PASTICHE/PARÓDIA — O MEU SERÃO COM SHERLOCK HOLMES
De Joel Lima
O meu excelente amigo Joel Lima é, certamente, o português que mais conhece sobre Sherlock Holmes. O pastiche ou paródia, sobre o referido personagem, data de 28 de Novembro de 1891 e é de autor anónimo, que parece saber pouco sobre a figura que retrata, já que Conan Doyle apenas havia publicado Um Estudo em Vermelho e Um Escândalo na Boémia. A paródia em causa foi publicada no óptimo tributo de Joel Lima, Vidas Paralelas de Sherlock Holmes (a ler e reler), editado por Livros do Brasil, e que transcrevemos com a devida vénia.
M. Constantino
Sou uma daquelas pessoas que se divertem a fazer tudo melhor do que os outros. Daí o meu serão com Sherlock Holmes.
Sherlock Holmes é o detective privado cujas aventuras estão agora a ser narradas por Mr. Conan Doyle no Strand Magazine. Muito a meu pesar — porque detesto ouvir gabar qualquer pessoa, a não ser eu próprio — a esperteza de Holmes (quando, por exemplo, descobre com um só olhar o que comemos na quinta-feira passada) tem feito as delícias do público e da crítica; por isso, resolvi pregar-lhe uma partida. Apresentei-me a Mr. Conan Doyle e consegui persuadi-lo a convidar-me para sua casa quando Sherlock Holmes fosse visitá-lo. O pobre Mr. Holmes não esquecerá aquele serão tão depressa. Tinha-me decidido a batê-lo com as suas próprias armas e, por conseguinte, quando ele me disse, com afectado alheamento: “Pelo estado do seu corta-charutos, Mr. Anon, deduzo que não gosta de música”, atalhei inocentemente: “Claro, nada mais óbvio”.
Mr. Holmes, que estava enroscado numa poltrona, na sua posição favorita, sobressaltou-se e olhou, com indignação, para o nosso anfitrião que, pelos vistos, lhe servia de cúmplice.
— Como pode saber que Mr. Anon não é amador de música, só por olhar para o seu corta-charutos? — perguntou Mr. Conan Doyle, com mal disfarçado espanto.
— É muito simples — respondeu Mr. Holmes, fitando-me agressivamente.
— A coisa mais simples do mundo, com efeito — concordei.
— Quer dizer que não precisa das minhas explicações — replicou Mr. Holmes, com arrogância.
— Absolutamente nada — garanti-lhe.
Enchi o cachimbo com tabaco fresco para dar ao detective e ao seu biógrafo a oportunidade de trocarem olhares, sem que eu os observasse; depois, apontando para o chapéu alto de Holmes, colocado em cima da mesa, observei com voz suave: — Esteve recentemente na província, não é assim, Mr. Holmes?
O detective trincou o charuto com tanta força que a ponta acesa quase lhe queimou a sobrancelha.
— Viu-me? quis saber, _agressivamente.
— Não — retorqui — mas quando olhei para o seu chapéu, apercebi-me de que esteve fora da cidade.
— Ah, bom! — exclamou Mr. Holmes, em tom de triunfo. — Foi só uma suposição sua. A verdade é que…
— Não levou o chapéu consigo, quando foi à província —concluí eu.
— Exactamente— disse ele, com um sorriso irónico.~
— Mas como… — começou Mr. Conan Doyle.
— Ora — atalhei, friamente — talvez isso pareça extraordinário a pessoas, como os meus amigos, que não estão acostumadas a fazer deduções com base em circunstâncias triviais (Holmes arregalou os olhos, furioso), mas posso dizer-lhes que não passa de simples brincadeira para quem conserve os olhos suficientemente abertos. Quando vi que o topo da cartola de Mr. Holmes se apresentava amolgado na parte da frente, compreendi que o seu dono tinha estado recentemente na província.
— E durante quanto tempo? — rosnou Holmes pondo de lado as boas maneiras.
— Pelo menos, durante urna semana — afirmei.
— É verdade— admitiu ele, com um certo desalento.
— O seu chapéu diz-me, também continuei — que veio para aqui num four-wheeler… Não, num hansom (*).
Sherlock Holmes ficou calado, de boca aberta.
— Quer fazer o favor de nos explicar as suas deduções? — pediu o dono da casa.
— Com todo o prazer retorqui. Quando vi a amolgadela no chapéu de Mr. Holmes, percebi que tinha batido contra qualquer superfície dura. Que superfície? Provavelmente o tejadilho de qualquer meio de transporte, contra o qual deve ter chocado quando Mr. Holmes entrou no veículo. Estão sempre a acontecer acidentes desse género. Embora o veículo pudesse ser um four-wheeler, Mr. Sherlock Holmes parece preferir o hansom-cab.
— Como sabe que eu estive na província?
— Já lá chegarei. Como é natural, usa o seu chapéu alto quando se desloca dentro de Londres. Quem usa um chapéu desses, sem o saber adquire o hábito de conservá-lo na cabeça. Deduzi, assim, que recentemente tinha usado durante algum tempo, um chapéu de coco e, por isso, se desabituara da altura suplementar da cartola. Como Mr. Holmes não é pessoa que use um chapéu de coco em Londres, concluí, obviamente, que acaba de passar uma temporada na província, onde os chapéus de coco são a regra e não a excepção.
Mr. Holmes, que perdia, a olhos vistos, o prestígio de que até então gozara aos olhos do dono da casa, tentou mudar de assunto.
— Almocei hoje num restaurante italiano — comentou, dirigindo-se a Mr. Conan Doyle — e a forma como o criado fez a conta, convenceu-me de que o pai, certa vez…
— Por falar nisso— interrompi.— Lembra-se de que, quando saiu do restaurante, esteve prestes a ter uma discussão com um outro cliente?
— Era o senhor? — perguntou Holmes.
— Se admite essa possibilidade — retorqui, com brandura é porque tem uma péssima memória visual.
O detective resmungou qualquer coisa, entre dentes.
— Foi assim que as coisas se passaram, Mr. Doyle — comecei. — A porta do restaurante é giratória; numa das metades está escrito “Puxe” e, na outra, “Empurre”. Mr. Holmes e o outro cliente estavam colocados, cada um de seu lado, mas ambos empurravam. Em consequência, a porta não se abriu até que um deles deixou de empurrar. Olharam um para o outro, com ar furioso, mas não chegaram a insultar-se.
— Assistiu à cena, não é assim, Mr. Anon — quis saber o dono da casa.
— Não — repliquei mas compreendi que as coisas se passaram dessa maneira, quando Mr. Holmes nos disse que tinha almoçado num restaurante italiano. Todos eles têm portas giratórias com os avisos “Puxe” e “Empurre” de cada lado. Dezanove vezes em cada vinte, os seres humanos empurram quando devem puxar e puxam quando devem empurrar. Por outro lado, quando pretendemos sair dum-desses restaurantes, há sempre alguém que quer entrar. Daí, a infalibilidade da cena que descrevi. Para concluir, posso dizer que o simples facto de se cometer um erro tão estúpido, é suficiente para causar mau-humor que, em regra, lançamos sobre o outro interveniente para alijarmos sobre ele a culpa da ocorrência.
— Hum! —-fez Holmes, com ar cada vez mais feroz.— Mr. Doyle, as folhas deste charuto estão a desenrolar-se.
— Sirva-se de outro… — ia a começar o nosso anfitrião, quando o interrompi uma vez mais.
— Deduzo da sua afirmação, Mr. Holmes, que, antes de vir para aqui, foi ao barbeiro.
Desta vez, o detective engoliu em seco.
— E fez encerar o seu bigode —continuei (com efeito, Mr. Holmes, nos últimos tempos havia deixado crescer o bigode).
— Foi o maldito barbeiro que teve essa ideia, antes que eu pudesse impedi-lo — protestou Mr. Holmes.
— Exactamente — retorqui. — No hansom, quando vinha para cá, tentou desfazer com os dedos a obra do seu barbeiro.
— E foi por isso—concluiu Mr. Doyle, cujo rosto se iluminou, de súbito que parte da cera lhe ficou nos dedos e, depois, se agarrou à folha do charuto, obrigando-a a desenrolar-se!
— Precisamente — admiti.— Percebi que Mr. Holmes vinha do barbeiro, quando lhe apertei a mão.
— Boas-noites! — exclamou o detective, pegando no chapéu. (Não era, afinal, tão alto como primeiramente me parecera). — Boas noites! Tenho um encontro marcado com o meu banqueiro, às dez horas e…
— Bem me queria parecer — atalhei eu. Soube-o pelo modo como…
Mas Mr. Holmes já ia longe.
* O four-wheeler (carro de quatro rodas) e o hansom (cabriolé com a boleia à retaguarda) eram os trens de praça mais correntes na Londres vitoriana.