Efemérides 17 de Outubro
John Trench (1920 - 2003)
John Gordon Chenevix Trench nasce em Newick, Sussex. Inglaterra. Interessado por arqueologia, publica 4 romances policiários protagonizados por Martin Cotterell, um detective arqueólogo: Docken Dead (1953), Dishonoured Bones (1954), What Rough Beast (1957) e Beyond The Atlas (1963)
TEMA — CRÓNICAS DE REPÓRTER X — O VÍCIO
O português, em geral, até há poucos anos, só usava uma gazua para penetrar nos paraísos artificiais: o álcool. Sabia-se vagamente que Fulano e Beltrano, após uns anos ou uns meses de Paris tinha adquirido vícios que deviam levá-los á morte — e os outros, os de vinho, tinham sempre para aqueles um comentário azedo:
—Imbecis! O único vício que é digno de um homem é o do Porto ou o do Verde de Amarante!
Mas desses vícios que iam buscar a Paris não havia em Portugal uma noção nítida. Falava-se do láudano de Edgar Poe; do éter de certa actriz romântica — e das picadelas de morfina a que certos doentes se tinham habituado para sempre. O resto… O ópio? Uma fantasia chinesa… A coca ? Um capricho das mundanas ou de perversas marquesas, depois da meia-noite, nos subterrâneos elegantes da Place Pigalle.
Mas um dia abre-se em Lisboa o primeiro cabaret a sério o Palace, das Portas de Santo Antão. Coincide esse club com a estada em Portugal de uma multidão misteriosa e cosmopolita — gente disparada pela guerra e que da guerra vivia. Havia ainda os artistas da primeira companhia de bailados russos que esteve entre nós a doirar, a civilizar, essa multidão. E como o Satanás das mágicas, surgia nas salas do Palace — a Charlotte, que ainda não era Dista, que ainda não tinha sobriquet.
Ela bem sabia que Portugal estava ainda livre desse pesadelo que se adensa agora no horizonte e que é a cocaína. Calculou o negócio como se viesse montar em Lisboa um atelier de modista. Muniu-se da droga na máxima dose e infiltrou-se no Palace com a suavidade de uma gota de água.
Devo confessar que ela começou com sabia prudência o seu negócio diabólico. Propagandeou o vício da cocaína sem falar de cocaína. Rondava as pobres mundanas, neófitas do cabaret, estonteadas pelas músicas yanquees e por tantas luzes; e distraidamente, distribuía umas pastilhas que as ingénuas julgavam ser de hortelã-pimenta — idênticas às do merceeiro lá da rua… Mas essas pastilhas levavam a semente de excitações novas. As pobres, meio assustadas, meio curiosas, queriam saber o que era… Ela oferecia nova pastilha; e mais outra; e na noite seguinte; e durante toda a semana… Depois, ao vê-las já escravizadas pela tentação, oferecia-lhes cocaína pura — um pó prateado que elas aspiravam… E foi então que começou o negócio…
E o negócio durou anos, sempre a desenvolver-se. Os seus clientes definhavam-se na contínua intoxicação que ela proporcionava, a sorrir e com salamaleques de caixeiro de modas… Caíam como tordos, à sua volta: mas nova freguesia de ambos os sexos e em maior numero, os vinha substituir.
E — detalhe paradoxal: Charlotte, a quem a mocidade portuguesa dos últimos dez anos deve o mais terrível dos vícios — morreu sem nunca ter experimentado os efeitos da cocaína.
TEMA — UM CONTO PARA PONDERAR — O VICIADO
De R. L.Stevens
Outro fracasso, outro roubo num consultório médico que lhe rendera nada mais que alguns xelins. Praguejou baixinho e começou a cruzar a praça., retrocedendo rapidamente quando um cabriolé passou às pressas, as patas do cavalo batendo ruidosamente nas pedras do calçamento. Às vezes desejava que tudo pudesse acabar assim tão facilmente, com o seu corpo esmagado sob as rodas do cabriolé. Talvez então se visse livre da terrível fome que rugia dentro dele, forçando-o a uma vida de. Arrombamentos e roubo.
William Blair era um viciado. Lembrava-se ainda da primeira vez que tomara ópio, atirando para a boca uma pequena pílula de goma castanha e engolindo-a com café. Lembrava-se do tremor crescente que avançou aos poucos, até tomar conta de todo o corpo. E lembrava-se do enjoo mortal do estômago, a língua grossa é a horrível dor de cabeça que se seguiram à primeira experiência.
Deveria ter encerrado aí a prática diabólica, mas não o fizera. Ao fim de três dias recorrera uma vez mais à droga, e depois disso o seu corpo parecia exigi-la com frequência cada vez maior. Era desesperada a busca de ópio que o levava todas as noites ao consultório de famosos médicos. Arrombara dez na quinzena anterior, mas somente dois dos consultórios forneceram quantidade de ópio suficiente para aplacar sua terrível fome.
Foi portanto num estado vizinho do desespero que Blair entrou na ruazinha quieta.
Passando a rua, chegou a um quarteirão de casas antigas e elegantes. Embora muitas começassem a mostrar os inconfundíveis sinais da idade, a segunda casa a contar da esquina ostentava ainda um ar de riqueza e conforto. Estava totalmente às escuras, com excepção da bandeira da porta, mas o brilho desta era suficiente para que se decifrasse o nome gravado na placa de bronze.
Bastaram-lhe apenas alguns momentos de hábil tentativa com a adaga para arrombar uma das janelas. Entrou. A sala aberta mostrou ser o pequeno consultório-laboratório que procurava.
Não foi preciso mais que uma breve busca para descobrir, por entre o aparato químico, um grande frasco com o rótulo Láudano. Sabia que era uma tintura de ópio, e De Quincey, uma autoridade no assunto, calculara serem vinte e cinco gotas de láudano equivalentes a um grama de ópio puro. Sim, isto satisfaria sua necessidade.
Já a mão se fechava sobre o frasco, quando uma voz vinda da porta perguntou asperamente:
— Quem está aí? Quem é você?
Blair voltou-se rapidamente para encarar o homem, a adaga pronta na mão.
— Para trás — avisou. — Estou armado!
A figura no umbral da porta levantou a mão para acender a chama do gás, e Blair viu que se tratava de um homem alto, de uns cinquenta anos, bem constituído, de feições suaves e rosto inegavelmente bonito.
— O que deseja aqui, homem? Não há dinheiro aqui!
— Eu preciso — começou sentindo o suor acumular-se na fonte — … preciso de ópio.
O bem apessoado médico prendeu a respiração.
— Meu Deus! Londres já chegou a este ponto? Agora viciados em ópio vagueiam peias ruas e arrombam casas de médicos à procura dessa droga diabólica?
— Saia do meu caminho — retrucou Blair — ou eu o matarei.
— Espere! Deixe-me… deixe-me tentar ajudá-lo de algum modo. Deixe-me chamar a polícia. Esse desejo mórbido que o obceca acabará por destruí-lo. Você precisa de ajuda, de tratamento médico. Enquanto falava, avançou vagarosamente, forçando Blair a retroceder até à parede mais afastada.
— Não quero ajuda — soluçava o homem encurralado — Agora é tarde para me ajudar.
O doutor deu mais um passo.
— Nunca é tarde demais! Não percebe o que a droga lhe está a fazer, homem? Não vê como desencadeia tudo que é cruel, doentio e maligno? Sob a influência do ópio, ou de qualquer droga você torna-se outra pessoa. Não é mais dono de sua vontade.
Blair já tinha recuado ao máximo e podia sentir através do casaco a parede firme e gelada. Levantou ameaçadoramente a adaga.
— Chegue um pouco mais perto, e juro que o mato!
O médico hesitou por um momento. Olhou para a clarabóia escura por cima das cabeças deles, onde a chuva batia agora constantemente na vidraça. Falou então:
— A mente do homem é a sua maior dádiva. Corrompê-la, envenená-la com drogas, é odioso e imoral. Espero nunca me achar a ponto de perder o controle de minha vontade por me ter rendido ao lado negro de minha natureza. Você, pobre alma, está indefeso nas garras deste ópio, como aqueles infelizes que o fumam nos antros clandestinos, enroscados sobre os catres infectos e esquecidos do mundo que os rodeia.
— Eu… eu… — começou Blair, mas as palavras perdiam-se-lhe na garganta. O médico estava certo, sabia, mas já não lhe ligava, não distinguia o certo do errado.
— Deixe-me chamar a polícia — insistiu o cirurgião, brandamente.
— Não!
A mão do médico moveu-se, de repente, agarrando uma das garrafas da estante ao lado e arremessando-a para cima, através da clarabóia. Houve um estilhaçar de vidros e uma chuva de bolinhas prateadas desprendeu-se da garrafa. Então uma súbita chama violeta pareceu entranhar toda a clarabóia, ardendo com um ruído sibilante que terminou quase de imediato numa violenta explosão.
Estavam ainda empenhados numa silenciosa luta de vida ou morte quando, momentos mais tarde, um polícia de capacete irrompeu no laboratório.
— O que há, doutor? Vi a chama e ouvi a explosão…
— Ajude-me com este homem — gritou o médico. — Está a tentar roubar ópio!
Em questão de segundos Blair jazia indefeso, os braços imobilizados, mantidos ao longo do corpo pelo corpulento polícia.
Leve-me — murmurou — leve-me e prenda-me. Ajude-me.
Outro guarda chegou ao local, atraído pelo ruído e pela chama.
— Penso que, com tratamento, este homem poderá ser salvo disse. — Foi o vício que o levou a uma vida criminosa.
— Eu não me preocuparia demais por ele, senhor. Quase o matou com esta adaga.
— Mas eu me preocupo por ele, como me preocuparia por qualquer ser humano. Quanto a mim, tinha mais receio que ele destruísse meu laboratório. Tenho estado ocupado com importantes experiências aqui, relacionadas com medicina transcendental, e sinto estar a um passo da descoberta.
— Então vamos deixá-lo só e empurrou Blair em direcção à porta, a meio caminho .da porta, quando se deteve e disse:
— Oh, a propósito, senhor, vou precisar do seu nome para meu relatório. Não tive tempo de ler na placa lá de fora.
— Oh, a propósito, senhor, vou precisar do seu nome para meu relatório. Não tive tempo de ler na placa lá de fora.
— Certamente — replicou o médico, sorrindo.
— O nome é Jekyll. Dr. Henry Jekyll.
— O nome é Jekyll. Dr. Henry Jekyll.
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