17 de janeiro de 2013

CONTO — JULES RICHET

ASSASSINATO CRONOMETRADO

O plano de Herman Muller para matar o seu rico e velho tio Edgar Blitz estava completo em todos os detalhes. O relógio da Catedral bateu oito horas. Herman enfiou a faca de caça no cinto, abotoou o sobretudo e saiu sorrateiramente do apartamento.
Subiu ao telhado. Era um bloco formado por prédios de apartamentos contíguos, e por isso não teve qualquer dificuldade para chegar ao último edifício. Ali abriu uma porta. Desceu três andares e saiu para a rua. Ninguém o viu: havia muito nevoeiro.
A caminho do centro da cidade, olhou diversas vezes para o relógio de pulso. Eram agora oito e quatro minutos. Às oito e vinte chegaria à loja de Blitz.
Muller sabia que o crime tinha de ser cometido entre oito e vinte e oito e meia, dez minutos vitais, durante os quais não podia haver uma falha, não podia dar um passe em falso. O elemento mais importante de um crime perfeito é o cálculo exacto do tempo, e ele tinha planeado o seu com precisão Matemática. Exactamente às oito e meia Pop Hendrick, o guarda-nocturno, estaria no quinto andar a inspecionar os escritórios. A essa hora, Muller estaria a caminho de casa e o seu tio morto, com uma faca enterrada no pescoço.
Às oito e vinte Muller enfiou a chave no portão; deixara o carro no quarteirão seguinte. Uma luz brilhava no quinto andar. Era sexta-feira e Blitz estaria a assinar as folhas de pagamento. O cofre estaria certamente aberto, com os seus quinze mil dólares para serem distribuídos na manhã seguinte.
E lá foi Muller, sorrateiramente, no silêncio da noite, com um sorriso vitorioso nos lábios finos. Sua fisionomia apresentava traços duros e cruéis. Que grande emoção! Enterrar a faca no pescoço daquele velho rabugento e mal-humorado. Que satisfação iria ter! Via o velho tio a contorcer-se e a gritar, horrendo como um sapo.
O ódio de Muller datava do dia em que e velho Blitz o obrigara a trabalhar como simples operário, “para que começasse do princípio”. Mas havia um testamento e, quando Blitz morresse, toda a fortuna passaria para o sobrinho. Não! Não podia esperar mais! Queria dinheiro à vista, e agora!
A partir do terceiro andar, Muller redobrou os cuidados, procurando as sombras, parando várias vezes. Nada ouviu que denunciasse a presença do guardo. Mesmo porque Pop era míope e meio surdo.
Sem ser visto nem ouvido, Muller chegou ao quinto andar. Ali, colando-se à parede, foi, pé ante pé, até ao escritório do tio. Através do vidro da porta viu a silhueta do velho.
Olhou para o relógio. Eram oito e vinte e quatro. Tinha ainda seis minutos: tempo de sobra. Apoiou a mão enluvada na maçaneta da porta.
Edgar Blitz teve um sobressalto e levantou os olhos da sua mesa de trabalho. A surpresa, porém, transformou-se em raiva.
— Que é isto, Herman? Tu sabes bem que os empregados não podem entrar aqui depois, das seis!
Com a faca oculta nas costas, Muller avançou lentamente para a mesa. Os seus olhos escuros brilhavam cruelmente: um sorriso sinistro entreabria-lhe os lábios.
— Estava a passar… Vi luz na janela e resolvi entrar para pedir-lhe um aumento.
O rosto de Blitz ficou roxo.
— Então o senhor quer um aumento? O maior vagabundo do mundo! Que-ousadia! Eu devia era despedir-te
Muller deu mais um passo em frente. Podia atingi-lo agora. Os seus nervos enrijeceram, estendeu o braço. Pela primeira vez Blitz notou o estranho brilho dos seus olhos.
— Herman! — gritou, procurando levantar-se da cadeira. — Herman, que vais tu fazer?
A voz morreu-lhe na garganta e deixou escapar um gemido. O braço de Muller adiantara-se, enterrando a faca profundamente. Os olhos de Blitz saltaram das órbitas, com uma expressão de intenso pavor. O sangue começou a correr. O corpo contorceu-se horrivelmente. Finalmente, como um saco vazio, rebolou para o chão.
Muller estremeceu, teve um momento de hesitação. Agarrou a faca, embrulhou-a cuidadosamente num lenço e dirigiu-se ao cofre. Havia uma quantidade enorme de notas atadas com elásticos. Encheu os bolsos, lançou um olhar triunfante ao cadáver e apressou-se a sair.
Ao descer as escadas das traseiras, verificou que ainda tinha uns seis minutos. Pop Hendrick não estava por ali, mas às oito e meia completaria a ronda.
Deitou a faca, as luvas e o lenço para o esgoto e dirigiu-se para o carro no meio do nevoeiro.
Vinte minutos mais tarde, Muller estacionava o carro perto da sua casa e recomeçava o percurso pelo telhado. Estava: satisfeito: tudo correra bem. Uma vez no apartamento, guardaria as notas num lugar seguro. Poderia viver com os quinze mil dólares durante um ano, até receber a herança.
Muller meteu a chave na fechadura e entrou. Quando acendeu a luz, o sangue gelou nas suas veias. O seu rosto tornou-se subitamente lívido, apertou os lábios descorados contra os dentes. Um homem alto e forte estava à sua frente; um outro saiu de trás da porta e fechou-a. Mostraram os distintivos.
— Representamos a lei, Muller.
Muller engoliu em seco. Transpirava por todos os poros. Não conseguia articular uma só palavra.
— Onde estava às oito e meia, Muller? — perguntou o polícia.
Muller ficou com um olhar desvairado.
— Eu… Eu estava a dar uma volta.
O enorme detective resmungou.
— Que alibi, hem, Pete?
— Sim, este é o tal! Diga-me, Muller, onde escondeu a faca?
— Faca? Não vos compreendo.
— Agarre-o, Joe!
Duas mãos fortes agarraram Muller, que tentou escapulir-se.
Encontraram o dinheiro nos bolsos. Os detectives não pareciam surpreendidos. Em poucos segundos Muller estava algemado. Olhava para os dois com ar estúpido, sem compreender nada. Apanhado! Como podiam eles ter sabido?
— O que não consigo compreender, — disse Joe — é que um espertalhão como você tenha escolhido esta hora, oito e meia, para assassinar o tio. Não sabia que esta era a hora da visita do guarda do quinto andar? Não sabia que ele havia de ver e telefonar?
Muller recuou, cambaleando. A sua cabeça rodopiava. Oito e meia! Estavam loucos! Tinha acertado o seu relógio pelo da Catedral, naquela mesma noite, e estava sempre na hora. Todas as manhãs, quando ia para o trabalho, às sete e meia, acertava-o pelo enorme relógio da Catedral e nunca chegara atrasado!
Agora mesmo, olhando para a torre, viu que a, relógio marcava nove horas, coincidindo com a hora que acusava o seu próprio relógio!
O detective olhou na direção em que estava olhar Muller. Avançou e olhou para o relógio de Muller e em seguida virou os olhos para o seu próprio relógio. Sorriu.
— Há quanto tempo mora você aqui, Muller?
— Mudei-me na semana passada. Porquê?
— Estude bem e relógio da Catedral e compare-o com o seu, Muller!
Da janela do apartamento, Muller olhou para a torre gótica. Perdia-se no nevoeiro, mas os ponteiros eram perfeitamente visíveis. Cada minuto que passava parecia ganhar — ou seria o relógio de pulso que estava misteriosamente a perder — tempo.
Isso deu-lhe uma sensação da inutilidade de seus esforços, do inevitável da sentença…
Muito longe, ouviu a voz do detective….
— Pena é que não conhecesse o relógio da torre, Muller. Nunca está certo, a não ser quando marca as “meias horas”. O ponteiro dos minutos é tão grande e pesado que perde sempre cinco minutas na subida. Quando a movimento é para baixo, porém, com a gravidade e favor, o ponteiro move-se mais depressa e ganha o tempo perdido. Você acertou o seu relógio hoje às oito em ponto; estava, pois, atrasado de cinco minutos. Foi por isso que Pop Hendrick pode presenciar a morte de seu tio. Assassino!

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