EFEMÉRIDES – Dia 13 de Março
Bill S Ballinger (1912 – 1980)
William Sanborn Ballinger nasce em Oskaloosa, Iowa EUA. Consultor de rádio e televisão, argumentista, escritor é considerado um autor com uma linguagem e narrativas únicas. Escreve 160 peças para televisão: The Mice, Outer Limits, para as séries Ironside, I Spy, Mickey Spillane's, Mike Hammer, etc. Escreve ainda 27 romances, 2 com o personagem Barr Breed, um investigador privado de Chicago e 5 com o agente Joaquin Hawks. Bill S Ballinger usa os pseudónimos B. S. Sanborn e Frederick Fryer. O seu livro de 1950 The Deadlier Sex, também editado com o título Portrait In Smoke recebe o prémio Les Grands Maîtres Du Roman Policier; The Longest Second (1958) é galardoado com Edgar Allan Poe e Ballinger é premiado ainda com um segundo Edgar em 1961 pelo seu trabalho para a televisão. O escritor tem vários livros publicados em Portugal.
Bill S Ballinger (1912 – 1980)
William Sanborn Ballinger nasce em Oskaloosa, Iowa EUA. Consultor de rádio e televisão, argumentista, escritor é considerado um autor com uma linguagem e narrativas únicas. Escreve 160 peças para televisão: The Mice, Outer Limits, para as séries Ironside, I Spy, Mickey Spillane's, Mike Hammer, etc. Escreve ainda 27 romances, 2 com o personagem Barr Breed, um investigador privado de Chicago e 5 com o agente Joaquin Hawks. Bill S Ballinger usa os pseudónimos B. S. Sanborn e Frederick Fryer. O seu livro de 1950 The Deadlier Sex, também editado com o título Portrait In Smoke recebe o prémio Les Grands Maîtres Du Roman Policier; The Longest Second (1958) é galardoado com Edgar Allan Poe e Ballinger é premiado ainda com um segundo Edgar em 1961 pelo seu trabalho para a televisão. O escritor tem vários livros publicados em Portugal.
TEMA — NARRATIVA POLICIÁRIA – COM UM POUCO DE SORTE
De Severina Fortes
A jovem jazia nua, sobre a cama desfeita.
Deitada de costas, vista da entrada do quarto, dir-se-ia adormecida no conforto do aquecimento ligado. Poderia, até, julgar-se que respirava pausadamente — o rosto delicado caído de lado sobre o almofadão.
Não era verdade. Estava morta, tão morta como fora abandonada horas atrás.
Depois de breve contemplação, o seu assassino entrou devagar no compartimento, ainda iluminado, do que faria se quisesse evitar despeitá-la; embora já nada a conseguisse acordar. Foi-se aproximando da cama desejoso que a jovem estivesse viva, que a anormalidade que recordava não passasse de pesadelo.
A evidente quietude da morta retirou-lhe qualquer ilusão. E só então, verdadeiramente temeu as consequências!
“Afinal, porque a matara?”, pensava em desespero, “Porquê?”.
Não sabia.
Após o crime refugiara-se no escritório da sua residência, ia eufórico, empolgado pelo feito inesperado; assim como estaria se acabasse de vencer um inimigo no campo de batalha. Todavia à medida que se ia acalmando (e moderando, em resultado da chamada telefónica de negócios a que fora preciso atender) a euforia abrandara e dera realce à sensação atávica do prazer de matar em liberdade — a defrontar; afoita, o condicionalismo relativo de toda a vida.
Logo o instinto de defesa, no intuito de lhe fornecer o escape a uma situação sem controlo imediato — que no fundo o horrorizava — tornara-o confuso e duvidoso. Já não se queria acreditar, não se vendo a roubar a existência a quem quer que fosse. E porquê a ela?
Por isso voltara ao apartamento — apesar do risco — a fim de se certificar; e, sendo verdade o que agora recusava aceitar, tentaria descobrir o que o arrastara a tamanha loucura.
Quando chegara à capital, na véspera, soube pela empregada doméstica que a esposa se encontrava era visita na casa dos pais, nos arredores, só viria no dia seguinte. Tinha jantado antes de entrar em casa. Ainda se encerrara no escritório, mas o cansaço não lhe dera paciência para se entregar aos assuntos pendentes. Aguardava uma chamada telefónica de fora, necessária; contudo não esperara. Saíra directamente pela porta exterior do gabinete e encaminhara-se para a casa da jovem, carente de calor humano.
Divertido, vira os artigos de artesanato criados pela jovem, que os venderia nas lojas da especialidade. Achara graça aos últimos arranjos dela para se deitar e tivera a surpresa de saber que dormia sempre nua. Observara o medicamento que andava a tomar para dormir e entretivera-se a vê-la mergulhar no sono, a seu lado, até que dormirá também.
Ao acordar, vendo-a profundamente adormecida e indefesa — a oportunidade que não pedira, mas em consciência desejara, agigantou-se. Algo de bestial o movera e incentivara, pois nem esboçara uma tentativa de superar o impulso assassino. Com súbita resolução apoiara almofadão no rosto da jovem, antes de se arrepender, não de matar mas de ter coragem para o fazer, cedendo à tentação do momento.
Tinha sido fácil — tão fácil… — impedi-la de respirar sem empregar a força, mantendo-se firme até ao ligeiro espasmo final, com a vítima imersa no sono. Se de algum modo vinha a encarar essa morte como desejável, estava feita. Mas nunca dera por tal!
Olhando-a, já morta, despida de tudo que por direito tivera ao nascer, não sentira compaixão; nada se animou em si por ela, nem houve a turbação que seria natural pelo relacionamento. Mesmo reconhecendo o mal que lhe fizera — e o que se aproveitara — estava seco, quase indiferente. Quem sabe se porque somente vira nela uma fêmea cheia de vivacidade, de rosto de criança e corpo de mulher, ignorando-lhe a personalidade — talvez por não lhe interessar…
A virgindade que lhe trouxera lisonjeara-o, claro, sem contudo apreciar demasiado tê-la conseguido sem se bater por ela. As vezes dava consigo a pensar porque motivo aquela quase criança se dera ao homem casado há muito, começando a ser abandonado pela força da vida, em vez de escolher um parceiro da sua idade.
Tinha a certeza de que pouco a requestara, e nem teria insistido se se tivesse negado. Em verdade talvez nem se importasse tê-la, ou conservá-la muito mais. Ia arrastando a ligação naquela de “não gosto muito, mas deixa andar”, pelo comodismo supérfluo tão ao gosto dos machos endinheirados, ou apenas para a assistir, retribuindo-lho o que lhe devia.
Admirava-se ainda dela não mostrar ciúmes da mulher dele, nunca lhe ter pedido para se -divorciar, nem lhe exigir mais do que lhe dava. Limitava-se a estar disponível, a ser como coisa dele, predisposta a alcançar um fim. Descortinava essa determinação no fundo dos seus olhos, ao fitarem-se seriamente de vez em quando. E ele não gostava!
Tratava-se da mesma determinação que a esposa, se tivesse sido perspicaz a quando do noivado, teria vislumbrado nos seus olhos. E também não teria gostado!
Para se casar mentalizara-se que se apaixonara. Inventara naquela frágil menina rica a beleza e os dons para se prender a uma união proveitosa: Mais tarde confessava-se que o casamento enganara ambos. No entanto, ele tivera o lucro!
Era isso que lhe desagradava, e por vezes odiava, na jovem mulher: a ambição do amanhã alcançado a pulso por ser útil, sem outro sentimento sincero: Via-a igual a si, na faceta que desprezava. O relacionamento de ambos, psicologicamente, estivera errado à partida: Existe a lei da atracção dos opostos; para dois egos iguais, é o choque!
Seria essa identidade o bastante para, no subconsciente, querer desembaraçar-se dela!
Não ousou contrapor. Afinal, não há efeito sem causa…
Considerou se devia telefonar à Polícia, não deixar o corpo, decerto ainda tépido devido ao aquecimento ligado, abandonado de novo, facultando-lhe a decência de se decompor em dignidade; contudo tratou de limpar as suas impressões digitais nos sítios em que poderia ter tocado, logo voltado a construir a sua defesa.
Chegara o momento de partir. O elo, de algum modo afectivo, que o prendera à morta, ausente a essência vital do corpo, tornara-se nulo e ficava para trás. Pensaria em si!
“Se por excepção — monologava — desta vez não se cumprisse essa espécie de regra que faz colocar um indivíduo desconhecido que nos conhece, no nosso caminho quando queremos passar despercebidos, e que pode testemunhar…”
Viera ali para ter uma certeza, talvez para se julgar: Todavia, apesar do crime, não estava disposto a passar o resto da vida como criminoso. Tivera a sua razão!
Com cuidado, desligou o aquecimento — a hora da morte não seria determinada com exactidão. E havia a chamada que atendera no escritório!
Com um pouco de sorte…
TEMA — HUMOR NEGRO – VINGANÇA AO PEQUENO ALMOÇO
Pelo ténue zumbido, Rita pressentiu o perigo, antes mes mo de o descortinar. Com o peito oprimido, incapaz de ousar respirar, tremendo pelo imprevisto, tímida e ansiosamente olhava o marido do outro lado da mesa.
Matias espalhava satisfação no rosto corado e bolachudo. Mastigava devagar e ruidosamente a torrada extremamente barrada de manteiga, enquanto os olhos seguiam em leitura atenta as notícias. Lambeu guloso os dedos molhados e procurou, sem desviar o olhar, nova torrada.
A mosca saltitou ligeiramente à aproximação dos dedos disputativos interrompendo a inspecção gustativa, para logo continuar, entretanto, entre a chávena de leite e a restante torrada.
Rita rolava os olhos hipnotizada pela manobra do insecto, em impotente expectativa. Demais conhecia a aversão mórbida do marido pelas moscas. Assistira e fora parte integrante das invectivas violentas quanto a sua pessoa e seu zelo em particular, e as moscas em geral. Tinha consciência do comportamento ordeiro, limpo, constante, duma boa dona de casa. A sua luta esbatia-se, porém, na incompreensão do marido.
O verão era a época crítica. Apesar dos cuidados, da multiplicidade de armas usadas, havia sempre um exemplar obstinado, como que nascido do próprio vácuo, a romper o cerco. A acrimónia do marido, sem vislumbre de desculpa, não tardava, azeda.
A mosca continuava as suas deambulações exploratórias indiferente ao martírio que proporcionava.
Matias dobrou o jornal e estendeu a mão. Inesperadamente enrubesceu. Num ímpeto de raiva, olhos esgazeados, atirou-se mosca, vociferando esganiçado, violento, bateu e bateu sem ordem, insensível e insensato.
Rita quedou-se de olhos baixos e lacrimosos.
Os bocados de louça fina, resultado do desigual combate, espalhavam-se pela mesa e caídos no chão.
Sacudiu com raiva incontida o vestido manchado de leite, peganhoso da manteiga dispersa. Desta vez, enfim, verdadeiramente revoltada pela atitude desabrida do marido.
Vingança, vingança — uma palavra a mexer, a impor-se--lhe no cérebro.
Dias depois, a velha cena do início do dia.
Rita, prenhe de medo, ainda que satisfeita consigo própria.
O marido, sempre ruidoso, trincava a torrada loura.
— Tem um sabor estranho! — comentou.
Rita quase desmaiou. Deus! Iria ele descobrir o seu crime? A vingança, a sua terrível, terminante vingança de eterna ofendida?
O homem, o “seu homem” acabou a derradeira torrada.
Arrotou grosseiramente, grunhiu um “óptimas” saciado. Acabara de engolir duzentas e quatro moscas, esmagadas em papa gordurosa, trituradas, passadas ao coador e misturadas na manteiga.
Duzentas e quatro…
M. Constantino
De Severina Fortes
A jovem jazia nua, sobre a cama desfeita.
Deitada de costas, vista da entrada do quarto, dir-se-ia adormecida no conforto do aquecimento ligado. Poderia, até, julgar-se que respirava pausadamente — o rosto delicado caído de lado sobre o almofadão.
Não era verdade. Estava morta, tão morta como fora abandonada horas atrás.
Depois de breve contemplação, o seu assassino entrou devagar no compartimento, ainda iluminado, do que faria se quisesse evitar despeitá-la; embora já nada a conseguisse acordar. Foi-se aproximando da cama desejoso que a jovem estivesse viva, que a anormalidade que recordava não passasse de pesadelo.
A evidente quietude da morta retirou-lhe qualquer ilusão. E só então, verdadeiramente temeu as consequências!
“Afinal, porque a matara?”, pensava em desespero, “Porquê?”.
Não sabia.
Após o crime refugiara-se no escritório da sua residência, ia eufórico, empolgado pelo feito inesperado; assim como estaria se acabasse de vencer um inimigo no campo de batalha. Todavia à medida que se ia acalmando (e moderando, em resultado da chamada telefónica de negócios a que fora preciso atender) a euforia abrandara e dera realce à sensação atávica do prazer de matar em liberdade — a defrontar; afoita, o condicionalismo relativo de toda a vida.
Logo o instinto de defesa, no intuito de lhe fornecer o escape a uma situação sem controlo imediato — que no fundo o horrorizava — tornara-o confuso e duvidoso. Já não se queria acreditar, não se vendo a roubar a existência a quem quer que fosse. E porquê a ela?
Por isso voltara ao apartamento — apesar do risco — a fim de se certificar; e, sendo verdade o que agora recusava aceitar, tentaria descobrir o que o arrastara a tamanha loucura.
Quando chegara à capital, na véspera, soube pela empregada doméstica que a esposa se encontrava era visita na casa dos pais, nos arredores, só viria no dia seguinte. Tinha jantado antes de entrar em casa. Ainda se encerrara no escritório, mas o cansaço não lhe dera paciência para se entregar aos assuntos pendentes. Aguardava uma chamada telefónica de fora, necessária; contudo não esperara. Saíra directamente pela porta exterior do gabinete e encaminhara-se para a casa da jovem, carente de calor humano.
Divertido, vira os artigos de artesanato criados pela jovem, que os venderia nas lojas da especialidade. Achara graça aos últimos arranjos dela para se deitar e tivera a surpresa de saber que dormia sempre nua. Observara o medicamento que andava a tomar para dormir e entretivera-se a vê-la mergulhar no sono, a seu lado, até que dormirá também.
Ao acordar, vendo-a profundamente adormecida e indefesa — a oportunidade que não pedira, mas em consciência desejara, agigantou-se. Algo de bestial o movera e incentivara, pois nem esboçara uma tentativa de superar o impulso assassino. Com súbita resolução apoiara almofadão no rosto da jovem, antes de se arrepender, não de matar mas de ter coragem para o fazer, cedendo à tentação do momento.
Tinha sido fácil — tão fácil… — impedi-la de respirar sem empregar a força, mantendo-se firme até ao ligeiro espasmo final, com a vítima imersa no sono. Se de algum modo vinha a encarar essa morte como desejável, estava feita. Mas nunca dera por tal!
Olhando-a, já morta, despida de tudo que por direito tivera ao nascer, não sentira compaixão; nada se animou em si por ela, nem houve a turbação que seria natural pelo relacionamento. Mesmo reconhecendo o mal que lhe fizera — e o que se aproveitara — estava seco, quase indiferente. Quem sabe se porque somente vira nela uma fêmea cheia de vivacidade, de rosto de criança e corpo de mulher, ignorando-lhe a personalidade — talvez por não lhe interessar…
A virgindade que lhe trouxera lisonjeara-o, claro, sem contudo apreciar demasiado tê-la conseguido sem se bater por ela. As vezes dava consigo a pensar porque motivo aquela quase criança se dera ao homem casado há muito, começando a ser abandonado pela força da vida, em vez de escolher um parceiro da sua idade.
Tinha a certeza de que pouco a requestara, e nem teria insistido se se tivesse negado. Em verdade talvez nem se importasse tê-la, ou conservá-la muito mais. Ia arrastando a ligação naquela de “não gosto muito, mas deixa andar”, pelo comodismo supérfluo tão ao gosto dos machos endinheirados, ou apenas para a assistir, retribuindo-lho o que lhe devia.
Admirava-se ainda dela não mostrar ciúmes da mulher dele, nunca lhe ter pedido para se -divorciar, nem lhe exigir mais do que lhe dava. Limitava-se a estar disponível, a ser como coisa dele, predisposta a alcançar um fim. Descortinava essa determinação no fundo dos seus olhos, ao fitarem-se seriamente de vez em quando. E ele não gostava!
Tratava-se da mesma determinação que a esposa, se tivesse sido perspicaz a quando do noivado, teria vislumbrado nos seus olhos. E também não teria gostado!
Para se casar mentalizara-se que se apaixonara. Inventara naquela frágil menina rica a beleza e os dons para se prender a uma união proveitosa: Mais tarde confessava-se que o casamento enganara ambos. No entanto, ele tivera o lucro!
Era isso que lhe desagradava, e por vezes odiava, na jovem mulher: a ambição do amanhã alcançado a pulso por ser útil, sem outro sentimento sincero: Via-a igual a si, na faceta que desprezava. O relacionamento de ambos, psicologicamente, estivera errado à partida: Existe a lei da atracção dos opostos; para dois egos iguais, é o choque!
Seria essa identidade o bastante para, no subconsciente, querer desembaraçar-se dela!
Não ousou contrapor. Afinal, não há efeito sem causa…
Considerou se devia telefonar à Polícia, não deixar o corpo, decerto ainda tépido devido ao aquecimento ligado, abandonado de novo, facultando-lhe a decência de se decompor em dignidade; contudo tratou de limpar as suas impressões digitais nos sítios em que poderia ter tocado, logo voltado a construir a sua defesa.
Chegara o momento de partir. O elo, de algum modo afectivo, que o prendera à morta, ausente a essência vital do corpo, tornara-se nulo e ficava para trás. Pensaria em si!
“Se por excepção — monologava — desta vez não se cumprisse essa espécie de regra que faz colocar um indivíduo desconhecido que nos conhece, no nosso caminho quando queremos passar despercebidos, e que pode testemunhar…”
Viera ali para ter uma certeza, talvez para se julgar: Todavia, apesar do crime, não estava disposto a passar o resto da vida como criminoso. Tivera a sua razão!
Com cuidado, desligou o aquecimento — a hora da morte não seria determinada com exactidão. E havia a chamada que atendera no escritório!
Com um pouco de sorte…
TEMA — HUMOR NEGRO – VINGANÇA AO PEQUENO ALMOÇO
Pelo ténue zumbido, Rita pressentiu o perigo, antes mes mo de o descortinar. Com o peito oprimido, incapaz de ousar respirar, tremendo pelo imprevisto, tímida e ansiosamente olhava o marido do outro lado da mesa.
Matias espalhava satisfação no rosto corado e bolachudo. Mastigava devagar e ruidosamente a torrada extremamente barrada de manteiga, enquanto os olhos seguiam em leitura atenta as notícias. Lambeu guloso os dedos molhados e procurou, sem desviar o olhar, nova torrada.
A mosca saltitou ligeiramente à aproximação dos dedos disputativos interrompendo a inspecção gustativa, para logo continuar, entretanto, entre a chávena de leite e a restante torrada.
Rita rolava os olhos hipnotizada pela manobra do insecto, em impotente expectativa. Demais conhecia a aversão mórbida do marido pelas moscas. Assistira e fora parte integrante das invectivas violentas quanto a sua pessoa e seu zelo em particular, e as moscas em geral. Tinha consciência do comportamento ordeiro, limpo, constante, duma boa dona de casa. A sua luta esbatia-se, porém, na incompreensão do marido.
O verão era a época crítica. Apesar dos cuidados, da multiplicidade de armas usadas, havia sempre um exemplar obstinado, como que nascido do próprio vácuo, a romper o cerco. A acrimónia do marido, sem vislumbre de desculpa, não tardava, azeda.
A mosca continuava as suas deambulações exploratórias indiferente ao martírio que proporcionava.
Matias dobrou o jornal e estendeu a mão. Inesperadamente enrubesceu. Num ímpeto de raiva, olhos esgazeados, atirou-se mosca, vociferando esganiçado, violento, bateu e bateu sem ordem, insensível e insensato.
Rita quedou-se de olhos baixos e lacrimosos.
Os bocados de louça fina, resultado do desigual combate, espalhavam-se pela mesa e caídos no chão.
Sacudiu com raiva incontida o vestido manchado de leite, peganhoso da manteiga dispersa. Desta vez, enfim, verdadeiramente revoltada pela atitude desabrida do marido.
Vingança, vingança — uma palavra a mexer, a impor-se--lhe no cérebro.
Dias depois, a velha cena do início do dia.
Rita, prenhe de medo, ainda que satisfeita consigo própria.
O marido, sempre ruidoso, trincava a torrada loura.
— Tem um sabor estranho! — comentou.
Rita quase desmaiou. Deus! Iria ele descobrir o seu crime? A vingança, a sua terrível, terminante vingança de eterna ofendida?
O homem, o “seu homem” acabou a derradeira torrada.
Arrotou grosseiramente, grunhiu um “óptimas” saciado. Acabara de engolir duzentas e quatro moscas, esmagadas em papa gordurosa, trituradas, passadas ao coador e misturadas na manteiga.
Duzentas e quatro…
M. Constantino
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