RECORDAÇÕES HOLMESIANAS (4 - 2ª
PARTE)
PASTICHE
/ PARÓDIA — A SINGULAR HISTÓRIA DE M.me BOVARY-WATSON
De Joel Lima
O autor
é, sem qualquer hesitação, o mais profundo conhecedor holmesiano português.
Teve meios, inteligência, cultura e entusiasmo para estudar e escrever o que de
melhor existe no país sobre as excentricidades dos homens de Baker Street 221B.
Mais
uma vez, com a devida vénia e gratidão publicamos um pastiche, extraído do seu
ensaio (2 volumes) “As Vidas Paralelas De Sherlock Holmes” e no fanzine
castelhano “Las Notas del Violin”, nº4, de 1992.
M. Constantino
Tanto
se tem dito e escrito sobre as Sagradas Escrituras, em geral, e a primeira Mrs.
Watson em particular, que brada aos céus o desconhecimento da sua enorme influência
no desenrolar da Saga. E, no entanto, para quem quiser ver, os textos de John
H. Watson, M. D., falam como gente.
Mary
Morstan era uma rapariga loura, magra, que vestia com elegância. Tinha grandes
olhos azuis e a sua sensibilidade e inteligência souberam despertar em Watson
uma paixão fulminante.
A
certa altura o médico acompanha Mary a casa. Partem em Julho e chegam numa tarde
enevoada de Setembro. E, no entanto, tão rápida é a passagem dos tempos felizes
que, para Watson, tudo decorre num só dia. Que se passou entretanto? O
inevitável, quando dois jovens se apaixonam loucamente: Sem ligarem a
preconceitos, John e Mary decidiram não esperar por uma legalização demorada. E
foi naquele dia de 1888, em que o calendário quase saltou do solstício para o
equinócio, que consumaram a sua união.
Quando
recolheram a uma alcova de fortuna. Watson, impenitente marialva, quis provar
àquela angelical criatura toda a experiência mulherenga, recolhida em muitas
nações e três continentes que fazia dele um amante de eleição, inventivo e de
alta perícia. Para Mary, ingénua virtuosa, até aí consciente desse papel,
aquela primeira noite — marcante como é dos livros — foi o abrir das portas de
um Paraíso insuspeitado. De menina um tanto sensaborona passou, sem transição,
a mulher provocante e sensual. No dia seguinte quis o mesmo ou mais e, depois,
tornou-se insaciável.
Watson
habituou-a mal. Jovem, fogoso, teve engenho e força para lhe alimentar, durante
aqueles três meses, os anseios constantes, iniciando-a em fantasias cada vez
mais requintadas.
Mas
mesmo as maiores vertigens têm de ceder, mais tarde ou mais cedo, às realidades
comezinhas. As economias de Watson esgotaram-se e os dois amantes viram-se
forçados, como Adão e Eva, a abandonar o Paraíso para que, pelo menos um deles,
ganhasse a vida com o suor do seu rosto.
John
era cavalheiro, e não deixou a menina no embaraço. Após um curto noivado para
satisfazer conveniências, os dois pombinhos deram o nó. Foi, como tantas vezes
acontece, o princípio do fim. Mary caía da exaltação do pecado na rotina
cinzenta do matrimónio.
Watson,
aliás, presumira das próprias forças e sobrevalorizara a sua capacidade de
amante. No dia do casamento, não passava já de um guerreiro alquebrado que,
tendo dado o seu melhor no campo de batalha, apenas aspirava ao repouso.
Além
disso, andava assoberbado: não só tinha de dedicar grande parte do seu tempo à
clínica porque era preciso fazer face às despesas acrescidas do seu novo estado
— como começou a ser bombardeado, de novo, por apelos de Sherlock Holmes que, a
abarrotar de solicitações nessa época, se sentia pouco à vontade sem o seu
Boswell. Começaram as deserções conjugais do bom doutor, aliás bem recebidas
porque o afastavam do vendaval erótico que o esperava, quotidianamente, sem
sinais de acalmia, mal abria a porta de casa.
Mary
Watson, a princípio, suportou as escapadelas do marido, as suas frequentes
dores de cabeça, as desculpas fornecidas pela bala afegã que umas vezes lhe
imobilizava o ombro e, de outras, a perna. Mas o vulcão que Watson
imprudentemente havia despertado, estava longe de se extinguir; bem pelo
contrário, a lava do desejo acumulava-se e era inevitável uma explosão
krakatónica.
Na “Liga
dos Ruivos”, Holmes, como era seu costume, declama, à laia de epílogo, uma
tirada erudita, desta vez extraída de uma carta de Gustave Flaubert a George
Sand. Watson, que não era taquígrafo, tomou nota errada da citação e atribuiu à
pena de Flaubert a frase L'homme c'est
rien — l'oeuvre, c'est tout quando o bom Gustave havia escrito L'homme n'est rien — l’ oeuvre, tout. Os leitores debitaram o
lapso ao detective e Holmes, ainda picado pelos injustos remoques do doutor a
propósito da sua cultura geral, resolveu prevenir recidivas, oferecendo ao
amigo as obras completas do grande escritor francês. Mary ficou encantada;
entrava-lhe porta dentro o remédio para as longas e entediadas horas que
passava, sozinha, a ansiar pelo regresso do seu senhor e amo. Devorou, de um
fôlego, “Madame Bovary” e, num arrebatamento de irrecuperável romântica,
sentiu-se retratada de corpo inteiro na heroína.
O seu
destino ficou traçado e o de Watson também O primeiro amante de Mary terá sido
o Dr. Anstruther, a quem o fiel biógrafo confiava os doentes e os destinos da
clínica, sempre que ocorria aos chamamentos de Holmes.
Quando
surge nova hipótese de deslocação, Mary é já a primeira a aconselhar o marido a
partir com o pretexto de que andava com mau parecer (pudera!) e de que a mudança
de ares lhe faria bem. “Anstruther pode substituir-te como já tem feito em
outras ocasiões” , diz ela cinicamente, ciente de que a substituição não se
confinava ao gabinete de consultas.
Mas,
lançada como estava, Mary não podia ficar-se por um só amante. Em vez de (ou,
mais provavelmente. em acumulação com) Anstruther, despontaram outros paladinos
com que Mary procurou reeditar a exaltação da primeira noite.
Com o
correr dos tempos, a prática tornou-se rotineira e Mary foi relaxando as
cautelas tidas, de início, para ocultar as suas leviandades. Aliás, já não lhe
bastavam os tempos livres deixados pelos afazeres profissionais e pelas
andanças, detectivescas do marido. E, nas “Cinco Pevides do Laranja”, para
conseguir uns dias de idílio paralelo, pretexta uma suspeitosa visita à mãe
(versão do Strand, de Novembro de
1891) ou ã tia (emenda introduzida nas “Aventuras”, quando publicadas em
livro), esquecendo-se de que, antes de casar, havia assegurado a Holmes e ao
futuro marido que a mãe morrera e não tinha parentes em Inglaterra.
Antes
de se iniciar a “Aventura do homem do lábio torcido” Mary comete a gaffe tradicional da mulher apaixonada que
não consegue afastar do espírito o nome do amante de serviço — e chama “James”
ao marido.
Watson,
revelando-se digno exemplar do clássico esposo enganado, não se apercebeu das
implicações do lapso e levou o caso para a brincadeira. Horas depois, a caminho
de Lee, no Kent, contou o pitoresco incidente a Holmes, entre duas gargalhadas.
O
detective não riu; a mudança que havia observado em Mary, aliada àquela
esquisita troca de nomes, puseram-lhe a pedra no sapato. E logo decidiu investigar
por sua conta, com a discrição necessária para não alarmar o amigo. O acaso
veio em seu auxílio. Por essa altura, o assunto proposto pelo major Prendergast
levou-o ao Clube Tankerville, aí pôde provar que o major fora vítima de uma
cabala urdida pelo coronel Sebastian Moran, membro do mesmo clube.
Rancoroso,
o coronel, vendo-se descoberto, trocou palavras azedas com Holmes. Grande
detective? Qual carapuça! Dizia-se amigo íntimo do Dr. Watson e nem sequer
descobrira que Mrs. Watson enganava o marido. E, no entanto, a fulana, naquele
mesmo momento, estava a curtir pecaminosas delícias nos braços de James Moriarty,
seu colega da tropa e mano do patrão.
Foi a
primeira vez que Holmes ouviu faiar daquele que iria tornar-se o seu grande e
obsessivo inimigo. O personagem era de tal envergadura que, a breve -trecho, Holmes
se esqueceu do James-coronel para se dedicar de alma e coração ao
James-professor.
Um
recado de Mary trouxe-lhe de novo ao espírito o, drama de Watson. Moriarty,
desesperado pelas intromissões importunas de Holmes, concebera um diabólico
plano. Pelo irmão coronel comunicou a Mary que, se não fizesse parar o detective,
a sua leviandade séria exposta ao marido e, o que era ainda pior, às suas
amigas de círculo. Mary teve, assim, de buscar ajuda junto de Holmes. “Não
posso ir a Baker Street”, escreveu na mensagem angustiada que enviou ao
detective, “porque a minha presença despertaria as suspeitas de Mrs. Hudson e
chegaria aos ouvidos do meu marido. Por favor, Mr. Holmes, venha ver-me sem que
o John saiba”.
E foi
assim que Watson se viu despachado para Dartmoor, no início do caso dos
Baskervilles. Holmes, segundo pretextou, não podia sair de Londres porque
andava ocupado com um caso de chantagem de que era vítima uma pessoa que muito
reverenciava — admirável meia-verdade bem digna do Grande Homem.
A
entrevista com Mary começou em tom de harmonia. Holmes deu bons conselhos à
rapariga e prometeu-lhe uma solução feliz, se ela acabasse com os desvarios extraconjugais.
Mary sentiu-se reconfortada e relaxou — o que era perigoso para qualquer macho
que estivesse por perto. As horas foram passando e o detective ficou para o chá
— e depois, para o jantar. Com a ajuda da garrafeira de Watson, Holmes começou
a pensar no seu longo jejum de frivolidades e a sentir certa urgência em
pôr-lhe termo. Mary pediu licença para ir vestir, qualquer coisa de mais confortável
— e que, na circunstância, era um
negligée transparente importado de Paris.
Aconteceu
o que era de esperar. Quando Holmes vai finalmente a Dartmoor, não tem coragem
para encarar Watson à luz do dia. Aparece-lhe, furtivamente, envolto nas
sombras da noite e assim se mantém, durante uns dias, a ganhar atento para
fitar o amigo nos olhos.
Moriarty,
entretanto, não abrandara a pressão sobre Mary e despachou o irmão para Kensington
em missão de reconhecimento; a adúltera mantinha um fraquinho pelo coronel e,
entre duas volúpias, contou-lhe o que sucedera com Holmes. O Professor rejubilou;
o detective, num momento de desvario, dera-lhe a arma com que poderia
neutralizá-lo. E, chamando-o ao seu antro, Moriarty disse-lhe o que sabia e
ensaiou nova chantagem: ou o detective entrava para a quadrilha ou Watson
conheceria a traição do amigo.
Herói
de novela até ao fim, Holmes recuou, “aconteça o que acontecer”. Mas o golpe
havia atingido o alvo e Sherlock vagueou, sem destino, durante uns tempos.
Quando, cosido às paredes, volta a Baker Street, como um cão acossado, estamos
já em pleno “Problema Final”.
Moriarty
foi ainda ao 221-B, numa última tentativa para convencer o detective.
“—
Sabe com certeza ao que venho, Holmes.”
“—
Sabe, com certeza, qual é a minha resposta, Professor”.
Se
mantém galhardamente a sua posição de cavaleiro andante dos tempos modernos,
Holmes nem por isso deixa de recear o que pode acontecer, na segunda-feira
seguinte, quando a Polícia deitar a mão ao bando de Moriarty. Se Watson
estivesse por perto, o Napoleão do Crime, desesperado e sem nada a perder, era
capaz de dar com a língua nos dentes, expondo o opróbrio de Holmes ao marido
ultrajado, na presença de meia Scotland Yard.
Mais
valia não correr riscos; urgia afastar Watson de Londres. E Holmes, contra o
que seria natural, renuncia a assistir ao maior triunfo da sua carreira e
arrasta o amigo numa fuga insensata em direcção ao Canal.
Pecou,
no entanto, por soberba e esqueceu lamentavelmente a força do adversário.
Falhado o plano A, Moriarty tinha, de reserva, um outro que pôs em prática
desde que Holmes recusou, em definitivo, a sua oferta de emprego. Nessa mesma
noite, Watson com provas na mão, foi posto ao corrente do seu infortúnio e da
traição de Holmes. Foi como se, sob os pés, se lhe abrisse um abismo premonitório.
E, sem mais delongas, na sanha de se vingar do falso amigo, fez um pacto demoníaco
com Moriarty. Seria a sombra de Sherlock, não o perderia de vista nem um minuto
e manteria o Professor ao corrente das andanças do detective para que, no momento
certo, justiça fosse feita.
Holmes,
receoso, troca as voltas a Moriarty e o Napoleão do Crime, sozinho e enganado,
jamais descobriria o rasto do detective se Watson lhe não enviasse,
metodicamente, relato fiel dos ziguezagues que os fugitivos ensaiaram sobre o
mapa do Continente. A última mensagem de Watson foi expedida de Meiringen: “Amanhã,
às tantas horas, vamos visitar a Catarata. Alea
jacta est”.
Fora
combinado que Watson estaria presente na cena final. O Professor, desabituado
de lidar com armas de fogo (era Moran que fazia o trabalho “sujo”), precisava
do doutor e do seu revólver de ordenança para garantir o êxito do massacre.
Só que
Watson, farto de ser enganado, adquirira uma esperteza até aí insuspeitada. Se
viesse sozinho anunciar a morte de Holmes, alguém que soubesse da traição do
amigo, seria tentado a apontá-lo como suspeito de homicídio passional. Por
isso, arranjou a artimanha da mensagem fictícia que o chamaria ao albergue a
tempo de conseguir um álibi à prova de fogo: quando Holmes morresse, estaria
ele a falar com o estalajadeiro. E Moriarty que se aguentasse sozinho.
Posto
perante uma situação que não esperava. Moriarty enfureceu-se. E antes de travar
com Holmes um corpo-a-corpo de recurso, lançou-lhe com toda a peçonha da aranha
que avança para a presa: “Escusas de contar com o teu amigo. Ele é mais esperto
do que tu ou do que eu. Sabe que dormiste com a mulher e combinou comigo a
melhor forma de te liquidar. Mas, à última hora, pôs-se a milhas para evitar
complicações”.
O
duelo teve o fim consabido exit
Moriarty. Holmes, sozinho, ficou a contas com a sua consciência. Não sentia
coragem de enfrentar um homem que havia atraiçoado e que, sabendo-o, o
atraiçoara por seu turno. A chaga estava viva e um reencontro imediato teria
resultados imprevisíveis; seria melhor para ambos que Watson o julgasse
defunto. Rabiscou, à pressa, uma nota de adeus, entalou-a debaixo da cigarreira
e partiu, sem rumo, para um destino incerto.
Livre
do infame sedutor, faltava a Watson punir a esposa infiel. Ao regressar a
Londres, esperava-o uma surpresa. O coronel Moriarty, se saiu à estacada em
defesa do irmão defunto, não se descoseu quanto às aventuras adulterinas de
Sherlock Holmes. Era natural; estava noivo de uma filha-famílias podre de rica
e receava que o seu envolvimento no caso não fosse do agrado dos futuros
sogros. E, num estranho acordo de cavalheiros mesclado de conspiração do
silêncio, de parte a parte ninguém abriu o bico.
Começou,
então, a segunda parte da vingança de Watson, que fez apelo ao que lhe restava
dos ensinamentos recebidos na Faculdade. Mary começou por sentir-se indisposta,
depois teve vómitos, mais tarde acamou. Pouco restava da ninfomaníaca loura dos
tempos áureos. O final chegou, sem alardes, em certa madrugada fria — e Watson
passou a certidão de óbito.
A
notícia da morte de Mrs. Watson chegou a Holmes, quando estava em Montpellier,
a gastar a última mesada expedida por Mycroft. Aquilo não era vida de futuro e,
além disso, estava farto de comer coxas de rã e escargots de Bourgogne.
Morta
Mary, talvez a fúria de Watson se tivesse acalmado, Holmes regressou a Londres,
prudentemente disfarçado. Seguiu Watson durante uns dias e verificou que o
amigo voltara à sua vida de boémio impenitente. Não há nada para fazer esquecer
a traição da mulher própria, como fazer amor com as mulheres dos outros. Watson
estava, portanto, curado.
Uma
investigação sumária permitiu a Holmes descobrir a verdade sobre a morte de
Mary Watson. As últimas preocupações dissiparam-se; Johnson podia reencontrar
Boswell.
Quando,
em Park Lane, Watson tropeçou com um velho encurvado, não foi “A origem do culto da árvore” que apanhou do
chão. Todos os livros tinham o mesmo título que lhe gelou o sangue nas veias: “Othello”.
O
alfarrabista voltou a aparecer nessa noite; apresentou-se em casa do médico e
propôs-lhe a compra de cinco volumes anódinos. No entanto, quando Watson olhou
para os livros, viu, nos cinco, uma vez mais, o título acusador: “Othello”!
Branco como a cal da parede, voltou-se para pedir explicações e, no lugar do
deformado ancião, deparou com Holmes que o fitava com um sorriso sardónico. “Levantei-me”,
confessa o doutor “olhei-o, embasbacado, durante alguns segundos e, depois,
devo ter desmaiado pela primeira e única vez na vida”.
Era
inevitável; Watson fora fulminado, simultaneamente, por duas catastróficas surpresas:
a aparição do homem que ajudara a matar e a certeza de que esse homem conhecia
o seu terrível segredo.
O
crime de Watson, no entanto, restabelecera o equilíbrio de forças entre os dois
ex-rivais. Othello e o sedutor de Desdémona já nada tinham que recear, um do
outro; as suas culpas anulavam-se reciprocamente. E, embora sem a candura dos
velhos tempos, a convivência restabeleceu-se, cimentada, agora, pelo conhecimento
mútuo de que ambos tinham iguais pesos nas consciências.
Podia
acontecer o resto da Saga, com vantagens para os dois parceiros: Holmes
assegurava os serviços de um operador publicitário e restabelecia a mesma situação
de outrora, indispensável para reconquistar a confiança dos clientes; Watson
garantia a sobrevivência, como narrador das aventuras que faltavam, sem ter de
reler os de há muito esquecidos tratados de Medicina que se cobriam de pó na
estante.
O
biógrafo, no entanto, era gato escaldado. E, quando lhe apareceu a hipótese de
segundas núpcias, disse adeus a Holmes e, pelo sim, pelo não, foi instalar-se
em casa própria para as bandas de Queen Anne Street ocultando a mulher de tal
forma que Holmes nem chegou a saber quem era — o que levou o detective a
registar, com amargura, que Watson havia traído o pacto tácito firmado em 1894.
Desgostoso,
Holmes nem por isso deixara de ser um cavalheiro. A infidelidade — única na sua
vida — ainda lhe remoía e quis dar ao amigo a prova suprema de que os seus receios
eram totalmente infundados.
E, num
belo dia, pegou no Stradivarius, no “gasogéneo” e na chinela persa e foi para
longe, criar abelhas.
Os
anos passaram. Watson, com a fortuna da última esposa, assegurou uma reforma
antecipada e confortável (entrecortada pelo episódico relato de uma que outra
aventura remota, para “manter o jeito”) e Holmes foi vivendo a sua existência
de apicultor eremita.
O
último episódio ligado à memória da infeliz Mary Morstan ocorreu quando a Saga
estava já em estertor.
O
Coronel James Moriarty iniciara uma carreira política que prometia. Ajudado
pelo sogro, sólido baluarte da nobreza saxónica, entrou para o partido do
Governo, conseguiu um bom lugar no Estado-Maior e começou a sonhar com mais
altos voos. Só que as coisas não aconteciam com a rapidez que ele queria e o
velho era forreta. Preparava-se o vendaval de 1914 e o coronel, ambicioso e a
precisar de suporte urgente para a sua propaganda pessoal, meteu-se em negócios
escuros. A espionagem do Kaiser estava muito activa e ansiosa por saber coisas
acerca da defesa aeronaval da Ilha. Um dos agentes, americano de nascimento que
usava o pseudónimo “Jack James”, foi encarregado de contactar uma personalidade
vulnerável com acesso fácil aos segredos militares; o código que utilizava, na
altura, para transmitir mensagens aos seus chefes, muito adequadamente
empregava nomes de pássaros para designar aviões de guerra e termos ligados à
vida do mar, quando bolia com a defesa da costa. “Farol” correspondia a “sinalizações
navais” e “corvo marinho” a certo tipo de “aeroplano”, ainda em fase experimental;
quando o projecto fosse aprovado para fabrico, o “corvo marinho” passaria a
considerar-se “amestrado”.
Na “Sua
Última Vénia”, Holmes teve ocasião de neutralizar “Jack James” e o seu chefe
Von Bork e apreendeu os dossiers
deste último, entre eles os que continham o fruto do labor do subordinado
acerca de “aeroplanos” e “sinalizações navais”.
Faltava
descobrir qual o político que havia prestado as inconfidências aos agentes do
Kaiser.
Holmes
meteu mãos à obra, mas o assunto era delicado; o pseudónimo de “Jack” deu-lhe
uma pista — o apelido “James” designava o nome da principal fonte de
informações do espião. Não foi difícil a Holmes localizar a nascente daquele
Nilo de traições e chegou, assim, a James Moriarty; o homem, na altura, estava
alcandorado a posição de grande destaque na vida pública britânica e rodeado de
muitos bastiões influentes que tratara de reforçar quando soubera da prisão dos
cúmplices. A política tem razões que o patriotismo no compreende e Holmes
viu-se forçado a meter na gaveta as provas tão laboriosamente obtidas contra o
mano do seu defunto inimigo.
O
coronel é que não estava descansado; um tal libelo nas mãos de um homem como
Holmes era uma ameaçadora espada de Dâmocles, capaz de, a qualquer momento, lhe
desfazer os sonhos mais queridos.
Nos
finais de 1926, contratou homens de mão para roubar o dossier, mas o golpe falhou. Em desespero de causa, James Moriarty
lembrou-se da sua amante de outrora e, com certa timidez, fez saber que a
infidelidade de Mary Watson podia vir à luz do dia coisa que não perturbou sobremaneira
nem o marido ultrajado, que já se vingara e esquecera essas águas passadas, nem
o fortuito apaixonado de uma noite que estava todo entregue às suas abelhas e
ao seu reumatismo.
Com o
consentimento do detective, Watson decidiu informar sibilinamente o coronel de
que as pressões não teriam qualquer impacto e que, a continuarem, as
pretendidas vítimas se converteriam em algozes e revelariam à opinião pública
quem era o “político” comprometido com o “farol” e o “corvo marinho amestrado”.
A
publicação do aviso na “Hóspede Velada” foi remédio santo. James Moriarty,
aterrado, compreendeu que os adversários dispunham duma arma contra a qual de
nada valiam compadrios e encobrimentos. E antes que lhe caíssem em cima os
milhões de ingleses que devoravam as “Aventuras”, cancelou os planos maquiavélicos
e refugiou-se, também ele, numa reforma sem história.
Na
campa esquecida de Mary Morstan Watson, podia inscrever-se finalmente: Requiescat in pace.
Sem comentários:
Enviar um comentário