Efemérides 20 de Agosto
H. P. Lovecraft (1890 – 1937)
Howard Phillips Lovecraft nasce em Providence, Rhode Island, EUA. É considerado um mestre do fantástico e do terror. Tímido, de hábitos solitários gerados no ambiente familiar depressivo, começa a escrever algumas histórias, publicadas em 1917. Acaba por deixar uma vasta obra literária onde o estilo gótico marca pontos. Para os admiradores do autor, ou curiosos, o artigo H.P. Lovecraft em Língua Portuguesa (Clicar) disponibiliza informações interessantes. Mais recentemente, em Portugal, as obras de Lovecraft estão a ser publicadas pela Editora Saída de Emergência (Clicar).
TEMA — UMA RARIDADE: O PRIMEIRO CONTO DE LOVECRAFT — DRAGÃO
Quando lerem estas páginas mal escritas, talvez possam imaginar, ainda que não completamente, porque desejo o esquecimento da morte.
Foi num local longínquo e pouco frequentado do Pacífico, que o cargueiro de que era contra mestre caiu vítima de um corsário alemão. A guerra havia-se recém iniciado, as forças do Huno ainda estavam fortes. O navio foi capturado e fomos bem tratados como membros da tripulação e prisioneiros navais.
Tal a branda disciplina dos nossos captores, que cinco dias depois, escapei-me só num barquito provido de água e provisões para bastante tempo.
Quando me encontrei livre e à deriva, não sabia onde estava. Nunca fora um marinheiro competente e só vagamente pelo Sol e pelas estrelas, supunha estar em algum ponto ao Sul do equador. Não sabia a longitude, não via ilha nem costa. Tempo bom, incontáveis dias andei sem rumo debaixo de um Sol ardente. Nenhum barco ou costa apareceram e comecei a desesperar sob o azul sem limites.
A mudança surgiu enquanto dormia. Nunca saberei os detalhes, pois o sono, ainda que inquieto e repleto de sonhos era profundo. Quando despertei encontrei-me envolvido por uma viscosa extensão de um infernal atoleiro negro, no qual encalhara.
Ainda que se possa imaginar a minha reacção devia ser de assombro ante a transformação inesperada e prodigiosa da paisagem, na realidade, fiquei mais horrorizado que surpreendido, posto que a sinistra atmosfera me gelava o sangue nas veias.
O local era pútrido em virtude dos restos apodrecidos de peixes e outras coisas menos descritíveis. Impossível expressar em palavras, tal a repugnância que despertava.
Silêncio absoluto sobre uma enorme extensão de lodo negro. Paisagem que me oprimia com um terror nauseabundo…
O Sol reflectia-se no alto de um céu negro, cruel, sem nuvens, sobre o lodaçal a meus pés. Enquanto me arrastava pelo bote encalhado, dei-me conta que só existia uma explicação para a situação: algum cataclismo vulcânico, inusual, lançara alguma parcela do fundo do mar superfície, expondo regiões que por inumeráveis milhões de anos haviam permanecido ocultas sob infindáveis profundidades oceânicas. Tão descomunal era a extensão da nova terra que não podia descortinar o mínimo murmúrio do oceano, por mais que apurasse os ouvidos. Nenhum pássaro marinho descia para devorar as coisas mortas… Durante varias horas permaneci sentado enquanto o Sol se movia nos céus. Na medida em que o dia progredia, o charco perdia algo de viscosidade e possivelmente secaria o bastante para que sobre ele se caminhasse.
Dormi pouco naquela noite e no dia seguinte preparei um pacote com água e alimentos e dispus-me a buscar o mar desaparecido ou um possível resgate.
O fedor a peixe era insuportável, porém, estava demasiado preocupado com coisas mais graves para sentir um mal secundário, e parti audazmente em busca de um fim desconhecido.
Caminhei sem descanso para oeste, orientado por um ligeiro montículo que só distinguia mais alto que qualquer outra elevação do ondulado deserto.
Acampei de noite para prosseguir a viagem até montanha, ainda que ela me parecesse à mesma distância em que a divisara inicialmente.
No quarto dia havia, entretanto, alcançado o sopé da montanha, que era mais alta do que parecera à distância.
Dormi à sombra da colina demasiado cansado para iniciar a subida.
Tive sonhos loucos, terrificantes, naquela noite.
Quando a pálida, fantasmagórica e deformada lua apareceu, despertei banhado em suores frios, determinado a não voltar a dormir. As visões que havia experimentado eram demasiado fortes para suportá-las de novo.
Ao brilho da lua dei-me conta da insensatez de viajar de dia. Sem o ardor do omnipotente Sol a jornada ter-me-ia custado menos energias e, com este raciocínio, sentindo forças suficientes para realizar a ascensão que me parecera impossível ao anoitecer, recolhi os meus haveres e comecei a subir.
A monotonia sem limites da planura ondeada fora uma fonte de horrores, não obstante, creio que o meu terror foi ainda maior quando alcancei o cimo da montanha e olhei o outro lado, havia um incomensurável abismo que a lua, ainda não demasiado alta, não chegava a iluminar até às profundidades.
Acreditei que era o extremo do mundo.
Observado da margem era o caos sem fundo da noite eterna.
No meu terror lembrei “ O Paraíso Perdido”, a horrível ascensão de Satanás dos infernais reinos da noite,
Quando a lua subiu ao céu, comecei a ver que as encostas do abismo não eram tão perpendiculares como havia imaginado. Em alguns lados proporcionava caminhos bastante fáceis para a descida e depois de uma dezena de metros a encosta era mais suave.
Num impulso indefinido, comecei a descer, ainda que com certa dificuldade, pela parede rochosa, até chegar mais abaixo e olhar as profundidades infernais que jamais alguma luz havia penetrado.
Despertou-me imediatamente a atenção um enorme e curioso objecto situado na ladeira em frente, que se erguia verticalmente a uma centena de metros; um objecto branco que brilhava aos raios da lua.
Convenci-me de que era apenas uma massa de pedra, porém, tive a impressão de que o seu contorno e disposição não era unicamente obra da natureza. Um olhar mais atento produziu-me uma sensação que não posso expressar, pois aquela magnitude num abismo que já existia quando do nascimento do mundo era, sem lugar para dúvidas, um monólito cuja tremenda massa havia sido obra e possivelmente alvo de culto de seres vivos e pensantes.
Assombrado e temeroso, sem excluir a emoção de um arqueólogo, examinei com cuidado os arredores. A lua agora aproximava-se do seu zénite; brilhava estranha e luminosa sobre os desfiladeiros que rodeavam o abismo, revelando uma corrente de água que serpenteava pelo fundo, perdendo-se em sinuosidades, e quase chegava aos maus pés. No outro lado do abismo a corrente lambia a base do ciclópico monólito em cuja superfície podia observar agora, tanto inscrições, como grosseiras esculturas. A escrita estava traçada num sistema de hieróglifos desconhecidos para mim e diferentes a quaisquer outros que pudesse ter visto em livros — consistiam na maior em símbolos aquáticos estilizados, tais como peixes, enguias, polvos, crustáceos, moluscos e outros.
Sem dúvida que foram as esculturas que mais atraíram a minha atenção. Claramente visíveis do outro lado da corrente dado o seu enorme volume havia uma série de baixos-relevos cujos motivos poderia causar inveja a um Doré. Creio que pretendiam representar homens, pelo menos um certo tipo de homens.
Dos rostos e formas não me atrevo a falar com detalhe, pois a simples recordação me emociona. Mais grotesco do que pode imaginar um Poe ou um Bulwer, e não obstante infernalmente humanos em traços gerais apesar das suas mãos e pés palmípedes, repugnantes, grossos e plácidos lábios, vidrados e proeminentes olhos e outras características de recordação mais desagradável.
Coisa curiosa, pareciam ter sido esculpidos fora de proporção com o resto do conjunto, pois se via uma das criaturas no acto de matar uma baleia representada um pouco maior que ela.
Fixei-me especialmente no grotesco e nas estranhas dimensões, porém, no momento seguinte decidi que se tratavam de deuses imaginários de alguma primitiva tribo de pescadores ou navegantes, alguma tribo cujo último descendente houvesse perecido. Eras antes do nascimento do primeiro antepassado dos homens de Pitdwn ou Neanderthal. Surpreendido por esta inesperada visão do passado para além de toda a concepção do mais temerário antropólogo, quedei-me pensativo enquanto a lua produzia estranhos reflexos nas silenciosas águas que tinha diante de mim.
Subitamente vi-o.
Elevou-se à superfície das águas procedido por uma leve agitação e apareceu à vista sob a obscuridade.
Vasta, disforme a nauseabunda, oscilou como um colossal monstro de pesadelo sobre o monólito, que rodeou com os gigantescos e escamosos braços, ao mesmo tempo que inclinava a repugnante cabeça e emitia roncos modelados…
Creio que enlouqueci.
Não recordo a frenética escalada, o regresso delirante, cantando e rindo desconexamente até ao bote.
Quando saí da sombra encontrava-me num hospital de São Francisco. Fora para ali levado pelo capitão de um barco norte-americano que recolhera o bote no oceano.
No delírio falara muito mas ninguém tomara nota. Nada sabiam do movimento das terras no Pacífico e não insisti.
Consultei um célebre etnógrafo e fiz-lhe perguntas sobre a antiga lenda do Dragão, o Deus-Peixe, porém, dei conta que o homem era totalmente alheio ao assunto e não persisti
É durante a noite, principalmente quando a lua brilha pálida e fantasmagoricamente deformada, que vejo aquela coisa.
Agora comecei a tomar morfina, mas a droga só me facilitou um alívio passageiro e agarrou-me entre as suas garras, tornando-me seu escravo.
Agora acabei com tudo após completar a minha narrativa formação ou desdenhosa diversão dos meus congéneres.
Frequentemente pergunto a mim mesmo se tudo não terá sido simples fantasia, uma alucinação da febre resultante da insolação enquanto fugia do barco de guerra alemão. Sempre me chega, todavia, em resposta, uma visão aterrorizantemente vivida. Não posso pensar no profundo oceano sem estremecer ante a ideia das coisas sem nome que, neste momento, poderão arrastar-se e revolver-se no lamacento fundo adorando os seus antigos ídolos de pedra e esculpindo as suas próprias detestáveis imagens em oblíquos submarinos de húmido granito.
Sonho com o dia, quando, elevando-se sobre enormes ondas arrastem nas fétidas garras os restos de uma indefesa humanidade esgotada pelas guerras… um dia em que as terras se abram e o escuro oceano se levante entre um pandemónio universal.
O fim está próximo.
Oiço o som na porta, como o dum imenso corpo rastejante, forçando-a.
Não me encontrará.
Deus, essa mão! A janela !!! A janela !!!
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