28 de fevereiro de 2016

7º EPISÓDIO (DRAMÁTICO) - A MENINA ARLETE

A menina Arlete era costureira de calças e todos os dias cedo, pela manhã, passava à porta da esquadra do Alto do Pina, para o seu trabalho.
 O cabo Jeremias já lhe conhecia o horário e por essa hora punha-se à porta a olhar o tráfego com um olho no eléctrico que passava e na Arlete que descia a rua.
 Havia sempre um piropo soprado em surdina. Um dos mais vistosos e que a deixava completamente acalorada era “ Ai menina Arlete... Quando é que vamos dar uma voltinha de biciclete?”
Era um piropo anódino. Sem segundas intenções e até incompreensível visto que atendendo às dificuldades económicas o cabo Jeremias não tinha bicicleta, nem, quando era puto, nem trotinete nem triciclo.
Lá na terra ainda estavam no tempo dos burros e das mulas.
Obviamente, não tendo aquele meio de transporte, não poderia convidá-la para tal viagem. Provavelmente, a frase estava construída num sentido metafórico.
Nunca ninguém conseguiu descobrir, nem o autor destas linhas.
O cabo Jeremias passou portanto ao ataque com outra táctica e cada vez que a menina Arlete passava na porta da esquadra entregava-lhe um bilhete com uma frase célebre. Regra geral copiava Shakespeare. Sem grandes resultados.
Como a menina Arlete tinha tirado só a 3ª classe, já quase adulta. O único romance que tinha lido, em fascículos semanais, fora a Toutinegra do Moinho, do grande Emílio de Richebourg, que contava a desgraça de uma menina perdida de seu pai e criada por um lenhador… (uma história de fazer chorar as pedrinhas da calçada).

Um dia ofereceram ao cabo Jeremias uns textos de Fernando Pessoa que alguém encontrara num baú, algures.
Daí que, para demonstrar a sua erudição, um dia a menina Arlete passou e ele atirou-lhe a seguinte verborreia, escrita a letra de forma numa cartolina:
“Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões”.
Arlete tropeçou na calçada e o cabo Jeremias pensou que ela tinha apreendido aquele texto hermético do maior poeta luso. (Vide Livro do desassossego, pag.189)
Essa ideia ficou-lhe sempre a bater na cabeça como se fosse uma pancadinha de chanfalho amigo.

Certo, certo, foi o facto de a menina Arlete nunca mais ter passado pela porta da esquadra.
Seria que ela não gostava de metáforas?


O cabo Jeremias a partir desse dia nunca mais quis ouvir falar de poetas e se acaso  pensou  o zarolho do Camões se lembrasse de passar lá pelo Alto do Pina, arriscava-se a levar uma chanfalhada do cabo Jeremias.
Ai levava, levava!

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