Efemérides 29 de Agosto
Jérôme Leroy (1964)
Nasce em Rouen, França. Professor de francês, dedica-se actualmente apenas à escrita e a actividades literárias. Poeta, ensaísta e autor de várias antologias, no campo da narrativa policiária tem os seus romances qualificados como neo-polares, onde o romance negro e a ficção científica/antecipação se conjugam. Entre “004 e 2007, Jérôme Leroy cria e dirige a Colecção Novella S F na famosa editora Éditions du Rocher. O livro mais recente do autor é Le Bloc (2011).
TEMA — ESTUDOS DE ENIGMÍSTICA POLICIARIA — NO CAMPO DE ENIGMA TÉCNICO CIENTÍFICO
São imaginários os vestígios que podem servir de indícios ou provas aos encarregados da investigação relativas a delitos, acidentes ou suicídios, pois, só a partir de determinadas circunstâncias se pode ultrapassar os dois últimos para se fixar no primeiro.
Damos um salto à realidade para comprovar a exposição.
Uma das peças mais curiosas que existem no museu principal de Lyon, e a que mais impressiona os visitantes, é um molde onde se vê um rosto humano, o peito e o ventre e também as mãos, uma das quais segura uma barra de ferro e a outra um revolver. Eis a história dessa famosa peça: um ladrão foi apanhado durante o roubo, pelo meu colega e amigo Godefroy. O homem escapuliu-se, perseguido por três polícias, um dos quais era muito jovem e estava apenas iniciando a sua carreira.
O ladrão ia ganhando dianteira, quando tropeçou num monte de areia que não vira, porque ao correr virara a cabeça para verificar a que distância estavam os seus perseguidores. Caiu ao comprido, mas levantou-se rapidamente e apesar desse percalço desapareceu pela noite dentro. Foi preciso desistir de procurá-lo porque a pista estava perdida. Enquanto os polícias se dispersavam pelas ruas vizinhas sem encontrar o bandido, Godefroy tinha ficado a contemplar a areia fina onde aparecia a marca do corpo do salteador desaparecido.
O molde de um rasto dessa dimensão não é coisa fácil de se obter. Seria necessária uma quantidade considerável de gesso e, sobretudo, seria necessário armar a moldagem para impedir que a mesma se quebrasse no momento em que, depois de endurecida, fosse retirada. Providenciou-se para isso, incorporando ao gesso um pedaço de tecido maior do que o molde.
Alguns dias mais tarde, graças a uma denúncia, trouxeram preso um sujeito que mais parecia um macaco do que um homem. Confrontaram-no com o famoso molde, e é preciso confessar que não foram os traços do rosto que permitiram com certeza a identificação. O homem e o molde são igualmente feios, mas o que havia realmente de insofismável, de comum entre os dois eram as unhas enormes, as ranhuras do revolver, e, coisa curiosa, as pregas do blusão, e os botões fora do comum, formados de anéis duplos de cobre. Foi graças a esses elementos que o homem, confuso, confessou. Ainda há algo mais para aumentar a originalidade já bem estranha desse molde. É que o jovem polícia estreante, vendo o malfeitor fugir, tinha perdido a cabeça, a ponto de alvejá-lo com o revólver, tão desajeitadamente aliás, e tão tarde, que a bala não atingira senão a impressão deixada na areia, quando o homem já se tinha levantado e fugira a correr!
E continuemos o tema.
O exame das impressões de pés calçados ou descalços é tão importante como as impressões digitais deixadas no local investigado. Não têm evidentemente o valor destas, que são únicas, inevitáveis e indisfarçáveis, mas são ajuda preciosa, tais como o são eventuais impressões de bengalas, guarda-chuvas, muletas, pernas de pau e aparelhos ortopédicos, impressões de origem animal, de veículos, etc.
O exame de uma série de impressões de pés calçados ou descalços pode servir para mostrar o sentido da deslocação, a rapidez do andamento e as particularidades prováveis do indivíduo que as produziu. O próprio tipo de calçado e os desgastes nele existentes podem ser identificativos.
A interpretação de pegadas ou de outros vestígios no solo era, em tempos antigos, uma arte inexcedível dos índios — quem o esquece? — a criminalística moderna aprende a apreciar esses valores. A imagem de marcha obtém-se de um complexo de várias pegadas. Encontram-se sob a forma de pó, no sangue caído, na humidade existente, por moldagem em solos menos sólidos, num papel caído no chão, em tapetes e oleados, nas cadeiras a que o criminoso tenha subido, no esmagamento duma erva, etc, etc.
Estudos determinam a altura dum corpo em relação à pegada.
Pegadas (cm)
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Altura do corpo (m)
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22
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1,43
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23
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1,50
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24
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1,57
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25
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1,64
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Mesmo aproximadamente, duvidamos da tabela, tudo dependendo do fabricante, do tipo do sapato, factores imponderáveis.
Já a distância entre duas pegadas poderá concorrer para avaliar aproximadamente o comprimento das pernas e a partir daqui o tamanho do corpo, se o suspeito corre, se coxeia, se leva um peso sobre os ombros ou de um dos lados, etc. Pode determinar-se se o caminhar, o passo, é normal, ou se apresenta imagem defeituosa. Aqui o passo é curto e lento:
Nas impressões de pés descalços, releva em primeiro lugar o tipo de pé marcado:
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Três tipos de pés: arqueado, intermediário e chato
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Depois, podem existir sinais (cortes, defeitos e outros) que podem servir como elementos identificativos, mostrando-se quanto à distância das pegadas o referido para o pé calçado.
Para apuramento da estatura de uma pessoa em função do comprimento do pé, distanciando-nos da tabela anterior e colhendo a fórmula de Marchessean, falível, por vezes, como em tudo o que é humano, permite calcular a estatura.
Tendo em conta a fórmula de H. Perville
P = 8,6/30 x (T/2+0,05)
em que P é o comprimento do pé nu e T o talhe, Marchessean organizou o quadro:
Até 219 mm
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7,170
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De 219 a 229 mm
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6,840
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De 229 a 239 mm
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6,610
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Teríamos que para a impressão de 225 mm, multiplicado pelo número do coeficiente de 6,840 resulta a altura de 1,539 m.
Pode-se, igualmente, pelo comprimento do pé, conhecer a dimensão do calçado fazendo o cálculo:
adiciona-se o comprimento a metade deste mais 2, do que resulta que um pé de 24 cm terá 38 de medida de calçado (24 +12+2 =38).
Pela impressão isolada, produzida por um pé calçado, pode concluir-se:
1 - Num indivíduo parado, toda a sola fica impressa no solo;
2 - Na marcha, em regra, a parte nítida é a parte anterior da sola e o tacão;
3 - Naquele que corre, apenas apoia no chão a parte anterior do pé;
4 - Se a fuga for desesperada é o tacão que deixa a marca.
As marcas pontuadas das pontas das bengalas, guarda-chuvas, muletas, pernas, de pau, varapaus ou quaisquer objectos que sirvam de apoio são identificáveis mercê de pequenas particularidades que possam conter. Quanto aos rodados, principalmente os deixados por pneus examinados por um técnico da especialidade são facilmente identificáveis.
Um vidro partido prova com relativa facilidade o lado por onde entrou uma bala, mas já é mais difícil se foi partido com uma pedra ou outro corpo idêntico. Ainda que se tenha como verdadeira a experiência da vida cair do lado oposto à pancada, há meios para segurar o vidro e deixá-lo cair do lado dessa pancada.
O mesmo não sucede com um vidro partido em razão de uma bola que o atravessou. Neste caso, do lado do embate, o buraco produzido é menor que o da saída e as estilhas do vidro estão deste lado.
Particularmente feliz nesta matéria é o problema seguinte:
ENIGMA PRÁTICO — O VIDRO QUEBRADO
De Edmundo de Macedo
Estiraçado na cama, Pierre Auclair, o conhecido detective particular, mascava, impiedosamente, o seu inseparável chewing-gum. Maquinalmente, estendeu um braço para a mesa de cabeceira e retirou de cima desta uma fotografia, que representava uma janela, com um dos seus quatro vidros, varado por duas balas. Notava-se, também, o vidro estalado em várias direcções.
Pierre já examinara aquela foto colhida no local da ocorrência frequentes vezes. A princípio, nada lhe dissera, mas agora, ao observá-la atentamente, foi como se mil luzes se tivessem acendido no seu cérebro, até então completamente às escuras. Saltou da cama, abotoou o colarinho, ajustou o nó da gravata, alisou a madeixa loura que lhe tombara para a testa, vestiu o casaco e saiu, batendo com a porta estrondosamente.
“O inspector Herriot enganara-se uma vez mais”, e lá tinha ele de lhe ir mostrar como, onde e porquê.
Ao ser introduzido no gabinete de trabalho do inspector, um ambiente característico e muito seu conhecido, se lhe deparou: o inspector conversava amenamente com as suas dezenas de periquitos encarcerados num enorme viveiro, construído a primor, que ocupava quase toda a parede do fundo da espaçosa sala com comunicação para o parque que circundava a bela moradia do inspector Herriot. Pierre quase gritou para ser ouvido no meio do ensurdecedor chilrear das aves. Realmente, concluiu Pierre, os periquitos, embora fossem o melhor estimulante, os melhores companheiros de trabalho do inspector, para ele, Pierre, tiravam-lhe a ideia de ter de raciocinar ali.
Herriot voltou-se para acudir ao chamamento, e ao ver Pierre empalideceu.
Já sabia que se enganara uma vez mais. Pierre só o visitava quando era preciso “emendar” algum “falhanço” do inspector.
Pierre correspondeu ao bonjour resmungão do inspector, e em breve se estabeleceu o diálogo. Em breve, também, Herriot se convenceu de que tinha detido um inocente, e, ao despedirem-se, o inspector ainda segredou, como de costume aos ouvidos do jovem:
“Se tu quiseres, Pierre, serias o mais brilhante detective dos quadros da Polícia Francesa…”
Pierre sorriu, despediu-se com um aceno de mão, e saiu. Agora ia descansar tranquilo. Merecia-o, sem dúvida.
Notas várias:
1 - A nossa gravura representa uma fotografia tirada a uma janela da frente dum edifício. Um dos vidros mostra os orifícios de duas balas.
2 - Dispararam esses tiros A e B.
3 - A, morreu, provando-se que a bala que lhe provocou a morte foi disparada por B. 4 - B, no seu depoimento, afirmou que estava trabalhando no seu gabinete, de costas voltadas para a rua, uma artéria pouco movimentada àquela hora da tarde, quando ouviu uma detonação, ao mesmo tempo que era atingido num ombro por uma bala que atravessara um vidro da janela do seu gabinete. Voltara-se a tempo de ver quem o agredira, e que só milagrosamente não o matara, a correr pela rua fora. Disparou também. Tinha um revolver em cima da escrivaninha onde trabalhava.
5 - A, faleceu um dia depois de chegar ao hospital O tiro fora mortal.
6 - B era cobrador duma companhia bancária.
7 - A nada dissera aos investigadores. Cedo entrou no estado de coma, portanto impossibilitado de falar. Um dia depois sucumbira.
8 - B afirmou não conhecer de lado algum a pessoa que o agredira, ao visitá-lo no hospital. Não conhecia aquela cara.
Pergunta-se:
1 – Quem esteve sobre prisão; A ou B?
Sabe-se que o inspector Herriot, ao ouvir Pierre Auclair, levantou a de um dos suspeitos. Provou-se que estava inocente.
2 – Porquê?
Deve-se considerar inocente aquele que atirou em legítima defesa.
3 – Quem foi esse?