16 de dezembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 351

Efemérides 16 de Dezembro
Peter Dickinson (1927)
Peter Malcolm de Brissac Dickinson nasce em Livingstone, Zambia. Editor e escritor britânico, escreve livros infantis e livros de fantástico e sobrenatural para jovens. Tendo recebido vários prémios literários, conta com mais 50 livros já editados e está traduzido em 53 línguas. Estreia-se na narrativa policiária, em 1968, com Skin Deep, a que se segue A Pride of Heroes (1969), livros que ganham o Gold Dagger Award de 68 e 69 e que iniciam a série Superintendant James Pibble. Em Portugal está editado o policiário:
1 - O Formigueiro Com Paredes De Vidro (1990), Nº9 Colecção Crime S.A., Editora Ulisseia. Título Original: Skin Deep (1968), também editado com o título The Glass-Sided Ants' Nest. É o 1º livro da Série James Pibble.



Bill Brittain (1930 – 2011)
William E. Brittain nasce em Rochester, New York, EUA. Professor de crianças de 9 — 11 anos utiliza a leitura de contos de mistério na sala de aula e começa também a escrever contos policiários que são publicados nas revistas da especialidade. Escreve mais de 70 contos protagonizados por Mr Strang. Muitos dos seus livros são destinados a um público jovem, a sua obra mais conhecida é All The Money In The World (1979), um livro de fantasia adaptado ao cinema. Destaca-se também a série The Man Who Read… iniciada em 1965 com The Man Who Read John Dickson Carr e que incide sobre diferentes escritores: Ellery Queen, Rex Stout, Agatha Christie, Sir Arthur Conan Doyle, G. K. Chesterton, Dashiell Hammett, Georges Simenon, John Creasey e Isaac Asimov. Esta série descreve um leitor de ficção que é colocado numa situação em que tem de aplicar os conhecimentos, adquiridos a partir do seu autor favorito, para resolver um mistério. O autor assina Bill ou William Brittain.



TEMA — CONTO POLICIÁRIO DE WILLIAM E. BRITTAIN — A GARRAFA EM VEZ DA LEITURA
Monty limpou o pó de cimento que se lhe agarrava na roupa e às sobrancelhas, enquanto observava a camioneta verde subir a longa estrada na direção da sua casa, levantando uma nuvem de poeira. O veículo passou pela frente da enorme casa de tijolo, desviou-se alguns centímetros de um tronco de árvore e estacou, com a parte traseira bem no ponto em que ele espalhara o seu material de construção.
— Eu trouxe os blocos de cimento que você me pediu, Monty — disse o motorista. — Creio que com o que já tem aí vai chegar.
— Obrigado, Ford — respondeu Monty. — Morando assim tão longe da estrada é difícil trazer coisas pesadas, principalmente no meu carrinho. Fico-lhe muito grato pela ajuda. Falta-me experiência para misturar cimento e juntar blocos.
— O prazer é todo meu — disse Ford. — Para falar a verdade, Monty, alegro-me de que tenha pedido ajuda. Pensei que não se sentisse muito bem disposto comigo depois do… Bem, você sabe.
Monty ficou em silêncio alguns instantes. Os olhos marejaram-se de lágrimas. Mas apagou-as esfregando o braço bruscamente sobre o rosto.
— Foi um acidente, Ford. Não disseram no inquérito? Brigar consigo não ressuscitará Helen, portanto não falemos mais nisso. A vida tem que Ir para a frente.
— Ainda bem que você pensa assim — disse Ford. — Bem sabe o quanto lamento o que houve. A maioria das pessoas não se mostraria assim tão razoável.
Olhou para a pilha de blocos, os sacos de cimento e a máquina de misturar a massa. -— Qual é o projecto, Monty?
Monty apontou para o pequeno aposento sem janelas que se prolongava nas traseiras da casa, dando para o mato que circundava o terreno.
— Mandei um homem construir isso a semana passada. Pretendo fazer aí uma câmara escura. Estava fora quando ele veio levantar, as paredes e quando voltei vi que abrira uma porta no lugar errado.
Conduziu Ford para uma abertura rectangular na parede ao fundo da sala e os dois espreitaram o interior pouco iluminado.
Monty apontou para uma porta de madeira na parede fronteira.
— Aquela serve de ligação com a casa. Mas esta aqui devia estar noutro lugar. Se tiver uma porta no fundo posso esquecer-me de trancá-la e alguém abri-la enquanto estiver a revelar um filme. De modo que por cautela vou fechar a parede outra vez. — Bem, eu não passo todos os meus momentos de folga com o nariz nos livros, como você faz disse Ford — mas o que não souber no trabalho de pedreiro não vale a pena saber. Embora seja eu quem o diga.
— Óptimo, Ford. Mas que tal uma bebida antes de começarmos?
— Pensei que nunca mais me convidava!
— Aceita uma dose de bourbon?
— Sim. Com gelo.
Monty procurou a porta lateral e entrou na cozinha. Voltou com uma garrafa quase cheia, um copo e uma bolsa plástica com cubos de gelo.
Ford pegou a garrafa pelo gargalo e levantou-a.
— Escolha de conhecedor. É a minha marca preferida. Mas onde a conseguiu? Não sabia que a vendiam por aqui.
— Não vendem. Um conhecido meu trouxe esta garrafa quando veio visitar-me um dia destes.
— Você não bebe?
— Não. Bebi demais depois do enterro de Helen.
Ford encheu o copo pela metade, colocou uma pedra de gelo e emborcou a bebida sem lhe dar tempo de esfriar.
— Ah — Suspirou — não há nada melhor para se iniciar uma tarde de trabalho.
— Vou deixar a garrafa aqui — disse Monty — sirva-se à vontade.
Ford mostrou a Monty como misturar o cimento e a areia e supervisionou a quantidade de água. Depois, enquanto Monty misturava com uma enxada, Ford marcou uma linha com giz na porta, deitou uma camada de cimento com a colher e colocou uma fieira de blocos, testando um por um com o fio, para ver se estavam a prumo.
É preciso que fiquem bem em linha no início. Do contrário toda a parede sai torta.
As fileiras foram subindo rapidamente até estarem mais ou menos na altura da cintura. Ford preparou outra porção de massa e depois estendeu a mão para a garrafa. Levou-a à boca e inclinou o gargalo.
— Homem, como é bom — sorriu — Espero que dure até o trabalho ficar pronto.
— Há mais no lugar de onde veio esta — disse Monty, que se encaminhara para a camioneta verde de Ford e se pusera a rodeá-la. Parou junto do guarda-lamas dianteiro que, a despeito da camada de pó, era evidentemente mais brilhante e mais novo do que o resto do carro.
— Foi aquilo que bateu em Helen? — perguntou, apontando para o guarda-lama.
— Sim, Monty. Teve de ser substituído.
— Não é uma sorte a gente poder substituir um guarda-lama com essa facilidade? — disse Monty com o olhar perdido ao longe.
— Escute, Monty — disse Ford, procurando mudar de assunto — vou precisar de ajuda para colocar estes blocos no lugar. Acho que será mais fácil se ficarmos cada um de um lado da parede.
— Okay, Ford. Por que não entra você? Deve ser mais fresco, fora do sol.
— Óptimo, Mas esta vai comigo. Pegou na garrafa.
— Cuidado, ao passar por cima da parede. Não desloque os blocos.
— Eles agora estão firmes. Você comprou o cimento que seca depressa.
Ford passou para dentro do quarto e Monty alcançou-lhe o balde de cimento. Monty encarou o homem do outro lado da parede durante muito tempo.
— Ford? Como foi que aconteceu? Você nunca me contou a história e eu sei apenas o que disse no inquérito.
— Foi logo depois de o pôr-do-sol — disse Ford. — Passava de carro na frente da sua casa e no exacto momento em que atravessava o caminho ela colocou-se na frente do carro.
— Não houve maneiras de evitar o choque? A polícia declarou que você estivera bebendo.
— Tomei apenas uma bebida no bar de Pete. O barman afirmou que tornei apenas uma. Lembra-se. Eu não estava bêbedo, foi um acidente.
— Okay, Ford. Fiz apenas uma pergunta.
À medida que a tarde foi passando, a parede subiu até restarem duas fileiras para fechá-la por completo. Monty passou a Ford mais um balde de cimento, que Ford quase deixou cair. A garrafa estava agora no fim.
— Ford? — chamou Monty. Quer terminar a parede do lado de cá?
— Não. É muito mais fácil assim como estamos, um de cada lado. Os blocos ficam direitinhos no lugar. Passe mais um bloco.
Finalmente faltou apenas um bloco para ser colocado no lugar. Enquanto Monty descansava, Ford terminou a garrafa e largou-se pelo buraco para o lado de fora. — Só mais um bloco, Monty amigo — murmurou Ford com a voz arrastada.— Ponha-o no lugar e eu terminarei a obra para você.
— Ford? Um dia depois do acidente eu fui até o local em que tudo aconteceu. Era algo que tinha de fazer.
Encontrei tinta na estaca que sustém a nossa caixa de correspondência fora da estrada. Era tinta verde, Igualzinha à da sua camioneta. E não estava lá dois dias antes, quando pintei o poste de branco.
— Que tem isso a ver comigo?
— Faz a gente pensar; como é que aquela tinta podia ter ido parar no poste quando você andava na estrada estava bêbedo, Ford.
— Escute, Monty, Como poderia estar embriagado com uma bebida?
— Você levava uma garrafa no carro.
— A polícia revistou o meu carro. Não encontraram garrafa nenhuma.
— Não, mas eu encontrei. Você atirou-a para o monte de pedras do outro lado da estrada. Porém a garrafa não se quebrou. Eu encontrei-a no dia seguinte.
— Menino inteligente! — Ford espreitou pelo último buraco da parede.
— Você estava bêbedo quando atropelou Helen. Não com o que ingeriu no bar de Pele, mas com o que bebeu da garrafa que levava consigo. Helen não correu para frente de si! Você saiu da estrada e foi bater nela, parada ao lado da caixa do correio. Depois carregou o corpo para o meio da estrada para a polícia pensar que a culpa era dela. E teria dado certo se a garrafa se tivesse quebrado quando a atirou fora. Mas não quebrou, Ford. Eu a encontrei. E é a marca que você bebe!
— Vai ter um trabalho danado para provar isso, Monty.
Monty sorriu docemente.
— Não preciso provar nada, Ford. Você disse que não era dado a leituras. Pois é uma lástima.
— Escute, não vou ficar aqui a ouvi-lo. Vou para casa. Não avisei minha mulher que vinha aqui. Além do mais, esta parede está praticamente terminada.
— Tem razão, Ford. Está praticamente terminada. Mas você não pode sair por aí. É grande demais para passar por essa aberturazinha.
— Esqueceu-se da porta de comunicação com a casa, Monty amigo? É a minha brecha. E se a trancou, eu arranjei forma de rebentá-la.
— Pois faça isso, Ford. Saia por aquela porta. Eu não a tranquei.
O rosto de Ford deixou a abertura na parede. Ouviu-se o som de uma porta a abrir-se e logo o embate de um punho fechado numa superfície de tijolos. Em seguida soou o grito de Ford.
— É falsa! A porta não existe. Atrás dela há apenas uma parede de tijolos!
— Acertou, Ford.
— Que deseja de Mim, Monty?
— Sabe há quanto tempo nós estávamos casados? — replicou Monty — Onze dias, Ford. Onze dias para planear o futuro, e aí veio você com a barriga cheia de uísque, apagando tudo numa fracção de segundo, e ainda esperando escapar impune do crime. Há muitos nomes para aquilo que eu desejo, Ford. Justiça, satisfação, vingança. Escolha o que lhe agradar.
Monty pegou num bloco e começou a passar-lhe cimento à volta. Ford ficou a observá-lo, a boca a abrir e fechar sem um som. De repente berrou:
— Pelo amor de Deus, Monty!
Monty sorriu. Avançou até a abertura, segurando o último bloco com ambas as mãos.
O bloco encaixou muito bem na abertura. Monty calçou-o com um pedaço de madeira pelo lado de fora a fim de não ser possível deslocá-lo. Quando o bloco ficou irremovível, Monty foi até a camioneta de Ford e sentou-se ao volante.
Levaria apenas dez minutos a levá-la até ao lugar onde deixara seu próprio carro, no dia anterior. Mesmo descontando o tempo para limpar as suas impressões na camioneta, devia estar de volta em menos de uma hora.
Ao olhar outra vez o pequeno quarto, agora completamente selado, ocorreu-lhe que um dia poderia fazer ali uma óptima câmara escura. Mas muito tempo decorreria até chegar a isso.
Monty sacudiu a cabeça com tristeza.
— É uma pena Ford nunca ter-se interessado por histórias de mistério, — murmurou— Se tivesse lido o conto de Edgar Allan Poe “O Barril de Amontilado” talvez pudesse apreciar melhor o que lhe está a acontecer.
Ligou o motor e a camioneta avançou suavemente. Ao passar pela porta selada os seus olhos brilharam friamente.
— Requiescat in pace! — disse.


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