A menina Arlete era costureira de calças e todos os dias
cedo, pela manhã, passava à porta da esquadra do Alto do Pina, para o seu
trabalho.
Era um piropo anódino. Sem segundas intenções e até
incompreensível visto que atendendo às dificuldades económicas o cabo Jeremias
não tinha bicicleta, nem, quando era puto, nem trotinete nem triciclo.
Lá na terra ainda estavam no tempo dos burros e das mulas.
Obviamente, não tendo aquele meio de transporte, não poderia
convidá-la para tal viagem. Provavelmente, a frase estava construída num
sentido metafórico.
Nunca ninguém conseguiu descobrir, nem o autor destas
linhas.
O cabo Jeremias passou portanto ao ataque com outra táctica e
cada vez que a menina Arlete passava na porta da esquadra entregava-lhe um
bilhete com uma frase célebre. Regra geral copiava Shakespeare. Sem grandes
resultados.
Como a menina Arlete tinha tirado só a 3ª classe, já quase
adulta. O único romance que tinha lido, em fascículos semanais, fora a
Toutinegra do Moinho, do grande Emílio de Richebourg, que contava a desgraça de
uma menina perdida de seu pai e criada por um lenhador… (uma história de fazer
chorar as pedrinhas da calçada).
Um dia ofereceram ao cabo Jeremias uns textos de Fernando
Pessoa que alguém encontrara num baú, algures.
Daí que, para demonstrar a sua erudição, um dia a menina
Arlete passou e ele atirou-lhe a seguinte verborreia, escrita a letra de forma
numa cartolina:
“Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões”.
Arlete tropeçou na calçada e o cabo Jeremias pensou que ela
tinha apreendido aquele texto hermético do maior poeta luso. (Vide Livro do
desassossego, pag.189)
Essa ideia ficou-lhe sempre a bater na cabeça como se fosse
uma pancadinha de chanfalho amigo.
Certo, certo, foi o facto de a menina Arlete nunca mais ter
passado pela porta da esquadra.
Seria que ela não gostava de metáforas?
O cabo Jeremias a partir desse dia nunca mais quis ouvir
falar de poetas e se acaso − pensou − o zarolho do Camões se lembrasse de
passar lá pelo Alto do Pina, arriscava-se a levar uma chanfalhada do cabo
Jeremias.
Ai levava, levava!
Ai levava, levava!