4 de junho de 2013

RECORDAÇÕES HOLMESIANAS

RECORDAÇÕES HOLMESIANAS (4 - 1ª PARTE)
 

4 — DESTAQUE PARA O DR. WATSON
A segunda figura importante do canon ou saga de aventuras de Sherlock Holmes é, inevitavelmente o seu companheiro de habitação e aventuras, seu biógrafo, Dr. John H. Watson. Na sequência do processo tradicional de Poe — o indiscutível criador da narrativa policiária — Dupin tinha um amigo que para além do acompanhar era o narrador dos seus, poucos, casos, Conan Doyle seguiu a mesma directriz. Poderá dizer-se que sem Watson, Holmes não teria a celebridade que conhecemos, que o mundo conhece, dado que dos seus sessenta escritos (romances e novelas) que integram a saga holmesiana, cinquenta e quatro foram relatados por Watson, apenas dois pelo próprio Holmes e um por um narrador anónimo. Watson é pois um personagem em destaque. Como outras particularidades da sua vida de ficção, tem sido alvo da curiosidade dos fãs e estudiosos o nome que e oculta sob o “H.” que separa o “John” e o “Watson”. Num estudo de Michael Dibdin, o “H” será “Herbert”, para Dorothy Sayers é “Hamish”, se bem que, um tanto conservadores, apostamos pelo solitário “H”, ou seja o legendário John H. Watson.
Watson, companheiro e memorialista oficial de Sherlock Holmes é médico. Formado em medicina em 1878 pela Universidade de Londres, seguiu o curso de cirurgia militar em Nettley, sendo destacado para o V Regimento de Fuzileiro de Northumberland, foi mobilizado na qualidade de cirurgião-ajudante, seguindo com a sua unidade para a Índia, sendo que o regimento chegou a intervir na 2ª guerra do Afeganistão (1878-1881). Ferido na batalha de Maiwand, foi evacuado para o Hospital de Peshawer, onde foi tratado de um ferimento de bala “jezail” (espingarda artesanal de cano comprido, carregamento pela boca e disparo de pedreneira) acabando por contrair uma febre entérica que apressou o seu regresso a Inglaterra, onde depois de um período de licença de convalescença, foi passado à disponibilidade de serviço. Sem família, passou a viver de uma escassa pensão, até encontrar um colega, Stanford, que provavelmente Sherlock Holmes, que frequentava os laboratórios do Hospital de S. Bartolomeu e também andava à procura de casa, ou melhor, vivia numa\casa, o famoso 221B de Baker Street, com um quarto vago a preço módico. Após a apresentação e aceitação do alojamento, entraram em conhecimento mútuo e confissões de virtudes e defeitos. Watson confessa que é preguiçoso, levantando-se a qualquer hora do dia ou da noite, Holmes fala-lhe das suas pequenas manias. Porém, sendo verdade que nos primeiros tempos Watson mantem-se desagradado com os hábitos mais que extravagantes do companheiro, a partir do momento em que Holmes, por cortesia, o convida a acompanhá-lo no caso que veio a ser  divulgado por um “Um Estudo em Vermelho”, seduzido pelos mistérios policiários e pela actuação do amigo, entrega-se totalmente ao estudo e reprodução biográfica do alto e esguio detective, que fisicamente difere de si , já que é de estatura mediana, robusto, de rosto cheio, cabelo e bigode castanhos, bem tratados. Reconhece que Holmes é brilhante, de insólitas faculdades, o melhor detective do mundo, a sua personalidade demarca-se de toda e qualquer pessoa. Ele, Watson, colocava-se em plano nitidamente inferior, por vezes ridículo. Mas John H. Watson nada tem de parvo — talvez pecasse pela excessiva idolatria que denotava para com o amigo — demonstrava, se bem observarmos, que não é a pessoa apagada e pouco inteligente, pelo contrário, dá provas de sagacidade e discernimento psicológico não desdenháveis.
Fala-se, frequentemente, nos deslizes, ataques de amnésia ou cabeça no ar, referenciando datas e lapsos narrativos de que a saga é palco. Esqueçamos tal. Watson é um personagem — com vida própria, tal como Holmes — mas apenas um figurante nas mãos do autor. E se erros existem, porque de facto existem, concordamos, são reportáveis a Doyle que, não gostando particularmente daqueles a quem deve a fama, honrarias e vantagens monetárias, não cuidava da escrita, não mantinha sequer um guia, como qualquer escritor mais medíocre faria em narrativas sequenciais. Absolvemos, pois, o nosso Dr. Watson. Se defeitos tem, está reduzido à condição humana comparativamente. Mas boa parte dos estudiosos da saga, exploram até à minúcia qualquer palavra, gesto ou situação, para conseguirem um ponto de partida para as suas divagações. Ora põem em dúvida o seu comportamento sexual (lembremos a paródia de Rex Stout “Watson era uma Mulher”), pelo facto de viver em comum com Holmes, o que o obriga publicamente a esclarecer “Sim , mas vivemos em quartos separados”, ora a considerar-se mulherengo por afirmar  “Tenho conhecimento sobre mulheres de três continentes. Neste caso particular, se bem nos parece “conhecimentos” não significa, necessariamente, conhecimentos sexuais. A simples observação da fala, do vestuário, do comportamento das mulheres também é conhecimento sobre as mulheres e tendo o visado vivido em três continentes, as suas observações teriam que abranger, naturalmente, mulheres de três continentes. Só com  “relações com” se poderia intuir uma relação física. Não esqueçamos, por outro lado, que Watson era um cavalheiro… e vitoriano!

William S. Baring-Gould (1913-1967)
 
Muito para além destas observações, diria vãs observações, o tema de Watson e as mulheres é intenso, até quanto ao número de casamentos. William S. Baring-Gould, excelente autor da biografia de Sherlock Holmes, já referida anteriormente, obra cujo percurso do nascimento à morte do biografado e afins, ultrapassando em muito o texto da saga holmesiana contem elementos laterais, e encontra, milagrosamente, três casamentos do Dr. Watson. O primeiro com Constance Adams, de 27 anos (Watson tinha 32, segundo o mesmo autor) não muito bonita, mas do tipo que agradou ao médico, tinha o rosto redondo, boca grande cabelos castanhos e olhos azuis-esverdeados, simpática e nada egoísta. Relata tal autor que após “A Aventura da Faixa Malhada”, Abril de 1883, em que Watson tomou parte com Holmes, o primeiro se deslocou aos Estados Unidos da América para auxiliar um irmão, em S. Francisco, muito doente e sem dinheiro. Holmes teria financiado a viagem. Watson constituía consultório em S. Francisco para poder pagar a dívida ao amigo de Baker Street, pois descobrira que ainda era bom como médico, e aí se manteve até ao Verão de 1886, altura em que achou que poderia trespassar o consultório. Vivera com Constance, com quem prometera casar logo que concluísse a narrativa de de “um Estudo em Vermelho”. O Casamento realizou-se em S. George, na Hanover Square em 1 de Novembro de 1886. Se de facto assim foi Watson manteve a boca fechada como uma ostra. Mas onde se teria escondido a Sr.ª Watson? Não o sabemos, Baring-Gould apenas nos diz qua a senhora faleceu em Dezembro de 1887. No caso de Miss Mary Morstan, com quem Watson irá casar, é diferente. Aparece no primeiro capítulo de “O Signo dos Quatro” quando da consulta a Holmes. É descrita por Watson no capítulo II, estava-se em 7 de Julho de 1888, ao que se conclui do texto e deixa no narrador um indício fatal de paixão: recorda mentalmente os seus sorrisos, o timbre da voz, o estranho mistério da sua vida. No final do capítulo confessou o amor mútuo e no fim diz a Holmes que receia que esta seja a última investigação em que teve oportunidade de estudar os seus métodos, “ Miss Morton fez a honra de aceitar-me como marido”, casaram, agora é Baring-Gould que o afirma, em 1 de Maio de 1889.
Como seria normal, Watson deixa Baker Street logon após o casamento e acrescenta: “Comprei uma clínica no Distrito de Paddington. O velho Sr. Farquhar tivera noutros tempos uma clientela excelente. Porém a idade e a doença de São Vito desfavoreceram-no muito. O público, como é natural, baseia-se no princípio de quem cura os outros deve curar-se a si próprio e desconfia da capacidade daquele cujos remédios não o curam. Os pacientes tinham baixado de mil e duzentos por ano para menos de trezentos, mas estava convencido que com a sua saúde e energia, em poucos anos o negócio estaria de novo florescente” Aí o visitou Holmes e soube que o amigo continuava a “reler as notas e a classificar alguns dos seus resultados” e que não se importava de acompanhar o detective na aventura, já que o seu vizinho também era médico, e possuía uma clínica, estava sempre pronto a tomar o seu lugar, pagando assim a dívida de igual procedimento de Watson.

Ilustração de Sidney Paget
“O Homem do Lábio Torcido”
 
Numa noite de Junho desse ano (1889) algo sucedeu que iria motivar os estudiosos holmesianos a divagar sobre o procedimento da Sr.ª Watson. Tocaram à campainha de casa e uma vizinha amiga e colega de escola, Kate Whitney, entrou aflita, sem saber o que fazer. Mary consolou-a e declarou (“O Homem do Lábio Torcido”): Fez bem em ter vindo. Agora vai tomar um copo de refresco e sentar-se confortavelmente para desabafar. Ou prefere que mande James para a cama?”. É este James o pomo da grande discórdia. Watson não o notou, não fez caso ou achou-o natural. Mas a pequena pedra transformou-se em pedregulho e transformou, igualmente, Mary Watson numa adúltera, porquanto se refere a James, enquanto o marido era John, estava a pensar — segundo opiniões — no amante.
Vamos ser razoáveis. O facto sucede apenas a pouco mais de um mês do casamento, em plena lua-de–mel, diria. Mary já teria arranjado um amante ou já o trazia da situação de solteira. Por outro lado, segundo Dorothy Sayers, Mary empregou apenas o segundo nome de Watson, do H Hamish, que em escocês é sinónimo de James. Também Baring-Gould ao falar de Watson chama-o de John Hamish Watson.
(CONTINUA AMANHÃ)

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