela maldita cidade… Era isso! E quis correr, mas viu-se pregado ao solo como uma estátua. E os vultos adensavam-se à sua volta…
Sim, era o fim. Olhou para as mãos, para os braços, para o corpo, como se já não fossem seus… Esperou que os vultos o esmagassem, o trucidassem nas suas mil mãos, que o deixassem para ali, à neve, como um despojo de carne, ossos e sangue misturados.
Apertou os lábios, fechou os olhos, e consciente do medo que sentia, esperou pelo vácuo, pelo vazio — pela morte.
Sentiu que lhe agarravam na mão… “Era um deles”, pensou. Aguardou que os outros fizessem o mesmo, mas em vez disso, ouviu uma vozinha de criança, suave e trémula, que lhe implorou:
— Boa noite, senhor. Por favor, uma esmola…
Tukan MacKenzie abriu os olhos e, meio tonto, como se se tivesse libertado de um ciclone de pregos, olhou em volta, e viu-se na rua, a neve a cair, gargalhadas e música a saírem das casas, o céu a descortinar-se em imagem de sossego, calma, puro…
Baixou a cabeça — agora bem liberto da alucinação que o atormentara — e reparou numa criança, um rapaz de sete ou oito anos, em cabelo, coberto por trapos, quase irreconhecível pela neve que o cobria
 — Quem és tu? — perguntou em voz forçada, que a si própria parecia irreal.
— Quem sou? — replicou o garoto. — Chamo-me Chick…
E, ao dizer o nome, o olhar dele era tão triste e doloroso, que Tukan, involuntariamente, passou-lhe a mão pela cabeça, afastando a neve, e puxou-o para si.
Levantou-o à altura da sua cara, sorriu-lhe, e num gesto súbito, que, nem ele próprio saberia explicar, colocou-o sobre os ombros.
— Os teus pais? Onde moras — inquiriu.
— Os meus pais? Não tenho… nem nunca os conheci.
— Então quem toma conta de ti?
— De mim? — O garoto olhou o homem como se ele não regulasse bem da cabeça. — Quem havia de ser? Eu… não tenho ninguém...
Tukan MacKenzie nada mais disse. Devagar, encaminhou-se para o seu cavalo, amarrado a poucos passos em frente do saloon. Soltou-o, afagou-o no pescoço, e sentou-se na sela, sempre com o garoto sobre os ombros.
Encaminhou o animal para fora da cidade, e dirigiu-se para a montanha. Ali, numa das cavernas, estava o seu esconderijo.
Quando lá chegou, sentou Chick sobre a manta onde dormia, deu-lhe um bocado de pão e carne seca, que era o que tinha, e foi aliviar o cavalo da sela, limpá-lo da neve e dar-lhe a ração. Quando regressou, o garoto dormia…
Cobriu-o com metade da manta e ficou a olhar o seu rosto magro, sujo, de grandes olheiras, mas onde brilhava o vislumbre de um sorriso, como se estivesse a viver um sonho lindo.
E foi naquele rosto e naquele sorriso que ele, de repente, compreendeu o que significava a noite de Natal.
A noite de Natal era aquele corpo pequeno, de rosto tranquilo, sorrindo de confiança, que se agarrara ao seu braço criminoso como se agararia a um braço puro…
A noite de Natal era aquela sensação de liberdade que sentia dentro de si, a ternura que despertara no seu coração, a satisfação e o orgulho de saber que alguém lhe confiara a vida e o futuro…
A noite de Natal era a neve, o coração quente, as gargalhadas e a música que vinham da cidade…
Tukan MacKenzie veio até à entrada da caverna, tirou o cinturão com o Colt e atirou-os a ambos para longe. “Sim, Chick “, murmurou, “vou mudar de vida, porque a partir de hoje quero ser um pai para ti e dar-te uma boa educação e um belo futuro…”
No céu uma estrela pareceu abrir-se toda em luz — talvez num maravilhoso sorriso — e a neve tornou-se mais branca, mais pura.


TEMA — UM CONTO ESCOLHIDO — PROMESSA CUMPRIDA
De Octavus Roy Cohen
— Não chegou tarde de mais — disse o bondoso e circunspecto médico. — Mas, naturalmente o senhor compreende que não há esperanças. Ela poderá viver meia hora. Talvez duas. Não mais do que isso.
O jovem estava abatido. Suas roupas amarrotadas, bem demonstravam que tinha viajado.
— Eu atravessei o país, apenas para estar com ela — explicou — Não há mesmo nem uma hipótese. Foram empregados todos os esforços?
— Sim. Mesmo a sua presença pouco adiantará. Fará apenas com que morra feliz. Ela está consciente. O cérebro está perfeitamente lúcido. Você… você deveria ficar contente em saber que ela sempre e chamou.
O quarto da doente estava mergulhado em agradável penumbra.
O jovem entrou de mansinho, parou no limiar da porta. A enfermeira, como que atendendo a um sinal, retirou-se. O ar estava saturado de desinfectantes.
Fora uma coisa terrível aquele desastre de automóvel, em consequência do qual estava em causa a vida daquela bela jovem; vida nem bem começada!
A sua voz — vibrante e alegre, sem um tremor — chegou aos ouvidos dele : “Edward!”.
Ele ajoelhou -se ao lado da cama, os braços envolvendo aquele corpo frágil, a cabeça aninhada no seu peito. Se este abraço lhe causava dor, ela não o demonstrou, porque era uma dor glorificada pelo amor: era um momento de suprema felicidade, do qual já tinha perdido a esperança! Houve uma época — três anos antes — em que ele fora embora, cheio de coragem, prometendo voltar e para casar-se com ela.
Oh, Cicely! — exclamou consternado  —Eu vim assim que soube. Eu voltei…
— Para me dizeres adeus, amor.
— Não! Não foi para isso! Sim, querido, uma hora ou duas ou três. Mas se quiseres, senta-te aqui e segura a minha mão ou fica com a cabeça onde está. Nunca soube quanto te amei. Sempre te amarei, mesmo depois. Ficarás comigo e o teu beijo de despedida tornará mais feliz o fim da minha jornada.
O seu rosto lindo contorceu-se de dor.
— É tudo tão diferente do que planeámos. Voltarias para casar comigo.
Dois olhos assustados fixaram-se nos dela.
— Eu voltei para casar contigo. Aqui, agora!
— Farias mesmo isso?
— Se tu aceitares,
— Oh! Meu querido Só para saber, embora por um momento apenas, que sou a tua mulher.
Ele saiu do quarto e falou apressadamente com o médico. Depois sentou-se em silêncio à beira da cama, até que o padre chegou com o livro de orações e a licença de casamento.
Não falaram, e se os olhos dele estavam turvados pelas lágrimas, os dela brilhavam como estrelas.
E ali, no limiar de um outro mundo, uniram-se em matrimónio.
Depois ficaram sós — o noivo cheio de vida; a noiva, prestes a morrer.
Ela não o deixara explicar porque não voltara antes. O ténue fio da vida quase se partira, não permitiria que os seus últimos e preciosos momentos ficassem arruinaos por outro pensamento que não fosse o maravilhoso presente.
Era a sua esposa que estava a morrer, e se havia algum sentimento de angústia por lhe ser negada a realidade do casamento… a certeza de que ele estava ali, mesmo que por pouco tempo, livrava-a de toda dor.
Era como se as portas do paraíso já estivessem abertas para ela, antes que o Anjo da Morte a tocasse com o seu benfazejo e balsâmico condão.
A sua voz era quase que um murmúrio, quando pediu para que ele se chegasse mais perto. Os seus lábios uniram-se por um momento, num longo beijo, e ela, então, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e encostou-a em seu peito. Ele pode ouvir o bater do seu cora cão, fraco… mais fraco… e depois parar. E os seus soluços confirmaram, àqueles que estavam no quarto contíguo que o fim chegara.
O padre passou o braço em volta dos ombros do jovem e dirigiu-se com ele, para o outro quarto.
— Esta é uma casa de morte, meu filho, e de felicidade também…
— Sim…
O jovem estava banhado em lágrimas. Voltou-se abruptamente para o padre que realizara a cerimónia nupcial.
— Diga-me, padre, crê o senhor que possa haver desculpa para um crime?
— Para um crime, meu filho?
— Sim. Eu cometi um crime. O senhor sabe…
Indicou o quarto onde jazia o corpo da esposa.
— Ela não me perguntou porque eu não voltei antes. Bastava que eu estivesse aqui. E não pude dizer-lhe…
O padre perguntou suavemente:
— Qual foi o crime que cometeu?
E o jovem respondeu:
— Bigamia.

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