EFEMÉRIDES – Dia 29 de Março
Jo Nesbø (1960)
Nasce em Oslo, Noruega. Futebolista, músico e vocalista de uma banda rock, jornalista e economista inicia-se na carreira de escritor em 1997. Escreve também livros infantis e tem publicados cerca de uma dúzia romances policiários. Cria o personagem Harry Hole um detective brilhante que recebeu treino do FBI e reside em Oslo. Está traduzido em 40 línguas e na Noruega os seus livros vendem meio milhão de cópias. O autor tem uma longa lista de prémios e nomeações; o destaque vai para The Glass Key Award 1998, prémio sueco para o melhor romance nórdico de crime com e é nomeado em 2010 para o Edgar Award para melhor romance com Nemesis. Em Portugal estão editados o 3º, 4º e 5º livros da série Harry Hole, o 1º e o 2º Flaggermusmannen/The Bat e Kakerlakkene/The Cockroaches ainda não foram publicados.
1 – O Pássaro De Peito Vermelho (2009), Editora Dom Quixote; Título Original: Rødstrupe (2000), Título da edição inglesa: The Redbreast (2006)
2 - Vingança A Sangue-Frio (2010), Colecção Ficção Policial, Editora Livros d'Hoje; Título Original: Sorgenfri (2002), Título da edição inglesa: Nemesis (2008)
3 – A Estrela do Diabo (2011), Editora Dom Quixote; Título Original: Marekors (2003), Título da edição inglesa: The Devil's Star (2005)
TEMA — RECORDAR O PASSADO — NEM O DIABO RESISTE…
No final dos anos setenta do anterior século passado exercia funções de Agente do Ministério Público nos Tribunais de 1ª Instância instalados na Rua Braamcamp em Lisboa, no caminho do escritório de Amigo de longa data, Artur Varatojo em Campo de Ourique. Telefonava-me, quase sempre a uma quarta-feira para almoçarmos “Contas do Porto” porque o Varatojo — jeito que lhe ficou da mocidade cheia de dificuldades, não largava moedas em vão. O “poiso” habitual do repasto era um restaurante da Rua da Conceição*, pouco antes da Travessa da Glória, a do elevador.
Sentados, consultada a lista e discutido o prato, entravamos na cavaqueira — interrompida de quando em quando, por uma pergunta subtil, invariavelmente sobre imposto sucessório, que ele considerava-me um “ás” ao lado de uma carta branca; aliás tinha a gentileza de nunca abordar as minhas funções — retomava com arte de mestre, que era, a conversa interrompida. Era um “orador” admirável, um conversador de excepção, entusiasta e encantador, acreditem.
A propósito de Alcobaça, melhor, dos pêssegos expostos na vitrina com a indicação da origem, contou, com a graça que lhe era inerente, uma crónica que acabara de enviar para a Capital que, de ordinário eu não lia, porquanto Victor Dimas, jornalista do Expresso na rua adjacente ao tribunal, me enviava todos os dias um Diário Popular. Tentarei reproduzir o caso, tal como me lembro trinta e tal anos depois.
Ali para oeste, numa aldeola do concelho de Alcobaça, ia um rebuliço tremendo com um menor de 13/14anos possuído pelo demónio há várias semanas. Dominado por uma força incomum, ninguém o podia segurar. Batia, clamava, saltava, e, com velocidade diabólica rolava pelo chão, rasgando as roupas sujas… pedras, de origem desconhecida, caíam frequentemente no telhado e as janelas ostentavam as marcas dessas armas voadoras. Os factos eram do domínio dos vizinhos que suportavam receosos que o diabo lhes pedisse contas dos prejuízos nas casas e quintais anexos, A intervenção do pároco, aparamentado, água benta e cruz, pronto a exorcizar a “perversa criatura”, rendeu-se incapaz. Um certo espírita de Lisboa fez uma peregrinação, mulheres de virtude, espíritas, nada resultou. O rapaz, de olhos esbugalhados, assusta e a tudo resistiu.
O pai, internado no Hospital, não assistia ao domínio do “bode chifrudo” sobre o filho, a avó materna, de avançada idade refugiava-se de rosário nas mãos entre as paredes do quarto, morrendo um pouco todos os dias. A mãe, cansada, consumida pelo mau rumo da vida, sentiu-se um dia eufórica de coragem. Mal o rapaz começou a rasgar-se, saltou sobre ele com a força da determinação, pegou-lhe pela orelha e não mais a largou. De nada valeram os berros e a tentativa de se soltar. E assim se manteve qual lapa presa à rocha: Mãe, filho e diabo seguros pelos dedos enérgicos da primeira.
A noite chegou, o rapaz adormeceu e o diabo não buliu… poços há que nã resistam a um bom puxão de orelhas: nem o diabo resiste!
M. Constantino
*Rua Conceição da Glória
TEMA — FICÇÃO CIENTÍFICA — O JOGO DO TEMPO E DO DESTINO
De Severina Fortes
Quando os Caminhos do Tempo ficaram abertos e se pode controlar as distâncias a alcançar, permitindo o regresso, ninguém qualificado para essas viagens.
Fora a época romântica do Projecto, de muita abnegação e pioneirismo, criando raízes a uma especialização necessária para melhor cumprir no futuro.
Por fim gerou-se entre os viajantes uma espécie de cansaço, levando-os a não achar assim tão importante a procura que por vezes os compelia a executar, com as suas próprias mãos — no material certo, no local de origem — objectos vários que traziam, enriquecendo o Museu do Homem, na ala dos remotos.
Na verdade tornara-se numa fase dura de labor intenso. Perante o desgaste físico de toda equipa. Jorvas, responsável pelo Projecto, suspendeu as últimas viagens para merecido repouso.
Pessoalmente o ócio cansava-o mais do que o trabalho normal. Sentia necessidade de qualquer ocupação agradável para preencher o lazer.
Lembrou-se então da sua paixão pela História da velha Europa do século. XVIII, especialmente durante a corte do Rei-Sol, passatempo que só verdadeiramente deixara quando aceitara o Projecto dos Caminhos noTempo.
Ainda guardava essa secção da colectânea histórica e decidiu revê-la.
Colocou-a no leitor especificando o tipo de leitura colhido; mas deu-se conta que não Ihe apetecia ler.
Sem contrariedade, deu preferência ao som, passando a escutar o que, afinal, já conhecia tão bem.
Contudo, não estava com muita atenção naquele dia. O seu espírito libertou-se, seguindo uma ideia insidiosa.
A ideia bailou feliz, afastou-se e voltou mais firme. Evitou pensar nela e tornou-se ideia fixa.
E porque sentia particular fascinação por todo aquele fausto, sobrepondo-se a uma gama extraordinária de sentimentos — dando lugar às mais nobres e também torpes potencialidades humanas — aquela ideia tornou-se obcecante.
Quantas vezes já depois dos caminhantes do tempo serem uma realidade, sonhara ir, ele próprio ao encontro de tais emoções. Arredava-se, porém esse sonho — estava-lhe vedado viajar no Tempo.
Mas, novamente a tal ideia cativante surgiu mais audaciosa: enviar alguém competente, capaz de trazer relatos verídicos, o dia a--dia desses tempos de aparato.
Porque não?
Geo foi o escolhido. Robusto, versátil, culto, frequentara Altas Ciências e o seu entusiasmo pelas viagens fora factor de escolha.
No entanto, Jorvas, na sua euforia, conseguiu que Geo compartilhasse do seu interesse, com igual intensidade, estudando ambos qual o melhor momento a escolher.
Tudo correu bem à partida. As possíveis implicações só seriam avaliadas, não depois da partida de Geo, mas quando este não respondeu ao contacto e não voltou.
Foram semanas de tensão em que nada havia a fazer.
Começaram estudos para a nova fase de trabalhos, sem qualquer entusiasmo, até que Geo, já quase inesperadamente, foi recuperado.
Havia uma constante nos Caminhos do Tempo, conhecida e não explicada, em que o viajante era recuperado quando em perigo de vida.
Jorvas não estava presente aquando da sua chegada. Embora alertado de imediato, só pode vê-lo, por instantes, no visor do seu gabinete, antes de seguir para a Regeneração.
Vinha doente; o seu aspecto demonstrava-o bem. Todavia, voltara — o alívio de Jorvas foi enorme.
Agora ficaria na Regeneração. Normalmente, precisaria de três dias para se restabelecer; depois, falariam certamente, de tudo quanto haveria a saber.
Mas Geo não pensava do mesmo modo!
Na noite do segundo dia, fugiu da Sala da Convalescença.
Ainda fraco, conseguira chegar e abrir a porta da sala de comandos.
Dominando-se, tentando não perder o sangue-frio perante a agitação que o tomou, colocou-se rapidamente no passadiço de acesso, mantendo o neutralizador de barreiras a funcionar.
Não queria surpresas!
Sabia que passaria; mas a ânsia de não errar ordenava-lhe cuidado.
Já dentro da sala, junto ao painel do computador, não se deteve, agindo automaticamente, mecanizando gestos com precisão sem deixar de se admirar com a facilidade encontrada. Essa admiração alertava-o para a necessidade de urgência.
Trazia já programadas as coordenadas a introduzir na Alimentação de Programas, com dados específicos, que não mostrara a ninguém.
Queria voltar ao passado!
A experiência feita durante os longos anos que, por uma curiosa distorção do Tempo, passara noutra época — nas poucas semanas que mediaram entre a sua ida e a recuperação temporal — causara-lhe inefável prazer.
Estar à frente, saber mais, atordoar pelo nunca visto, sentir a força da certeza provada, enchera -o de felicidade.
E o curioso fora que nade fizera, na verdade, além de ocupar um lugar que, dir-se-ia esperava por si. As circunstâncias existiam e eclodiram à sua chegada, envolvendo-o como uma teia.
E era isso que não se atrevia a contar a Jorvas!
Como lhe poderia dizer que afinal aquele personagem de lenda, de que tanto tinham falado — apontado por uns como um mistificador, e por outros como um homem de poderes fantásticos era Geo?
Qual a reacção de Jorvas quando soubesse que, por o ter enviado para aquela época, fizera o jogo do Destino e do Tempo, colocando-o no exacto momento e local para a vivência histórica que, doutro modo, não existiria?
O Tempo recolhera-o no preciso instante da grave doença, em que a maioria das pessoas o considerava morto. A volta deprimira-o…
Em plena actividade, todo o complexo mecanismo vibrava suavemente. Aqui e ali, pequenas luzes surgiam e desapareciam num ritmo alucinante, em contraste com outras fixas, mais esparsas.
O painel foi perdendo luminosidade, sussurrando tenuemente, intensificando outros sinais até aí parados.
Subitamente, tudo se mostrou como que suspenso, assustando-o, temendo não saber tanto como julgara.
Enganara-se. Radiante viu surgir um vazio cinzento, semelhante a uma névoa, qual sugestão de nada, que era o princípio do Caminho.
Verificou se as coordenadas aparecidas no visor maior do computador coincidiam com o desejado.
Assim era.
Sem hesitar, apagou os dados com as características pessoais, precaução tomada para o retorno dos viajantes. Não queria voltar!
Como mensagem a Jorvas deixou em lugar bem visível uma delicada miniatura sua
Com o trajo da corte, de cabeleira, em seu poder quando fora recuperado, para descobrisse a verdade — se pudesse…
E sem pena, consciente de seguir a sua vontade e destino, penetrou na névoa cinzenta e desapareceu.