9 de agosto de 2013

RECORDAÇÕES HOLMESIANAS

RECORDAÇÕES HOLMESIANAS (6 - 2ª PARTE)

PASTICHE / PARÓDIA — O INTÉRPRETE GREGO
 
Um conto de Sir Arthur Conan Doyle reescrito por W. S. Baring-Gould, autor de Sherlock Holmes of Baker Street, numa versão de M. Constantino.

 
Após tomarmos chá, numa quarta-feira, 12 de Setembro, a nossa conversação, segundo Watson, desenvolveu-se de um modo vago e irregular, alternando desde tacos de golfe às causas da mudança na obliquidade da circunferência celeste, desembocou finalmente na questão do atavismo e das tendências hereditárias.
— No seu caso — disse Watson a Holmes — é óbvio que a sua capacidade de observação e a faculdade para a dedução se devem à qualidade sistemática do modo como foi educado.
— Até certo ponto...— comentou Holmes, pensativamente. — Mas apesar de tudo, o facto de me ter tornado assim corre-me nas veias.
— E como sabe que é algo de hereditário?
— Porque o meu irmão Mycroft é muito melhor do que eu nesse aspecto.
Estas revelações eram novidade para Watson. Se houvesse um outro homem com poderes tão singulares em Inglaterra, como se justificaria que nem a Polícia nem o público tivessem ouvido falar dele?
— Ah. ele é muito conhecido no seu círculo — disse Holmes.
— Mas onde?
— No  Diogenes Club, por exemplo. Trata-se do clube mais exclusivo de Londres, Watson, e o Mycroft é também um dos homens mais extravagantes.

— Ele está sempre lá, desde um quarto para as cinco às vinte para as oito.
Agora são seis horas, de modo que se quiser dar um passeio neste admirável fim de tarde, terei todo o gosto em apresentar-lhe duas curiosidades.
Cinco minutos depois já estavam na rua, a caminhar em direção a Regent Circus.
— Deve estar a pensar — disse Holmes — por que motivo Mycroft não usa os seus poderes para se tornar num óptimo detetive. Mas ele seria incapaz de uma coisa dessas.
— Mas acabou de dizer…
— Disse que ele me superava em observação e dedução. Se a arte ou habilidade de um detetive consistisse apenas em raciocinar sentado numa cadeira de braços, o meu irmão seria o melhor detective que o mundo já conheceu. Mas não tem nem essa ambição nem a energia para tal. Mycroft nem sequer se dá ao trabalho de verificar as suas soluções, prefere que considerem que possa estar errado em vez de provar que Tem razão. Já fui muitas vezes ter com ele para resolver um problema e recebi sempre uma explicação que, mais tarde, verifiquei estar correcta. Ele seria absolutamente incapaz de revolver as questões de ordem prática, que devem ficar claras antes de um caso poder ser apresentado a um juiz ou a um júri.
— Vejo que ser detetive não é a profissão dele.
— Nem por sombras. Tem uma enorme aptidão para os números e audita certas pastas num departamento do governo. Mycroft está hospedado na Pall Mall e, todas as manhãs, dobra a esquina até White Hall, regressando todas as tardes do mesmo modo. Durante todo o ano não faz outro exercício e não é visto em mais nenhum lugar, excepto no Diogenes Club que fica justamente em frente dos seus aposentos.
Tinham chegado à Pall Mall enquanto conversavam e começaram a descer. Holmes parou diante de uma porta, a pouca distância do Carlton e conduziu Watson até ao vestíbulo. Através dos painéis de vidro, este vislumbrou uma sala ampla e luxuosa, na qual um número considerável de homens estava sentado a ler jornais, cada um no seu próprio canto. Holmes entrou com o médico numa pequena sala que dava para a Pail Mall Street.
— “Sala dos Visitantes” — disse Holmes. — É o único lugar no Diogenes Club onde se pode conversar. Por favor, desculpe-me por momentos.
Breve voltou com um outro indivíduo que Watson viu logo que só poderia ser o seu irmão.
Mycroft Holmes era um homem de maior estatura e mais forte do que Sherlock. O corpo era em tudo volumoso mas o seu rosto, ainda que neutro, tinha preservado qualquer coisa da intensidade expressiva que era tão evidente no irmão. Os olhos de um cinzento-pálido muito particular pareciam sempre reter algo de distante e introspetivo que Watson apenas observara em Sherlock quando este estava na posse de todos os seus poderes intelectuais.
— Tenho muito gosto em conhecê-lo —   disse Mycroft Holmes estendendo uma manápula aberta como se se tratasse de uma barbatana de foca.
— Oiço falar em Sherlock por todo o lado desde que o senhor começou a fazer as crónicas dos seus casos. A propósito, Sherlock, esperava ver-te na semana passada para me consultares acerca do caso de Manor House. Foi o Adams, está mesmo a ver-se…
— Sim, foi o Adams.
— Estava seguro disso desde o princípio. — Sentaram-se os dois junto de uma janela do clube. — Para qualquer pessoa que deseje estudar a humanidade, este é o melhor posto de observação — comentou Mycroft.
— Por exemplo, nestes dois homens que estão a caminhar na nossa direção, vêm para aqui.
— O marcador de bilhar e o outro?
— Precisamente, o que pensas do outro?
— Um velho soldado, estou a ver — disse Sherlock.
— E desmobilizado recentemente — notou o irmão.
— Vejo que esteve em serviço na Índia.
— E como sargento.
— Na Artilharia Real, suponho.
— É viúvo.
— Mas com um filho.
— Dois, no mínimo, meu rapaz!
Mycroft, sorrindo, retirou uma pitada de rapé de uma caixinha de tartaruga, e sacudiu a parte que lhe tinha caído no casaco com um grande lenço de seda.
— A propósito, Sherlock — disse ele — soube de algo que te deverá interessar bastante, um problema assaz invulgar, sobre o qual me pediram uma opinião. Não tive a energia suficiente para o investigar, a não ser de um modo muito superficial, mas serviu-me de base para algumas especulações que muito me agradaram. Se estiveres interessado em ouvir os factos…
— Decerto, meu caro Mycroft, encantar-me-ia. O irmão escrevinhou uma nota numa página do seu livrinho de apontamentos, e, depois de ter tocado a campainha, entregou-a ao criado.
— Pedi ao Sr. Melas para vir até aqui — disse ele. — Esse senhor está hospedado num andar por cima do meu. O Sr. Melas é de origem grega e ganha a vida como guia para os orientais endinheirados. Mas ele contará à sua maneira a aventura extraordinária em que se meteu.
Alguns minutos depois, juntou-se a nós um homem baixo e bem constituído com um rosto cor de azeitona e o cabelo muito negro. Apertou a mão a Sherlock Holmes, e os seus olhos escuros brilharam de prazer logo que percebeu que aquele especialista estava ansioso por ouvir a sua história.
— Hoje é quarta-feira — começou o Sr. Melas. — Bem, na noite de segunda-feira, só há dois dias, está a ver… que um tal Sr. Latimer subiu até aos meus aposentos para me pedir que o acompanhasse numa carruagem. Seguimos o percurso por cerca de duas horas sem que tivesse a mínima ideia do local para onde nos dirigíamos. Eram sete e um quarto quando saímos da Pall Mall. O meu relógio indicava dez minutos para as nove quando finalmente a carruagem parou. Consegui vislumbrar uma porta baixa, e em arco, por cima da qual havia uma lanterna acesa. Enquanto me empurravam para fora da carruagem, reparei que a mesma era aberta por um homem de meia-idade, de aspecto desagradável. Conduziu-me até uma sala que me pareceu estar ricamente mobilada. O Sr. Latimer já nos tinha deixado, mas voltou, conduzindo um homem vestido com um roupão muito largo e terrivelmente pálido. Porém, o que mais me chocou foi o facto de o seu rosto estar grotescamente coberto por ligaduras de gesso e de ter uma mordaça na boca. “Tens a lousa, Harold?” gritou o mais velho para o Sr. Latimer. “Desamarraram-lhe as mãos? Bem, então deem-lhe um lápis. Deverá fazer as perguntas, Sr. Melas, e este homem irá escrever as respostas. Pergunte-lhe, antes de mais, se está preparado para assinar os papéis”. “Nunca!” escreveu o homem pálido em grego nessa lousa.
“Sem quaisquer condições?” — perguntei-lhe, instigado pelo homem de idade.
“Só se a vir casada na minha presença por um padre grego que eu conheça.”
— Em breve tive uma óptima ideia — continuou o Sr. Melas. Comecei a acrescentar pequenas frases minhas após cada pergunta, de modo que a nossa conversa desenrolou mais ou menos deste modo:
“Não ganhará nada com essa teimosia. Quem é?
“Não me importa. Sou um estranho em Londres.”
“O seu destino depende de si. Há quanto tempo cá está?
“Deixá-lo. Três semanas.”
“A propriedade nunca poderá vir a ser sua. Que o apoquenta?
“Não irá para malfeitores. Estão a matar-me à fome.
“Será libertado se assinar. Que casa é esta?
“Nunca assinarei. Não sei.”
“Não a está a ajudar. Como se chama?
“Ela que o diga. Karatides.”
“Se assinar pode vê-la. De onde é?
“Então nunca a verei. De Atenas.”
Nesse momento a porta abriu-se e uma mulher entrou na sala. “Harold!” exclamou ela em inglês, com um sotaque muito cerrado. “Não pude ficar por mais tempo. Senti-me tão sozinha lá em cima só com… Oh, meu Deus, é o Paul!” Estas últimas palavras disse-as ela em grego e, na mesma altura, o homem, com um esforço convulsivo, conseguiu retirar a mordaça engessada da boca e gritou: “Sophy! Sophy!”
O mais novo agarrou na mulher e empurrou-a para fora da sala, enquanto o mais velho dominou com facilidade a vítima debilitada, arrastando-a pela outra porta. O homem mais velho voltou.
— Estão aqui cinco libras em ouro — disse-me — que, segundo espero, serão pagamento suficiente. Mas se falar nisto a então que Deus tenha piedade da sua alma!
Quase me arrastaram até ao veículo. O Sr. Latimer seguia de perto os meus passos e sentou-se no assento à frente sem dizer palavra. Percorremos em silêncio uma distância que nunca mais acabava, com as janelas fechadas, até que a carruagem parou e empurraram-me para fora. Estava em Wandsworth Common. Andei cerca de dois quilómetros até Clapham Juntion, apanhei um comboio para a cidade. Foi esse o fim da minha aventura, Sr. Holmes. Contei tudo em detalhe ao Sr. Mycroft, na manhã seguinte, e, mais tarde, à Polícia.
(CONTINUA)
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