Efemérides 14 de Outubro
Gaston Boca (1903 – 2000)
Gaston Bocahut nasce em Sebtis, Oise, França. Engenheiro de formação e profissão, começa a escrever nos tempos livres, e o primeiro romance que escreve L’Ombre Sur Le Jardin é publicado em 1933 numa das melhores colecções de romances policiários franceses: Détective, lançada pela Gallimard. Gaston Boca escreve apenas 4 romances e algumas novelas publicadas sob a forma de folhetim em revistas, mas é considerado um nome de referência na história do romance policiário francês, os seus livros são classificados como “notáveis” e o autor aparece muitas vezes referido a par de mestres nos mistérios de quarto fechado. Além do livro referido, os outros romances de Boca são: Les Usines De L’Effroi (1934), Les Invités De Minuit (1935) e Le Dîner De Mantes (1935), todos protagonizados por Stéphane Triel, um talentoso detective amador. Apesar de traduzido em outras línguas, não se encontra qualquer registo do autor em português e curiosamente em Itália o autor é publicado com Gastone Bocca.
TEMA — AMORES CONTRARIADOS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL — O PRÍNCIPE PERFEITO E ANA DE MENDONÇA
Por M. Constantino
Se, por este ou aquele motivo, muitos dos Reis de Portugal tocam de perto a sensibilidade almeirinense, D. João II está na linha da frente. Segundo rezam as crónicas foi gerado no Paço de Almeirim em 1 de Agosto de 1454, após um encontro, há muito retardado, da Rainha D. Isabel com o Rei seu marido, D. Afonso V, que regressara da caça por onde andara muitos dias. Não é, assim, difícil de assinalar tanta certeza relativamente àquela data célebre.
Aquele que viria a ser conhecido por Príncipe Perfeito e tornar-se-ia no terceiro Rei da Dinastia de Aviz, nasceu no Paço de Alcáçovas de Lisboa a 3 de Maio de 1455.
É difícil explicar como se fez no homem que foi. Órfão de mãe aos 7 anos, com uma infância apoquentada por enfermidades, esteve a cargo de aias carinhosas, sim mas sem mestre ou encarregado da sua educação, só a iniciativa própria e a biblioteca bem provida do Paço, frequentada por homens oriundos de vários pontos da Europa, terão feito de D. João um homem tão precoce no raciocínio e na firmeza de carácter revelando cedo profundo conhecimento das pessoas, da política e das ciências do seu tempo. De feitio reservado e observador, o pequeno Príncipe afirmava-se dia a dia uma mentalidade volvida para os problemas bem reais da existência. Os desportos da época fizeram da criança enfermiça um rapazão sadio, bom caçador, óptimo esgrimista, excelente corredor e dançarino, não desdenhando acompanhar alguns fidalgos em aventuras nocturnas.
Aos quinze anos (1471) casaram-no com D. Leonor, filha do Infante D. Fernando (este nascido em Almeirim em 17 de Novembro de 1433, curiosa coincidência!), futuro duque de Beja e herdeiro de seu Tio-Avô D. Henrique, o Navegador, e uma das maiores, senão a maior, fortuna do Reino. D. Leonor, a noiva, tinha então 12 anos. Há entre eles amizade sincera, conheciam-se e brincaram juntos desde sempre, são parentes, mas não há amor.
Meses depois do casamento acompanhou o pai a África, a primeira grande aventura guerreira, quiçá, o primeiro passo na vida política activa, que iria fazer dele um dos mais completos monarcas europeus
Afonso IV confiava mais no Príncipe D. João que nele próprio. Admirava o seu tacto, a sua prudência, a clara visão dos problemas e rapidez de execução. Tanto assim que, em Évora e a 8 de Abril de 1475, tinha D. João vinte anos, Afonso V divide com ele poderes governamentais, estabelecendo em conselho o regimento que deveria seguir na administração da Justiça, da Fazenda, e na Concessão de mercês, No capítulo destas, Afonso receoso da sua própria liberdade, concede ao Príncipe seu filho o direito de aprovação das que fizesse — era, de facto, um Rei ainda sem coroa.
Aos vinte e um anos, combatera na Batalha do Toro, era um homem de estatura mediana, bem feito, muito branco, cabelos castanhos e barba quase preta, rosto rosado, lábios finos e dentes alvíssimos, dois olhos negros, fundos, luminosos, em que se adivinhava a inquietação enigmática de um pensamento e de uma força de vontade inamovível… É após Toro que conhece Ana de Mendonça, terno perfil, luminoso sorriso de estrela da manhã… que lhe encherá a vida de mel e fel de mel, por obra do amor; de fel por não a poder ter quando quer.
É em Cernache do Bonjardim, um jardim natural a montante das águas do Zêzere que Ana se fixa, no Solar dos seus, já que é filha de Nuno de Mendonça, aposentador-mor de El-Rei D. Afonso. O Príncipe, cada vez mais vinculado às selectas perfeições da mui nobre e viçosa donzela, segue-a e é ali, sob as ramagens confidentes que os namorados compõem em versos de beijos o livro do seu romanesco idílio.
Em 12 de Agosto de 1481 nasce o filho daquela ligação: Jorge, Mestre de Aviz e Santiago. No mesmo Mês e ano, mas a 28, morre D. Afonso V e. D. João sobe ao trono de Portugal, do qual é o segundo de nome: D. João II. D. Leonor está no conhecimento das relações amorosas do seu real esposo com a formosa e grácil Ana de Mendonça. Tenta intervir. Inútil. O amor tem qualidade de fogo: quanto mais oprimido é, tanto é mais violento; as labaredas do seu brasido não queimam menos do que as da fogueira — o fumo da combustão a turvar os raciocínios lógicos e, se o fustigam ventos contrários, quanto mais forte a rajada, mais alto sobe em suas labaredas crepitantes.
A intriga ferve. Ana mantém-se fiel ao seu amor e senhor, afasta-se das intrigas e intrigantes. Não tenta exercer influência no ânimo d’el-Rei, bastava-lhe o encantamento amoroso.
Com consentimento difícil da mãe, D. João entrega à Infanta D. Joana, sua irmã mais velha, internada por vocação num mosteiro de Aveiro a educação de seu filho Jorge, ao qual mais tarde, por morte de seu filho legítimo, D. Afonso, nas margens do Tejo, em Alfange, prepara inutilmente para lhe suceder no trono. A própria Rainha se prontificara receber em sua casal D. Jorge, o filho da favorita, após a morte prematura de D. Joana, até tornar conhecimento da intenção do marido.
Não cabe nesta resenha falar da política de El-Rei D, João II, uma coruja no pensamento, o Rei Falcão; na acção, tão só referimos os seus amores. E, neste aspecto, pode o Rei considerar-se casto: nenhuma outra mulher teve o privilégio de ocupar os seus pensamentos, o amor e favores de D. João. De resto, linda como era, saudável, Ana de Mendonça, jamais olhou para outro homem.
Em escapadas até aos Paços de Santarém ou Almeirim, D. João não deixa de prolongar as visitas até Cernache. O Rei deixa de o ser para aparecer o homem, o homem que, como o raramente acontece, encontrou o ser que o amou e que ama Cernache do Bonjardim: ela fê-lo feliz, puro, perfeito, livre até nas responsabilidades que tinha sobre os ombros, ela conseguiu preencher pelo espaço de uma curta vida aquela parte dele que sempre sentira pertencer a alguém, com quem sonhara e encontrara… impossível afastá-la da memória, como impossível afastar-se do prazer, da sensualidade, do sentimento precioso e premente da posse e da energia, da verdade última que se evola do contacto com a pele, com os lábios exigentes, vorazes, entre cortado no ritmo gradual das carícias. Ambos compreendem a indispensabilidade do amor e, se fortalecido pelo espírito, pela troca de dois universos que, por muito diferentes que sejam acabam por se unir a interpenetrar-se nos mais íntimos pensamentos, então o amor não é apenas criação dos nossos desejos, mas uma realidade mágica tornada palpável, viva, e que nos transforma em seres imensamente perfeitos e felizes.
Em fins do verão de 1494 D. João sente os primeiros sintomas da doença. Em 29 de Setembro de 1495 sente-se mal, muito mal.
Apronta o seu testamento legando o Trono a D. Manuel, seu primo e cunhado. Recomenda-se o “muito amado filho”, D. Jorge a quem lega cidades, vilas e rendas. Não esquece Ana: lega-lhe uma grossa mesada “para suportar a sua honra ou para seu casamento”, facilitando-lhe a união com outro homem. Mas D. Ana de Mendonça, morto o seu senhor em 25 de Novembro de 1495 — tinha apenas 40 anos de idade, menos de dúzia e meia de anos de felicidade no colo vibrante deAnia e catorze anos de reinado efectivo — ama-o ainda e como sempre: foge do Mundo enclausurando-se voluntariamente no mosteiro das Donas de Santos
Para os entendidos em coisas de sentimentos, Ana e João, foram seres integrais.
TEMA — CONTO POLICIÁRIO — A PRÁTICA DE UM CRIME PERFEITO
De Mary Barrett
Metodicamente, com um sentimento de prazer antecipado enfiou a chave na fechadura da porta de entrada.
— É tão bom — pensou saber que agora cada coisa irá ficar exactamente no lugar em que deve. A ordem era uma coisa muito importante para ela. Fazia a vida ficar tão fácil, tão confortável e tão previsível, conforme tentara explicar à mãe durante anos. Mas todas as suas súplicas eram em vão. A desorganizada mãe passava os dias alegremente a deixar coisas espalhadas por onde quer que caíssem. Bem, agora que a mãe morrera, tudo iria ser diferente.
Abriu a porta e contemplou com olhar aprovador a sala de estar, limpa e irrepreensível. Cada peça de mobiliário estava no seu lugar, cada superfície estava polida e as cortinas, puxadas até o lugar exacto para que o sol não desbotasse o estofos. Sim, tudo estava imaculado. Tudo estava impecável.
Os funerais, naquela tarde, haviam sido um sucesso, pensou. Aquele agente funerário tão gentil havia organizado a cerimónia de maneira muito elegante.
Passou pela sala de jantar, entrando na cozinha, percorrendo o caminho que agora poderia estabelecer como permanente. Poderia agora organizar seus horários. Com. A sua mãe excluída da casa, seria muito mais fácil manter tudo em ordem.
Fora muito difícil, principalmente perto do fim. A velha tornara-se muito esquecida, e as coisas eram encontradas, muitas vezes, nos lugares mais impróprios. Ela, uma até encontrara o saleiro de prata de lei dentro do frigorífico! Confrontou a mãe com o facto, mas as únicas respostas que obteve, foram um risinho abafado e a observação:
— É, esta velha cabeça às vezes faz das suas, não é?
Sorriu ao pensar no saleiro de prata. Certamente, arranjara um jeito de ajustar contas com a mãe por aquele descuido! Pensando na perfeição do plano que executara com tanto sucesso, ela cantarolava baixinho, enquanto andava pela cozinha.
Tirou do gancho próprio um avental, atou-o à cintura, e pôs no fogão uma panela de água para ferver… para o ovo que comeria na ceia.
Esse era um outro problema. Sacudiu a cabeça ao ao lembrar. Nunca conseguira fazer a mãe compreender quão necessário era comer as mesmas coisas todos os dias, para garantir uma dieta bem equilibrada.
— Mas, querida — a mãe protestava em resposta às críticas constantes — eu gosto de um pouco de variedade na vida.
A mãe jamais entenderia que variedade era exactamente o que o mundo tinha demais.
Tirou uma faca do estojo e cortou um tomate em rodelas. Sorriu ao lembrar-se da surpresa da mãe quando se mostrara tão cordata a respeito do curry que ambas comeram na sua última refeição juntas.
— Que bom, querida, Há tanto tempo que não és uma companhia assim agradável — observara a mãe.
Naquela noite, demonstrara muita consideração para com a mãe, esforçando-se por fazer pequenas coisas que sabia que lhe agradariam. Não queria que a mãe notasse a única coisa fora do comum que teria de fazer para o plano dar certo. Colocou cuidadosamente o saleiro de prata ao lado do prato da mãe, um gesto excepcional. Sabia muito bem que a mãe acrescentaria tempero, como aliás fazia com qualquer prato, mesmo se o curry já estivesse exagerado demais para permitir uma boa digestão.
E assim, à noite, a mãe morreu. Era velha. Já estava enfraquecida há algum tempo. Não havia necessidade aparente de autópsia. Decerto ninguém afagara a mais leve ideia de examinar o conteúdo do saleiro de prata. Sim, tudo fora às mil maravilhas, exactamente como planeara.
O ovo agora já estava cozido. Com cuidado, ela colocou-o no meio do prato. Arrumou as rodelas de tomate caprichosamente ao redor do ovo e pôs o prato cuidadosamente sobre a toalha individual, na mesa da cozinha. Sentou-se, contente e feliz, para comer sua refeição da noite.
Era assim que seria sempre de agora em diante. Comeu a última garfada, levou o prato à pia e lavou-o esmeradamente sob a torneira de água fria. Abaixou-se para pegar a panela sob a pia… e sentiu no estômago uma dor repentina e estonteante. Abalada e perplexa, deixou-se cair de novo na cadeira ao lado da mesa.
A estupefacção à vista do saleiro de prata era quase tão acabrunhante quanto a dor que sentiu. Lá estava ele, exactamente onde devia estar, bem no centro da mesa. Ela tinha-o usado para salgar o ovo.
Mesmo no meio da dor, percebia estar levemente irritada. Tinha pensado, naturalmente, em esvaziar o saleiro; mas estes últimos dias haviam sido tão desorganizados. Na verdade, tivera intenção de nunca mais utilizar o saleiro de prata, caso não estivesse mais em boas condições sanitárias. Em seu lugar, estivera a usar um frasco de vidro lapidado; mas, de manhã, antes de sair de casa, repusera o frasco cuidadosamente no armário das porcelanas, onde era eu lugar.
Pensou vagamente que esse último aborrecimento devia de algum modo ser culpa de sua mãe. Evidentemente, como, aliás, haviam sido todas as irritações passadas de sua vida. Ela não conseguia formular a ideia exactamente, entretanto… a dor fazia os seus pensamentos correrem juntos, ficarem embaralhados, confusos.
E então, pouco antes de lhe sobrevir a inconsciência e de cair em desalinho no chão, ela se pôs a imaginar o que haveria de pensar aquele simpático agente funerário? Era, evidentemente, incorrecto e muito deselegante duas mortes na mesma casa, em tão pouco tempo.
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