3 de outubro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 277

Efemérides 3 de Outubro
Edgar Box (1925 - 2012)
Eugene Luther Gore Vidal nasce em West Point, EUA. Conhecido activista político norte-americano começa a escrever aos 19 anos de idade. Publica obras de diferentes géneros: história, política, ficção científica, argumentos para televisão e cinema, crítica literária etc. Utiliza o pseudónimo Edgar Box para escrever romances de mistério / detective protagonizados pelo Peter Sargeant. O autor recebe em 1955 o Edgar Award para Best TV Series, atribuído pelos Mystery Writers of America a Smoke (1954).


TEMA — ESTUDOS DE PSICOLOGIA CRIMINAL — O ORGULHO DO PRESO
Penitenciária é uma coisa e cadeia pública é outra. A cadeia é um depósito de presos de todas as categorias e espécies. Entra e sai gente, e nos seus cubículos a sujeira e o vício tomam pro-porções muita vez indescritíveis. E ai, se não aparecem já à luz das fogueiras os carcereiros armados de chicote e seguidos de cães bravios, os escorpiões, os ratos, as baratas e os percevejos constituem uma fauna terrível que atormenta os que cá fora tiveram na vida um pouco de conforto e de amor a si mesmos.
Todavia a cadeia pintada por Cyro Dos Anjos em O Amanuense Belmiro, é menos sórdida do que a das páginas naturalistas de Alberto Leal em Cais de Santos. Vale a pena pedir licença ao carcereiro e conviver um pouco no meio dos reclusos para surpreender os seus costumes e o seu “argot”. Esse amanuense Belmiro é um espírito amável de Belo Horizonte preocupado em passar para suas Memórias todos os “faits divers” de sua modesta vida de amanuense. Tem um amigo de nome Redelvim, cuja cabeça se enche de caraminholas revolucionárias embora seja praticamente inofensivo. Estoirando um movimento comunista em alguns pontos do país, Redelvim tem que ajustar contas com a polícia, e o amanuense Belmiro vai interceder por ele, certo da sua influência pessoal. Mas a polícia está de maus bofes e o trancafia1 no xadrez.
Ora, seu manguarão2, deixemos de luxinhos. Você vai é mesmo para as grades…

Demos ao Belmiro ao menos o prazer de ser o narrador de sua triste história:
Saído o investigador, acolheram-me festivamente. Um me dirigiu a palavra:
— Não ache ruim, não, meu velho. A “cana” é isso, não tem sopa.
— Está com “pinta” de “lunfa” da “penosa”, disse, rindo-se para o outro.
Achei-os divertidos, embora o momento não fosse de graças. Que seria “lunfa de penosa”? Propus-me, por isso, ir ganhando a confiança dos dois presos.
Na gíria policial “pinta” é aparência, jeito, e “lunfa” é ladrão. A combinação — lunfa da penosa — era, porém, estranha. Percebi que estava no meio de larápios e fiquei extremamente curioso de ouvir suas conversações.

— Qual nada! — falei. Bem que tinha vontade de fazer um “servicinho” de vez em quando, mas não dou para isso.
— Pois olhe, — respondeu o baixo, gordo, de cicatriz na face, indicando-me o companheiro magro e alto — Este é o Manequinho, mestre punguista3. “Mancou” agora. Ia para a Baía mas quis ver a morena.
— Mais amor e menos confiança, — disse o magro, fingindo zangar-se.
— Maneou, mesmo, prosseguiu. A “sodade” apertou, veio ver a negra e foi “encanado”. Namora, “pessoar”!
Depois se apresentou:
— Não ouviu falar de mim, não? Os jornais estão cheios. (Disse isto com orgulho profissional) Fui preso por causa dele. Fomos juntos à casa da pequena, os “tiras” estavam “acampanando” a “grinfa”. Mas isso é doce de leite. Já fui encanado mais de cinquenta vezes. Sou punguista. Banco o “vigário” só quando não encontro “otários” para “punga”. Não “afano” a carteira; tiro só a “grana” e deixo o “couro” para o “ota'” não dar o grito. Já corri os estados todos, menos Goiaz, Mato Grosso e Amazonas.
1 – Trancafia (Bras.):  preso;
2 – Manguarão (Bras.): homem alto e magro;
3 – Punguista (Bras.): Ladrão de carteiras.


  
TEMA — CONTO POLICIÁRIO — DEFESA ENGENHOSA
O presente conto foi publicado no dia 24 de Abril de 1877 num semanário britânico “The Leisure Hour” sem qualquer indicação de autor e assim se mantém no presente.
M. Constantino

O advogado Vaughan apreciava e muito uma boa conversa com qualquer pessoa comunicativa que o acaso pusesse ao seu dispor. Em pouco tempo ficou a saber que o seu companheiro também se destinava ao Tribunal em Chelmsford, cujos trabalhos deveriam ser inaugurados no dia seguinte
— Na qualidade de jurado, provavelmente? — perguntou Vaughan.
— Não, senhor, não vou como jurado — disse o outro.
— Ah, testemunha é o que deveria ter dito.
— Nem como testemunha tão pouco… Oxalá fosse algo tão agradável como isso.
— Compreendo agora: o senhor vai actuar como promotor num caso que confrange os seus sentimentos. Porem tais coisas acontecem e o remédio é resignarmo-nos com elas.
— Continua enganado nas suas conjecturas. Vou desembolsar certa quantia de dinheiro por um parente processado no Tribunal
— Ah, então é isso! Muito desagradável, sem dúvida, ter de abrir mão de dinheiro assim desta forma — observou o educado causídico.
— Sim, sim, principalmente quando não se dispõe de grandes meios — observou o outro.
— Espero que não se trate de uma quantia considerável.
— Como sabe, a soma é fixada segundo as posses de quem faz o pagamento.
— Sim, sim, exactamente.
— A quantia é de quinhentas libras o que, para alguém de posses tão limitadas quanto as minhas, é bastante pesado.
— Oh, mas acredito que o senhor seja indemnizado mais tarde.
— Isso é muito problemático. Depende do meu parente ser ou não bem sucedido nos negócios. É estalajadeiro.
— Bem, o caso é realmente difícil, — observou Vaughan com ar muito sério.
— É a opinião de todos aqueles que conhecem a história em detalhe.
— Ah, sim? Existem circunstâncias especiais neste caso?
— Existem, não há dúvida — replicou o outro com algo entre um suspiro e um gemido.
— Trata-se de um segredo? — inquiriu Mr. Vaughan, com a curiosidade francamente aguçada.
— Contar-lhe-ei a história se não a achar demasiado cansativa.
— Tenho o máximo interesse em ouvi-la.
— Pois saiba que há cerca de seis semanas um respeitável negociante de cereais em Londres, a caminho de Chelmsford, encontrou numa diligência, duas pessoas completamente estranhas. Tais pessoas dentro em pouco entabularam conversa com ele e tendo descoberto o motivo da visita do negociante a Chelmsford afirmaram para lá se dirigir com o mesmo intuito, isto é, tratar da compra de certos cereais. Após mais alguns instantes de palestra foi sugerido por um dos estranhos que seria melhor para os três se chegassem a um entendimento sobre o montante da compra a fazer, porque se se apresentassem no mercado sem uma combinação prévia, tratando-se de um lugar pequeno como Chelmsford, isso resultaria apenas na elevação dos preços; mas se operassem com cuidado, obedecendo a um acordo que servisse a todos, esse perigo seria evitado.
O segundo estranho fingiu aprovar tal sugestão, propondo ainda, para mostrar que nenhum teria vantagem sobre os outros, que todos os três depositassem o dinheiro nas mãos do respeitável proprietário da principal estalagem, tomando o cuidado de fazê-lo na presença de testemunhas, e que instruções detalhadas fossem dadas ao estalajadeiro para que não entregasse parte da importância a nenhum deles em particular, até os três voltarem juntos para reclamar o dinheiro. O primeiro estranho propôs então que se o estalajadeiro violasse as instruções recebidas, fosse responsabilizado pelo seu acto.
O mercador londrino conhecendo o dono da estalagem como um homem de indiscutível respeitabilidade — O estalajadeiro em questão é meu parente — deu logo o seu consentimento à proposta e cada um dos três colocou na mão do senhorio, nas condições combinadas, duzentas e cinquenta libras, perfazendo um total de setecentas e cinquenta.
— Ora, o senhor despertou o meu interesse com a sua singular história — disse Vaughan. — E qual foi o resultado?
— Foi o seguinte: mal os três tinham saído da estalagem, quando um dos dois estranhos — aquele que se apresentara ao senhorio e com ele fizera todos os arranjos — voltou e disse que, pensando melhor, haviam resolvido fazer as compras o mais cedo possível e em consequência disso os outros dois tinham-lhe pedido que voltasse para buscar o dinheiro.
— E o estalajadeiro seu parente entregou a soma toda? — riu Vaughan.
— Sim, entregou — infelizmente para ele e para mim — replicou o outro.
— E depois? — quis saber o instruído cavalheiro sempre interessado.
— Ora, o mercador e o outro estranho voltaram cerca de uma hora mais tarde e exigiram cada um a sua parte, duzentas e cinquenta libras por cabeça.
— E o estalajadeiro, é claro, declarou ter entregado a soma toda ao primeiro estranho?
— Sim, foi o que fez. E como resultado, segundo suponho, o segundo estranho e o mercador processaram o estalajadeiro?
— Exactamente. E uma vez que toda defesa será inútil, uma vez que o estalajadeiro entregou o dinheiro a um deles, quando as instruções recebidas o proibiam de fazê-lo até que os três estivessem reunidos, meu parente vai permitir que o processo se faça sem defesa. O dinheiro deverá ser pago ao vigarista pois ambos os estranhos, segundo ficou provado eram vigaristas e também ao negociante londrino.
— E o senhor está realmente decidido a pagá-lo?
— Mas claro, não há como fugir a isso.
— Sou advogado e terei muito prazer em defender o pobre estalajadeiro gratuitamente.
O outro desfez-se em agradecimentos pela sua bondade, porém expressou as suas dúvidas de que qualquer esforço no sentido da defesa resultasse em qualquer coisa.
— Veremos — disse o advogado — veremos. Procure-me hoje à noite, acompanhado do seu parente, e combinaremos a defesa para amanhã.
O dia seguinte chegou e o caso foi apresentado no tribunal. O pobre estalajadeiro, agindo de acordo com os conselhos de Vaughan, mas sem perceber que benefício tiraria daquilo, exigiu a defesa do caso. Durante algum tempo tudo decorreu tão favoravelmente para a promotoria e, embora todos os presentes se condoessem do infortunado homem, não se via a possibilidade de um veredicto que não fosse contra ele. Mas o advogado Vaughan, quando a promotoria se silenciou, levantou-se e disse: — Agora, senhores jurados, já foram ouvidas as provas apresentadas. Segundo as testemunhas aqui presentes, o réu recebeu as instruções mais rigorosas da parte dos três para não entregar o dinheiro, nem parte dele, a ninguém em particular, excepção feita quando os três estivessem presentes. Cavalheiros, o meu cliente guarda o dinheiro em seu poder e está pronto a entregá-lo quando as três partes interessadas se apresentarem para exigi-lo. Que a parte agora ausente apareça em companhia dos outros dois e cada um receberá o seu dinheiro. A promotoria pareceu assombrada.
O veredicto, é claro, foi favorável ao réu.
É desnecessário acrescentar que o homem que fugira com o dinheiro nunca apareceu, e que, consequentemente o estalajadeiro nunca teve de desembolsar quantia alguma
Talvez fosse mais justo dividir a perda do honesto negociante de cereais, mas um negociante londrino merece pagar algo pela experiência adquirida.

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