Efemérides 24 de Outubro
Lenore Glen Offord (1905 - 1991)
Nasce em Spokane, Washington, EUA. Crítica literária de literatura policiária no jornal San Francisco Chronicle durante mais de 30 anos. Publica o primeiro livro, Murder On Russian Hill, que também foi editado com o título Murder Before Breakfast em 1938. Cria os personagens Bill & Coco Hastings e Todd McKinnon, que surge no livro Skeleton Key (1943). No total a autor escreve 11 romances policiário e um número indeterminado de short stories publicadas na Ellery Queen Magazine.
Ted Allbeury (1917 - 2005)
Theodore Edward le Bouthillier Allbeury nasce em Stockport, Cheshire, Inglaterra. Durante a 2ª guerra mundial pertence ao Intelligence Corps o que mais tarde o inspira para a escrita de livros de espionagem. O seu primeiro romance A Choice Of Enemies (1972) tem sido descrito como baseado na sua vida. O escritor que usa os pseudónimos Richard Butler e Patrick Kelly, é um autor reconhecido internacionalmente, com cerca de meia centena de romances publicados — e um livro de short stories, Other Kinds of Treason (1992) — está traduzido em 23 línguas, incluindo russo. Em Portugal está editado:
1 – Operação Lanterna (1985), Nº32 Colecção Livros de Bolso, Série Guerra e Espionagem, Publicações Europa América. Título Original: The Lantern Network (1978).
TEMA — CASOS E ACASOS DO CRIME — TRÁGICO DESTINO
Gabriel Dumaine e sua jovem e encantadora esposa, Elisabeth, despediram-se dos Parker e foram para casa. Moravam no apartamento ao lado. Naquela noite de 1 de Maio de 1952, ficaram até tarde tomando café e conversando alegremente na casa dos Parker. Mais tarde, lembrar-se-iam que, naquela noite, Dumaine não apresentara o menor sinal de que estivesse preocupado, contrariado ou infeliz. Ao contrário, os dois casais tinham passado um serão bem agradável e divertido. Às 5.30 da manhã seguinte Mrs. Dumaine atravessou o hall, trémula e assustada, e foi bater ao apartamento dos vizinhos, pedindo auxílio. Estava toda suja de sangue.
— Por favor, ajudem-me — implorou ela. — Gabe tentou matar-se, eu também estou ferida.
O Comissário Grafton Wells e o Detective Truman King, da Polícia do Condado de Fairfax, atendendo a chamada telefónica de Parker, vieram imediatamente ao local. Encontraram o jovem advogado caído de bruços na cama, com a cabeça ensanguentada. O rosto estava virado para o lado onde sua esposa estivera deitada. O braço direito descansava, ligeiramente afastado do corpo, e perto da mão estava caído o revólver, com o qual tentara se matar e ferira a esposa. Dumaine ainda estava vivo. Ele e a esposa foram conduzidos para o Arlington Hospital. Gabriel Dumaine permaneceu em estado de coma durante seis horas. Na tarde daquele mesmo dia morreu, sem ter recuperado a consciência. A viúva era a única pessoa que poderia explicar porque, e como, ele tinha se matado e tentado matá-la também. Parecia suicídio — pensava o Tenente Wells — mas porquê? Porque teria este brilhante jovem de 32 anos de idade, que aparentemente tinha tudo que desejava, se suicidado e tentado matar a esposa, sem deixar qualquer explicação do seu gesto? Que a esposa tivesse cometido o crime, estava aparentemente fora de cogitações, porque as únicas impressões digitais achadas no revólver eram de Dumaine. Contudo, era verdade que a arma, parte de uma grande colecção sua, fora manejada por ele muitas vezes. Dumaine tinha grande prazer em mostrar as armas e era um técnico em tudo que se relacionasse com elas. Entre os seus pertences, foram descobertos desenhos para um novo tipo de arma automática que ele estava a aperfeiçoar. As impressões digitais, portanto, podiam ser antigas. “Poderia Mrs. Dumaine ter morto seu marido”, raciocinava o Detective, e depois ter atirado em si própria, para se isentar da culpabilidade do crime? Poderia ter simulado o suicídio de seu marido? Era importantíssimo verificar a sequência exacta dos acontecimentos na tragédia daquela madrugada. Wells foi ver Mrs. Dumaine no hospital.
— A senhora estava a dormir na hora em que foi dado o tiro? — perguntou Wells.
— Devia estar — murmurou Mrs. Dumaine com os olhos cheios de lágrimas. — Eu acordei de repente, decerto com o estampido. Senti uma coisa a bater na minha anca. Ouvi outro estampido e senti uma dor súbita na coxa. Olhei para o lado e vi Gabe com a cabeça toda ensanguentada. A mão dele ainda segurava o revólver. Senti o sangue escorrer na minha coxa e percebi que tinha sido ferida.
— Esta resposta é muito importante. Mrs. Dumaine — disse o Comissário — Deve recordar-se com toda a exactidão se ouviu outro estampido, após se ter sentido ferida na coxa…
— Realmente, não sei com certeza — continuou ela. — Tudo aconteceu tão depressa… Mas acho que não ouvi outro estampido. De facto, agora que penso nisso, estou certa de que não ouvi mais nada.
— Deus é testemunha que Dumaine se matou — disse Wells. — Mas certamente não tentou matar esposa. Foi um acidente, sem dúvida.
Na Europa, no auge da guerra aérea em 1914, um B-26, Marauder, pilotado por Gabriel Dumaine, bombardeava a Alemanha. Nos céus de França o seu avião foi atingido e Dumaine dado como desaparecido em combate. Durante muitos anos, arrostara êle tôda a sorte de perigos. Alistara-se em 1910 na Força Aérea Canadense, e em 1942 transferira-se para a Força Aérea Americana. Foi quando servia no 9º grupo aéreo, com base na Inglaterra, que Dumaine encontrou o seu trágico destino. Numa malograda incursão aérea foi abatido e feito prisioneiro. Passou ano e meio internado num campo de concentração nazista. Sofreu fome, brutalidades e todos os horrores que o inimigo infligia aos prisioneiros. Gabriel Dumaine nunca mais se recuperou dos sofrimentos passados naquele ano. Frequentemente tinha pesadelos terríveis, durante os quais se levantava gritando como um louco. Tinha que ser subjugado e levado para a cama à força. Um conhecido advogado do Condado de Arlington, que tinha sido colega de Dumaine na Universidade George Washington, narrou um doloroso incidente:
— Gabe e eu éramos companheiros de quarto — disse — Uma noite, véspera de exame, ficámos a estudar até tarde. Estávamos debaixo de grande excitação. Finalmente resolvemos ir-nos deitar. Fui à casa de banho e, quando voltei, Gabe já estava a dormir. Dirigia-me para a cama, quando o ouvi a gemer e vi que se virara agitado, debaixo das cobertas. De repente, deu um grito terrível. Sentou-se na cama com o corpo curvado para a frente, agitando os braços freneticamente. Os seus olhos estavam parados. Agarrei-o pelos braços e tentei, acordá-lo. Voltou a si e deitou-se novamente.
Na tarde daquele mesmo dia, o Comissário Wells convocou os jornalistas que aguardaram notícias durante todo o dia.
— Gabriel Dumaine suicidou-se — disse ele. — Mas não tinha consciência do que estava a fazer.
— Está bem certo disso? — perguntou-lhe um repórter.
— Sim. Depois de Mrs. Dumaine ser ferida, não houve mais nenhum estampido. Isto significa que Dumaine atirou primeiro em si mesmo. Provavelmente, quando sua mão caiu, bateu na esposa a arma disparou, ferindo-a na coxa.
— Parece possível — disse o repórter. — Mas por que desejaria Dumaine matar-se?
— Todos conhecem as terríveis recordações que Dumaine guardava da guerra — continuou o Comissário. — Padeceu muito nos campos de concentração e frequentemente sonhava com as experiências sofridas. Ontem teve mais um destes horríveis pesadelos e durante o sono apanhou um dos seus revólveres e, inconscientemente, matou-se: — O caso está encerrado.
TEMA — CONTO — A SOMBRA
De Osvaldo Guerra
Pela ponte rústica caminhava um homem de ombros largos e ventre saído agarrado ao cabo da enxada, num andar molengão.
A noite clara e doce punha tons rutilantes na água rumorosa que corria em baixo; e o cemitério, adiante, com o seu muro caiado a branco, sobressaía da noite, terrível, e os ciprestes dentro erguiam-se espectrais e silenciosos.
João das Dores era um rico proprietário local, rude de maneiras, como todos, e ambicioso como poucos. Ainda agora estava em demanda com o José Pires, por causa' da extrema de uma propriedade, confinante com a de outro. Os malditos torrões, sempre os malditos torrões.
Um vulto impreciso avançava da outra banda, achegando-se pouco a pouco, e o luar. Batendo-lhe no rosto denunciou as feições grosseiras de José Pires.
A aldeia, afastada, estava alheia às questões da noite, e quase adormecida…
Os dois lavradores pararam em frente um do outro, interrogaram-se, elevaram a voz, altercaram e a enxada de João das Dores alçou-se, desabando violentamente sobre a cabeça de José Pires, que estalou como uma bilha vazia.
O assassino estremeceu um momento só, e logo se endireitou, decidido, passando o cadáver sobre o corrimão e arrojando-o ao rio. A corrente levou-o, misteriosa e sussurrante.
João das Dores prosseguiu o caminho interrompido; e, do cemitério isolado, única testemunha do crime, como que surgiu uma sombra difusa, que pairou sobre os campos medonha.
O pastor guiava as cabras através das fazendas, pela beira do rio, quando uma coisa debruçada, presa nos galhos, balouçando ao solavanquear ritmado das águas, lhe feriu a' atenção.
Era um corpo, um corpo humano.
Aproximou-se, receoso, e ao ver a tremenda brecha que tinha no alto da cabeça, fugiu esbaforido, ululando, esquecendo o rebanho à mercê do instinto.
O cadáver de José Pires abordara a margem. A Polícia iniciaria as suas investigações. O sol erguia-se, atrás do cemitério, e os ciprestes recortavam-se na luz, como uma mancha negra e terrífica…
O caixão desceu à cova e pazadas de terra caíram sobre ele.
A viúva e os pequenitos, de preto, davam largas à sua dor, chorando…
De pé, respeitoso, João das Dores seguia a cerimónia, quem sabe se indiferente, quem sabe se arrependido…
Os portões fecharam-se.
Ao atingir a macadame, João das Dores virou a cabeça. Lá ficava para sempre o seu inimigo, que o gume acerado da sua enxada derrubara.
E estremeceu, porque a sombra dos ciprestes se erguia, aterradora, como bradando num grito sepulcral:
— Vingança?
E o rumorejar das águas, ao lado, como que repetia, num eco:
— Vingança? João das Dores tapou os ouvidos, e desatou a correr, loucamente, sem nexo…
Bateu com o punho mesa, com força.
— Mais vinho!
E vergava a cabeça pesadamente.
O taberneiro enxugou as mãos papudas a um rodilho todo sujo e, apoiando os cotovelos no balcão, disse em voz, triste:
— Não, Sr. João. Não lhe dou mais. Já bebeu demasiado.
E… João das Dores levantou-se, cambaleante, e fitou a porta, para sair.
Gelou-se-lhe o sangue nas veias, o olhar esbugalhou-se-lhe, paralisado.
A maçaneta crescia, crescia mais, nítida, ganhando formas, e horrorizado viu nela a cara rechonchuda de José Pires, que o fitava sem ódio, trocista…
A noite estava chuvosa e fria. Os trovões, contínuos, rasgavam a escuridão, e as árvores surgiam fantasmagóricas.
Ensopado até aos ossos, João das Dores aproximava-se da ponte, e o rio, caudaloso pelas cheias, lançava na noite o seu ruído murmurante como uma nota plangente arrancada às cordas de uma guitarra. As pernas cruzavam-se-lhe bamboleantes, fracas. O corpo gingava-lhe no gabão, como um boneco sem alma. O rosto encharcado contraía-se à luz dos relâmpagos numa máscara de pavor. O cabelo desgrenhado, em bica, dava-lhe um aspecto sobrenatural.
Apoiou-se ao corrimão, a descansar.
A respiração custava-lhe, os membros fatigados laxavam-se. Há um mês que acabara ali, com o José Pires. Um mês de remorsos e visões. A cada passo parecia-lhe ver o rosto do morto, que o mirava, esquisitamente, gozando a sua agonia. A cada canto, uma voz tétrica, cavernosa, lhe gritava aos ouvidos:
— Assassino! … Vingança!
Estava assim, aniquilado, quando um som ameno chegou até ele, trazido pelo vento.
— Ó João das Dores!
E, sob os ciprestes, viu uma sombra irreal, enorme, que ia medrando, criando nitidez e se aproximou depois uns braços alongados, imensos e uns dedos afilados, espalmados, vergando-se na sua direcção, e um rosto descarnado ria, mostrando os dentes quadrados, amarelos, num gargalhar fúnebre:
— Assassino!
A palavra soou-lhe como o choque de uma chibatada no rosto, firme e cortante.
Um grito de terror sufocou-lhe a garganta.
A- sombra pairou sobre si e principiou a descer.
Os olhos saltavam-lhe das órbitas. Abriu as mãos diante do peito e pode balbuciar:
— Não! Não!
Encostou-se para trás.
Um trovão ribombou, abalando a terra.
A sombra pairou um momento sobre o cemitério inerte e desapareceu, depois, por trás, dos ciprestes.
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