EFEMÉRIDES – Dia 22 de Maio
Conan Doyle (1859 – 1930)
Arthur Ignatius Conan Doyle nasce em Edimburgo, Escócia. Enquanto estuda Medicina em Edimburgo, conhece o médico e professor Joseph Bell, um mestre em lógica, diagnóstico e dedução, características que se podem encontrar em Sherlock Holmes. Ainda como estudante Conan Doyle escreve um conto. The Mystery of Sasassa Valley (1879), na linha de Poe — na altura o escritor favorito de Conan Doyle — publicado no Chamber’s Journal a 6 de Setembro de 1879; nesse mesmo ano escreve o 2º conto, The American Tale. Sem ter concluído o curso é contratado para o Hope, um baleeiro em viagem ao Círculo Polar Árctico, uma aventura que inspira um conto arrepiante The Captain of The Pole Star. Uma vez concluído o curso, Conan Doyle divide o tempo entre a prática clínica e a escrita. Em 1887 é publicado Study In Scarlet, o romance que apresenta Sherlock Holmes e Watson, uma dupla que se rapidamente se torna mundialmente famosa. O romance seguinte Micah Clark (1889) é o preferido do escritor, e apesar de ter sido bem recebido na altura, actualmente parece ter caído no esquecimento. O terceiro romance The Mystery Of Cloomber é editado no mesmo ano. Em 1890 Conan Doyle retoma Sherlock Holmes com a publicação de The Sing Of Four, seguido de um romance histórico The White Company (1891). Depois de uma especialização em oftalmologia, em Viena, o autor regressa a Londres e a ausência de clientes do seu novo consultório faz com que tenha mais tempo para se dedicar à escrita. Um acordo com The Strand Magazine para publicar as histórias de Sherlock Holmes ilustradas por Sidney Paget, inicia uma colaboração que se mantém durante décadas e é fundamental para tornar o autor, o personagem, o desenhador e a revista mundialmente famosos. Em Dezembro de 1893 decide acabar com Sherlock Holmes em The Final Problem.
Doyle começa a interessar-se por espiritismo e depois de uma estadia nos EUA para uma série de palestras, um sucesso em mais de 30 cidades, regressa a Londres e à Strand Magazine com um novo personagem, Brigadier Gerard — um êxito imediato. Em 1896 uma viagem ao Egipto dá-lhe o tema para The Tragedy of Korosko (1998). Escreve uma peça protagonizada por um reaparecido Sherlock Holmes. Em 1991 The Strand Magazine publica The Hound Of The Baskervilles, um novo sucesso mundial, e em 1903 começa The Return Of Sherlock Holmes.
Conan Doyle continua a dedicar-se à escrita de peças de teatro em 1912 cria um novo personagem, Professor Challanger — uma antítese de Sherlock — que surge em The Lost World e protagoniza meia dúzia de livros no total. Em 1914 inicia-se a publicação de The Valley Of Fear também em The Strand Magazine. Doyle aprofunda os seus conhecimentos sobre o ocultismo e durante os anos seguintes viaja por vários continentes. Em 1926 confrontado com a necessidade de ganhar dinheiro, Doyle escreve The Land Of Mist, aventuras psíquicas do Professor Challanger, seguido de The Disintegration Machine (1927) e When The World Screamed (1928). Entretanto os 12 últimos contos de Sherlock são reunidos em The Case Book Of Sherlock Holmes.
Em 1929, apesar de doente viaja para os países nórdicos mas regressa doente e fica acamado. Um dia levanta-se, sem ser visto, e é encontrado caído no jardim com uma mão junto ao coração e um floco de neve na outra.
Arthur Conan Doyle morre na segunda-feira, 7 de Julho de 1930, rodeado pela família, deixando uma vasta obra de contos peças de teatro, ficção policiária, ficção científica, romance histórico, poesia… e o imortal Sherlock Holmes que continuará sempre a inspirar outros criadores.
Ilustração de Sidney Paget |
TEMA — ENIGMA POLICIÁRIO — UM MISTÉRIO PARA HOLMES
De M. Constantino
Sherlock Holmes era um homem de hábitos metódicos e conservadores e um dos seus hábitos, tal como o violino, o famoso Stradivarius que adquirira por 55 xelins e valia no mínimo 500, eram os seus livros predilectos, o velho cachimbo, os recortes classificados, etc.. Habituara-se a raciocinar em voz alta e a minha presença estimulava-o.
Naquele dia, quando cheguei ao 221-B de Baker Street, encontrei-o enterrado na poltrona favorita, com o cachimbo entre os dentes e de sobrancelhas franzidas. Mal se dignou olhar-me.
Entretive-me a observar o que conhecia de sobejo: os mapas geográficos suspensos da parede, a mesa onde Holmes levava a cabo as suas experiências químicas, o estojo do violino encostado a um canto, a caixa dos cachimbos. No ar pairava um cheiro intenso a ácido clorídrico e fumo do tabaco solto em grossas baforadas.
Parecendo dirigir-se mais aos próprios móveis que a mim, atirou: - Então, meu caro Watson, desembuche.
- Não compreendo, Holmes…
- Compreende, compreende - interrompeu-me! Lembra-se como eu, observando o cérebro de uma criança, pude descobrir a psicologia criminosa do pai, tido como um homem honrado e respeitável, no caso em que você e Coller Beeches tanto trabalharam?
- Perfeitamente.
- Tanto mais fácil para mim, observando-o tentar, infantil e inutilmente, esconder esse jornal, tão avaro que ainda não tirou a mão do bolso desde que chegou. O sorriso brejeiro que tem mantido leva-me a deduzir que vem propor-me um caso misterioso. Depressa, depressa, meu amigo! O meu cérebro é uma máquina veloz, que se reduz a pedaços quando não é aplicada no trabalho para o qual foi construída.
Esfregou as mãos satisfeito ao descobrir na minha cara a prova certa da sua dedução. Saboreava de antemão a perspectiva de acrescentar mais um incidente à colecção de episódios fantásticos e que eu, seu biógrafo, deveria publicar.
Vejamos - acedi, obrigado a concordar com a sua lógica.
Desdobrei o “Daily Chronicle” que procurara disfarçar desajeitadamente no bolso e recitei a leitura da notícia intitulada “Fantasmas em Saxe-Coburg?”:
“Ontem, pela segunda vez consecutiva, os fantasmas de Saxe-Coburg visitaram as irmãs Ross, distribuindo ameaças de morte. As raparigas estão deveras alarmadas. Quem caça o fantasma?
Como se sabe, as irmãs são filhas do famoso Prof. R., recentemente falecido, e que tanto deu que falar no domínio do fantástico. Irene e Alice representam um caso invulgar de gémeas e sósias, só identificáveis pela madeixa loiro-brilhante de Irene, em oposição ao cabelo totalmente negro da irmã. Aquela é, aliás, uma pianista em evidência, que, aos 22 anos, nos deliciou, anteontem, com um soberbo concerto, em St. James Hall, e que repetirá amanhã, antes de se dirigir para a Austrália, onde Alice casará com o rico McFarlane, o qual, depois de hesitar tanto, acabou por escolher a escritora, para mágoa da pianista.
Casará esta com o fantasma, ou disputará com a irmã a posse do pleiteado e rico proprietário de carneiros?!!”
Holmes parecia hipnotizado pela notícia. O instinto da caça invadira-o. A brilhante capacidade do seu raciocínio e intuição erguia já um plano. Apertou-me a mão: - Ah! Meu amigo, meu caro Watson, enfim, enfim, temos uma expedição e…
Ouviu-se, vindo de fora, o bater de cascos no empedrado da rua e o ruído de uma carruagem a parar à nossa porta. Holmes ficou suspenso da palavra até que Mrs. Turnes, a governante, introduziu Mr. Lestrade, nervoso, vivaço e furão como sempre, mas um dos nossos mais hábeis polícias da Scotland Yard. Aquele meu amigo e mestre considerava Lestrade desprovido totalmente de inteligência; dotado, contudo, de uma tenacidade de buldogue, que aceitava generosamente.
- Temo que estejamos com algo muito misterioso em Saxe-Coburg - disse o afogueado polícia, sem cerimónia.
- Negócio de fantasmas, não? - perguntou Holmes.
- Como adivinhou?
Apontou, simplesmente, o jornal na minha mão.
A rua com que deparámos, ao voltar a esquina da escondida Saxe-Coburg Square, era preenchida com casas de tijolo de um só andar olhando para pequenos jardins arrelvados, de um só lado, opondo-se, do outro, um alto e intransponível muro. Ao fundo, fechando o beco, a casa que procurávamos.
O polícia que guardava a entrada encaminhou-nos ao Inspector Gregson e este ao local da ocorrência, o quarto da vítima. Esta, caída de bruços, braços em cruz, apresentava na fronte direita um indubitável ferimento produzido por bala, disparada à queima-roupa. A pianista, de cabelos negros e madeixa loira, não daria mais concertos, foi o que pensei. Holmes, de sobrancelhas contraídas sobre os olhos penetrantes, cabeça inclinada para diante, na atitude de grande concentração que lhe era característica, debruçava-se sobre o corpo, captando os mais ligeiros detalhes. Cheirou e, fungando, exclamou: - Tresanda a hena! E sem dar tempo ao invariável “como sabe?!”, foi adiantando: - Não esqueça, meu caro Watson, os meus conhecimentos de química!
Não perdia a oportunidade de se salientar.
Observou melhor o corpo, arrancando-lhe com esforço da mão dextra, extremamente fechada a ponto de quebrar várias das longas e bem tratadas unhas, alguns fios de fazenda escura, que olhou demoradamente, passando-os a Lestrade sem comentários. Olhou de revés, sem lhe tocar, o revólver de grosso calibre junto da outra mão.
Lestrade, como que interpretando o olhar do meu amigo, pegou, com estudada prática, na arma, procurou no bolso um pedaço de papel branco, que introduziu no cano, tirando-o borrado de cinzento embaciado, extraiu depois o invólucro detonado, que examinou atentamente, enunciando, convicto: - Carregamento com pólvora negra!
Holmes acenou, mas já desviara a atenção para a glamorosa rapariga que Gregson trazia pela mão. Olhava-a fixamente e comparava-a ao corpo caído, impressionado pela semelhança.
A moça dava sinais de evidente desespero e balbuciava:
- Oh, não! Oh! O fantasma… uma múmia negra, grande… Oh! Oh!… medo… preferiu suicidar-se, irmã… irmã…
Holmes pousou os dedos longos e finos nos ombros da rapariga. Quando queria, possuía um poder quase hipnótico de acalmar o próximo. Deu confiança à moça. Soube-se, por ela, do inesperado e mais um dos ataques de “algo sobrenatural, horrendo” - dizia. De como atacadas, se refugiaram nos quartos respectivos e se muniram das suas armas; de como ouvira o tiro no quarto da irmã; de que o silêncio a enchera de coragem e se atrevera a ir ao encontro da irmã e a encontrara morta; de como correra para a porta, gritara e aparecera um agente, chamado por uma vizinha. Aliás, tivemos ocasião, mais tarde, de ouvir essa vizinha, o que só confirmara a óptima dedução produzida por Holmes, uma mulherzinha baixa, de fisionomia nervosa, olhos grandes e curiosos, cabelos grisalhos que caíam em bordões sobre as têmporas, numa eterna cadeira de rodas, inseparável do gatorro preto. Passava os dias a observar por detrás das cortinas o namoro das irmãs - ainda não estava certa da preferida - e afirmava, com autoridade, que ninguém entrara ou saíra de casa da vítima. Reclamava, com orgulho, o direito de ter telefonado à polícia, ao ouvir os gritos, pois adivinhara que algo de grave acontecera.
Lestrade afastou-se e trouxe do quarto da rapariga o revólver que lhe pertencia. Repetiu neste a técnica que utilizara na outra arma; recolheu o papel manchado de negro do cano e teve a mesma exclamação ao extrair, uma após outra, as duas cápsulas detonadas.
Dispensada a rapariga, Lestrade e Gregson dividiram a tarefa de rebuscar em todos os compartimentos qualquer prenúncio de porta secreta ou saída.
Fizeram-no com mestria, reconheça-se; sem êxito, porém.
Percebi então, pela expressão de Holmes, que, pelos pequenos indícios que escapariam a outra pessoa, ele soubera já formar uma hipótese ou tinha a solução. Embora pudesse parecer impossível a qualquer observador casual, havia nos seus olhos brilhantes e nos gestos vivos uma ansiedade, uma tensão contida que me fazia compreender que ele tinha a chave do mistério. Como de costume, aguardei, sem perturbar, com inúteis interrupções, aquele cérebro em contínua efervescência. Em tempo oportuno, eu seria inteirado de tudo. E esse momento não se fez esperar. Logo que Lestrade e o outro Inspector se juntaram, Holmes observou, como que casualmente: - É um grave erro alimentar ideias preconcebidas, pois, insensivelmente, a pessoa procura torcer os factos, a fim de adaptá-los às próprias teorias. Foi o que os meus amigos fizeram! Tudo trocado. Dupla troca, para ser mais preciso. Mas não creio que existam dificuldades insuperáveis. Ora vejam…
Holmes continuou: - Como por encanto, tudo aquilo que me parecera evidente se complicou; depois, todo o emaranhado dos factos pareceu esclarecer-se diante dos meus olhos. Admirei-me, como sempre, de que tal explicação não me tivesse ocorrido.
- Elementar, meu caro Watson! - terminou, batendo-me nas costas.
Estupefactos, ficámos sem fala! Logo, não resistimos: aplaudimos com intensidade, como se estivéssemos no teatro. Uma onda de sangue avivou as faces pálidas de Holmes, que nos saudou como um actor, recebendo aplausos da plateia. Deixara de ser uma simples máquina de raciocinar para mostrar que era sensível à admiração. Aquela natureza fria, que não se preocupava com a glória pública, ficara realmente comovido com a homenagem dos amigos.
- Obrigado! - disse, voltando-se para disfarçar a emoção.
Um momento depois, voltou a ser o mesmo calculista frio e prático que sempre conheci. Encaminhou-se para a saída.
Até à vista, Lestrade, e não se esqueça de que, quando estiver às voltas com casos delicados, eu estarei sempre pronto a ajudá-lo.
Solução
Ninguém teve dúvidas em que não se tratava de um suicídio. A arma estava na mão esquerda e a bala fora disparada na fronte direita. O que não vimos logo foi que a arma caída junto da vítima não fora a que disparara, pois a utilização de pólvora negra (utilizada ainda à época, algumas vezes) só produz vestígios no cano, de cor cinzenta, após 24/36 horas do disparo. A arma que pertencia à irmã da morta, essa sim, apresentando vestígios de cor negra no cano, prova ter sido disparada há pouco tempo. (Veja-se “Elementos de Técnica Policial”, de Tomé Vieira, a págs. 70-71).
Tudo apontava, pois, para não suicídio, mas sim assassínio, e a irmã viva candidata a esse lugar. De resto, não havendo qualquer outro modo de saída da casa, e testemunhando a vizinha que ninguém entrara ou saíra, a conclusão é óbvia.
Um golpe de teatro, porém.
Quem morreu? Quem matou?
Ao contrário do que pensei, ao ver a madeixa de cabelo loiro brilhante, a morta não era Irene, a pianista, pois, conforme Holmes explicou, uma pianista não usa unhas longas e bem tratadas, não pode usar (e esta ainda dois dias antes havia dado um recital…) e a madeixa que ostentava foi propositadamente feita para confundir; daí o cheiro intenso a hena.
Irene matou, pois, Alice, pintou-lhe a madeixa, escurecendo em si o cabelo. A disputa pelo proprietário dos carneiros valeu um crime.
TEMA — PASTICHE — O ÚLTIMO CONTO DE SHERLOCK HOLMES
De A. Raposo
Tenho sido, durante todos estes anos, o melhor amigo de Sherlock Holmes. Em quase todas as suas aventuras e investigações estive presente. Agora, que já se passaram dois anos sobre a sua morte voltei a mexer no baú dos velhos apontamentos que, durante a sua vida, fui coleccionando. Grandes investigações em breves apontamentos que, depois, fui desenvolvendo e reconstituindo e que deram tantas e tão célebres aventuras que fizeram êxito. Uma aventura, porém, nunca publiquei. Por um lado, porque achei que não tinha qualidade, ou melhor, não tinha a qualidade das anteriores. Além do mais, Holmes recomendou-me, sob juramento, que nunca a publicaria em vida.
Cumpri a promessa. Agora, encontro-me liberto daquele juramento. Posso, finalmente, juntar ao tão valioso espólio do meu bom amigo o caso mais extravagante que os dois vivemos.
Agora, que o tempo apagou, um pouco, o entusiasmo vivido com Holmes em cima dos acontecimentos, posso, até, rever com maior distância e melhor esclarecimento as qualidades e defeitos do meu sempre saudoso amigo.
Quando convivemos com alguém de tão perto — às vezes até demasiado perto — não conseguimos, senão, observar as qualidades e esquecemos os defeitos porque estes são bem menores que aqueles.
Holmes tinha um grande defeito gostava de me impressionar com as suas brilhantes deduções — algumas, vim a descobrir agora, não passavam de verdadeiros embustes.
Após a sua morte, descobri que Holmes não tocava violino! Quando, no seu espólio, peguei naquele tão adorado instrumento verifiquei que não tinha cordas! Depois, conclui que o que ele fizera toda a vida fora em playback!
Tinha, muito bem escondido, um gramofone no mesmo local donde tirava o violino, accionava-o e fingia tocar, na penumbra, as mais belas melodias.
Meu Deus, como ele me enganou, todos estes anos…
Esta trapaça que me fez, eu relevo, em virtude da grande amizade que nos ligava. Após a sua morte começaram a aparecer, regularmente, cartas, com dívidas de Holmes, que iam do não pagamento da própria renda de casa, como de fornecedores de bebidas, mobiliário e notas de despesa de bares de quase toda a zona de Londres onde habitávamos. O rendimento da publicação da sua obra, ia emagrecendo de tal modo que hoje, a minha própria bolsa já não é suficiente para a chegada constante de notas de dívida, pelo que posso dizer, com propriedade, que terei de me desligar de algumas peças de arte, legado da minha família.
Ontem, mesmo, uma mulher veio bater-me à porta pedindo pensão para os seus sete filhos — todos, segundo ela, obra do meu amigo. A situação está a tornar-se difícil, motivo que me leva a retomar a escrita das suas obras, a fim de conseguir os necessários rendimentos para tapar os autênticos buracos financeiros que o meu amigo me legou e que eu não posso, nem quero, deixar de honrar, em sua memória.
Por outro lado, a minha própria consciência, não pode deixar esquecido, para a posteridade, a verdadeira personalidade de Holmes.
Acredito que muitas devem ter origem na atenção dirigida que dava às suas investigações, o que fazia deixar no esquecimento as pequenas coisas da vida.
Tenho vindo a rever algumas das suas deduções, como, por exemplo, pela lama dos sapatos das vítimas e verifico — confirmado por especialistas — que as indicações de locais precisos sobre a origem do tipo de lamas e, que, por acaso, S. Holmes acertava, podiam ter origem em centenas de lugares que reuniam as mesmas características.
Nesse âmbito, S. Holmes, tivera muita sorte.
A maioria das deduções não passava de verdadeiros palpites! Sherlock Holmes era um jogador nato. Na verdade, algumas das suas tão espectaculares deduções, não passavam da utilização forçada da lógica.
Eu próprio omiti, em muitos casos, pequenas falhas, aqui e ali, tendo como objectivo não retirar o brilho das suas performances. Foi no caso que vou agora relatar, que S. Holmes passou a sua maior vergonha. Direi mesmo, o seu grande fracasso. O Inspector Lestrade, que tantos casos investigou em paralelo com Sherlock Holmes e que ficou para a história como o menos inteligente, era um homem de elevado sentido moral e nunca desmentiu ou achincalhou, mostrando-se um homem de raro aprumo intelectual.
O caso que vos vou relatar e que Holmes tanto me recomendou não contar em vida passou-se numa daquelas noites de cerrado nevoeiro londrino.
Estávamos os três, eu, Holmes e Lestrade, numa interessante cavaqueira, em Baker Street.
Por essa altura, já Holmes começava a demonstrar um pouco da doença que o veio a vitimar: esquizofrenia.
Passou parte da noite a baloiçar-se numa cadeira, coçando a cabeça mas com o boné colocado, o que tornava a situação caricata. Algures por volta da meia-noite bateram à porta duma forma insistente e aparentemente preocupante.
Fui abrir. O homem à porta demonstrou uma grande excitação. Desejava falar com Holmes. Era um assunto da máxima urgência — disse-me. Acompanhou-me até à sala.
Mal entrámos, Holmes saiu do seu torpor e, como uma mola, levantou-se da cadeira e correu para o seu cachimbo, o qual começou a encher, nervosamente.
O visitante aparentava uns 40 anos, vestindo um fato de operário. Boné. Barba rija, bigode. Uns olhos vivos. Uns sapatos velhos e grandes, uma voz rouca. Magro. Mãos sujas, cabelo preto em desalinho. Um rosto fino e pele rosada. Não devia medir mais de 60 polegadas. Parecia ter saído do trabalho, sem se lavar, directamente para Baker Street.
O nosso visitante vinha ofegante. Holmes emergiu da sombra, onde se encontrava, com os olhos brilhantes. Olhou para nós e depois para o visitante.
— Não diga nada — exclamou Holmes — deixe-me pôr a funcionar as minhas enferrujadas meninges. Você tem 40-43 anos. É trabalhador numa serralharia da zona do Tamisa. Veio directamente do trabalho, nota-se pelas suas mãos e unhas que não teve tempo de lavar. Fez o serviço militar na Índia, pela sua postura física, era cavaleiro, presumo. Tinha um posto baixo — sargento, no máximo. Pela cor da sua pele, é originário do Norte de Inglaterra. Diria Shefield Manchester, e os seus progenitores eram de origem latina. O seu problema está relacionado com o desaparecimento de um familiar — talvez a esposa. Lembrou-se de vir aqui e não à polícia porque leu ontem no jornal o nosso endereço sobre a investigação que fizemos no caso do Carbúnculo Azul. Depois desta breve introdução, o meu caro visitante queira sentar-se e iniciar a sua história — parte da qual já conhecemos pela minha pequena história introdutória.
— Bom — disse o visitante. Meus senhores, lamento ter que rectificar alguns aspectos da ilustre dedução do mestre, mas, na verdade não é nada disso que se passa. Primeiro que tudo, eu venho mascarado. A barba é postiça, o cabelo também. Esta farda não tem nada a ver comigo, nem os sapatos. Eu estou aqui incógnita — porque sou mulher e estou a ser perseguida desde a semana passada, presumo, por alguém a mando do meu marido que é muito ciumento. Sou actriz de teatro e é por isso que consigo inclusive imitar a voz masculina. Pelos vistos, consegui até enganar o ilustre Sherlock Holmes.
Naquele momento Holmes sentou-se pesadamente na cadeira e recomeçou a coçar a cabeça como se estivesse em transe. Posteriormente, avisámos a senhora actriz de que por motivos de saúde, Holmes não tinha condições para continuar com o caso. A partir daquela época Holmes começou a ser corroído por aquela malfadada doença que o levou ao que se sabe.
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