8 de agosto de 2012

CALEIDOSCÓPIO 221

Efemérides 8 de Agosto
Valerio Varesi (1959)
Nasce em Turim, Itália. Licenciado em Filosofia, trabalha na área do jornalismo como correspondente de vários diários italianos e actualmente pertence à redacção do jornal Reppublica. Publica o seu primeiro romance policiário em 1998 Ultime Notizie Di Una Fuga. O autor tem 8 livros de contos publicados e 8 romances; está traduzido em diversas línguas e editado em vários países — Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Polónia e Turquia — e tem sido distinguido com vários prémios. O protagonista dos seus livros, Commissario Soneri é também a figura central de uma série televisiva de 14 episódios, Nebbie e Delitti, baseada nos romances de Valerio Varesi.



TEMA — ALGO SOBRENATURAL — AS PRÁTICAS DO DIABO
Continuação de CALEIDOSCÓPIO 216 (clicar)
As práticas atribuídas à distinta personagem são das mais variadas índoles, não escasseando literatura explorativa de tais desacatos, que vão dos estudos à ficção. Não faltam, de facto, inúmeros relatos de evocações, tentações demoníacas, pactos de interesses ou amorosos, bruxaria ou feiticismo, exorcismo, magia etc.
As evocações são, em regra, dos adeptos da religião que admite um rival de Deus: aqueles que admitem o diabo, o criaram e recriam. Ao contrário, as tentações partem do próprio demo em forma de solicitação para o pecado.
Pactuar com o diabo é uma pretensa convenção assinada com sangue humano, pelo qual aquele se obriga a conceder os seus serviços como a riqueza, o poder de transmitir doenças, danificar bens, etc. por um certo tempo, ao fim do qual se apodera da alma que o assinou.
O demónio é um conhecido perito em libertinagem: o incesto, a violação, o sadismo e toda a espécie de perversões sexuais. Sente prazer em profanar todos os tabus para satisfazer os piorei deboches. Até na intimidade dos conventos se introduz sendo as vítimas preferidas as mulheres, impressionando-as com o órgão genital, anormalmente imenso, provocando-lhes um delicioso frenesim, misto de desejo e medo que resulta da transgressão das normas sociais mais sagradas. Agradam-lhe, sobretudo as mulheres casadas, como consta de uma oração italiana do Século XV “ama giocare co la mogliere” e as relações podem ter lugar na presença do marido que cairá num sono profundo,
Santo Agostinho dizia que “via diabolus est in lumbis”, e Santa Eulália afirmava que o diabo está para as partes genitais do homem como um capitão sobre a ponte do seu barco.
Citando Pierre Lanere, uma jovem de dezasseis anos conta que “as partes sexuais do Diabo são feitas de escamas”, outra porém afirma que o grande homem tem um membro viril, forte, duro e negro”, e outra ainda declara que “tem um sémen gelado”.
Sendo, todavia, o demónio um espírito como poderá proporcionar prazeres da carne?
Este é o problema teológico sobre o qual se debruçaram Filón, Cipriano, Justo – o Mártir, Clemente Alexandrino, Tertuliano e outros, concluindo pela impossibilidade do acto afirmavam “que os diabos podem tomar o corpo de defuntos, criar corpos do ar e outros elementos podendo actuar esses corpos, ter e fazer sentir prazer”. Assim o Diabo pode transformar-se num cavalheiro apetecível, rico e elegante ou numa bela princesa consoante o sexo que se quer seduzir, dado que possuidores de natureza andrógina podem adaptar a forma necessária.
Relevam, não obstante, os casos de bruxaria ou feiticismo ainda actualmente em voga. Consiste esta numa aliança celebrada com o personagem questionado, ainda que existam outras formas puramente pagãs ou místicas ( a bruxaria), só a primeira, todavia, tem relações malignas.
Não é fácil encontrar as origens da bruxaria satânica. Crê-se anterior a Cristo, tal como a tradição do “sabat” ou festa das bruxas.
Reunidos, no princípio, nas profundidades dos bosques e das cavernas enquanto na aparência faziam vida normal, os seus adeptos foram circulando de família em família, de geração em geração até que, com o tempo ganharam enorme pujança, traduzindo-se na bruxaria da Idade Média que tanta perseguição sofreria dos Séculos.
Como já se referiu anteriormente, o desespero da existência humana da Idade Média, foi propícia e responsável em exclusivo pela enorme vaga de bruxaria que se abateu sobre a Europa. E essa realidade foi mais sentida e vivida pelas mulheres. Repudiado o povo pelos senhores e pela Igreja, a quem recorrer? Ao Diabo, saído do fogo acesso pelas feiticeiras, vivo, amado e muito activo.
Velhas rabugentas, invejosas, mulheres atormentadas, raparigas desiludidas de amor, solteironas, jovens virgens loucas pelos prazeres do corpo ou enganadas na sua inocência, são as bruxas — dedicadas servas do demónio.
As candidatas a súbditas de Belzebu deviam renegar a Deus, blasfemar contra a Santíssima Trindade, esmagar a cruz sob os pés, renunciar ao baptismo e mandamentos
da Igreja, sacrificar-se ao Senhor do Inferno, adorá-lo,reconhecê-lo como único Senhor e prestar juramento:

Imperador Lúcifer, senhor de todos os espíritos rebeldes, suplico-te que me sejas favorável no pedido faço ao teu grande ministro.
 Lucifugo Rafacal: tendo vontade de fazer um pacto com ele peço-te também, príncipe Belzebu que me protejas na minha tentativa. Oh, conde Astaroth! Sê-me propício e faz com que esta noite, o grande Lucífugo me apareça sob a forma humana, sem nenhum mau cheiro, e que me conceda, através do pacto que lhe vou propor, todas as riquezas de que preciso. Oh, grande Lucífugo! Imploro-te que deixes a tua morada, seja em que parte do mundo for, para vires falar comigo, senão terei de te obrigar a isso pela força das poderosas. palavras da grande “Clavícula de Salomão", de que ele se servia para obrigar os espíritos rebeldes a aceitar o seu pacto: assim, aparece quanto antes, ou passarei a atormentar-te continuamente com as poderosas palavras da “Clavícula”…
(continua)

TEMA — CONTO — UMA ONDA DE AR FRIO
De Natércia Leite
Um mal-estar físico indefinível acordou-a a meio da noite.
Uma pressão no peito, uma mágoa confusa.
Tinha sonhado mas de nada se lembrava. Era perto das cinco da manhã e, até se levantar, ficou acordada, cismática, ansiosa. Pensamentos rodopiavam na sua cabeça, mas era tudo muito impreciso. Pensamentos que iam e vinham, que se enevolavam. De manhã levantou-se cansada para preparar o pequeno-almoço do marido. Mas depois de tudo arrumado na cozinha, deitou-se outra vez na cama, enrolando-se na roupa.
Doía-lhe a cabeça e a mágoa que sentia era quase uma dor física. Não encontrava explicação para aquele estado de alma singular e deprimente.
Depois começou as voltas da casa, com esforço, pois sentia-se muito fraca e sem vontade.
Arrumou o quarto. Na sua mesinha de cabeceira folheou uns livros ao acaso. Agarrou num. Página dezasseis. Os olhos demoraram-se sobre umas linhas escritas a tinta:
“bebo a dor azul que brota
dos teus olhos
num cálice de prata»...
Suspirou.
Depois foi para a sala. Era perto da hora do almoço. Pouco mais que meio-dia.
De repente veio-lhe aquela opressão medonha ao peito, aquele rasgar violento por dentro de carnes e tecidos, aquela falta de ar. Apoiou-se no braço do sofá, deixou-se cair nele. A dor era cruel como uma garra. Desmaiou.
Quando tomou conhecimento do que a rodeava, o coração batia mansamente, tristemente.
Acomodou-se, deitada no sofá e de lá, muito do fundo de si mesma, aquela mágoa alastrou aos olhos, brotou feita choro silencioso. Como uma fonte que, de repente, jorra da montanha depois de retalhar caminhos tortuosos através da pedra.
Chorou tanto que adormeceu. Sonhou com o Pedro.
Ele viera em direcção a ela, os braços estendidos em ar de súplica e de promessa, mal parecia pisar o chão. Estavam num campo muito verde; como se fosse Abril, floriam amarelas as pequenas flores do trevo; o espaço era de algodão azul; o Pedro vinha em direcção a ela, abraçava--a, as duas mãos fortes e bem abertas quentes nas suas costas, a cara roçando a sua, os lábios nos cabelos, nos olhos, bebendo a dor que brotava deles, um abraço apertado como se quisessem meter-se um dentro do outro, fundir-se as mãos na cintura, nos seios quentes; quentes, tombaram mansamente sobre a erva e conseguiram um orgasmo doce e inesquecível.
Acordou, dos seus sonhos de amor e posse trémula.
Mas agora SABIA.
Foram-se esgotando as horas e ela como sonâmbula. À noite, com o marido, velo o jornal da tarde, que ela folheou ansiosa, procurando a notícia que encontrou. O Pedro morrera. No dia seguinte seria o enterro.
Queixou-se de dores fortes na cabeça, deixou o jantar servido sobre a mesa, tomou alguns comprimidos para dormir toda a noite, um sono pesado de chumbo e de derrota.
Pela manhã ouviu sinos tocar, ao longe, mas não se lembrava tão-pouco que perto houvesse alguma igreja
E à tarda, à tarde na sala, tremendo porque o seu amor de ontem e de uma vida inteira iria a enterrar, cerca das quatro horas, um golpe repentino de vento abriu a janela de par em par, entrou pela sala, rodopiou frio à sua volta, brincou-lhe nos cabelos e os próprios cabelos roçaram-lhe as lábios como um beijo leve.
Nas suas narinas o odor da terra revolvida de fresco.
E como uma onda, a morte vestida de cheiro intenso, fortíssimo e enjoativo, das mais variadas flores, dançou com o vento frio e inundou a sala.



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