23 de julho de 2012

CALEIDOSCÓPIO 205

EFEMÉRIDES – Dia 23 de Julho


Raymond Chandler (1888 - 1959)
Raymond Thornton Chandler nasce em Chicago, Illinois, EUA. É considerado um dos gigantes do policiário americano; é o primeiro autor de mistério/detective a ter as suas obras publicadas na Library of America Series, atraindo desta forma o interesse mundial pela escola hard-boiled da literatura policiária. O estilo único de Raymond Chandler tem um impacto indiscutível na literatura policiária moderna, não só no estilo da escrita, mas também nas próprias características do género. Além dos 7 romances protagonizados por Philip Marlowe em destaque nos TEMAS, Raymond Chandler escreve 5 colectanêas de contos: Five Murderers (1944), Five Sinister Characters (1945), Fingerman and Other Stories (1947), The Simple Art of Murder (1950), Killer in the Rain (1964); escreve ainda duas dezenas de contos, e argumentos para teatro e cinema. Muitas das suas obras foram adaptadas ao cinema com grande sucesso. Em Portugal os livros de Raymond Chandler tem sido publicados por diversas editoras, com destaque para a Livros do Brasil na Colecção Obras Completas de Raymond Chandler (clicar) e também na Colecção Vampiro (clicar).

Raymond Chandler ganha em 1955 o Edgar Award para Best Novel com The Long Goodby, O Longo Adeus, na edição portuguesa.


TEMA — TRAJECTÓRIA DE CHANDLER
De Victor Claudin
Em 1938 Chandler iniciou a elaboração de “The Big Sleep”, para o que se baseou em alguns dos seus contos. Nele, Marlowe não era a realidade em que chegaria a converter-se em “The Lady in Lhe Lake”,e nessa obra mestra que é “Farewell,my Lovely”. Chandler iria consolidar o aspecto político e social de um género considerado superficial. Até então, tudo estava reduzido a um mero jogo nas mãos dos artesãos que não viveram a realidade e, por isso, se evadiam dos problemas atormentados dos leitores. A novela negra é um intento afortunado frente ao existente, será uma narração real, social e sem limites.
Chandler, que admirava Hammett, e a quem estudou minuciosamente, disse que este “tirou o assassínio da taça de cristal veneziano e atirou-o ao charco”. Em resposta aos relatos clássicos, ao jogo melífero das classes altas, de festas de fim-de-semana e jardins de rosa do vigário, Hammett devolveu-o à gente que o comete por alguma razão… devolveu as pessoas à sua verdadeira dimensão, tal como eram, e fê-las falar e pensar na língua que usam frequentemente.
“A novela policial — dizia ele em 1949 — deve ter veracidade, tanto no que concerne à situação original como ao desenlace”. Critica as histórias conhecidas como “um círculo cerrado” de Christie.
A partir de uma base mínima, marcou limites, a definir para a novela negra futura, na construção, na técnica, no que concerne aos personagens, ambiente e atmosfera. Uma estrutura essencialmente simples que possa explicar-se, que deve escapar ao leitor inteligente, ainda que não seja necessário, nem desejável, enganá-lo. A solução deve aparecer como inevitável…
Tanto Hammett, como Chandler, viveram a violência, a miséria e a desolação. Não fizeram mais do que projectar literariamente as suas experiências.


TEMA — A ESCOLHA DO PERSONAGEM EM CHANDLER
M. Constantino
Se bem que, como em todos os géneros literários, seja dispensável a inserção de um personagem principal, quando existe — e é saliente no género policial — torna-se quase obrigatoriamente o fulcro da atracção de toda a história.
Para Chandler, que seguiu de perto as pisadas de Hammett, aquela preocupação é evidente. Todo o idealismo, inconformismo, o rancor e cepticismo face a uma sociedade a que é obrigado a pertencer, é posto em Marlowe. Toda a denúncia da erosão individual e social, da imoralidade do Poder, do crime organizado, do caciquismo à corrupção, o próprio temperamento romântico de Chandler, transparece em Marlowe.
Espiritualmente Chandler, fisicamente contudo, Marlowe não é Chandler Este, identifica o seu personagem com Cary Grant.
Num curto ensaio sobre literatura policiária, ”A Simples Arte de Matar Chandler” descreve o que, para si, deve ser um detective protagonista:
Deve ser um homem completo e um homem comum, e ao mesmo tempo um homem extraordinário. Deve ser, para usar uma frase corrente, um homem de honra por instinto, por inevitabilidade, sem pensá-lo e, por certo, sem dizê-lo. Deve ser o melhor homem deste mundo; creio que poderá seduzir uma duquesa e, estou muito seguro, de que não forçaria uma virgem. Se é um homem de honra numa coisa, é-o em todas as coisas. É um homem relativamente pobre, porque de contrário não seria detective. É um homem comum, porque de contrário não viveria entre gente comum. Tem um certo conhecimento do carácter alheio, ou não conheceria o seu trabalho. Não aceita desonestamente dinheiro de ninguém, como não aceita a insolência sem desapaixonada correspondência. É um homem distinto dos demais, o seu orgulho consiste em que ninguém o trate como um homem orgulhoso, ou tenha que lamentar tê-lo conhecido. Fala como fala um homem da sua época, isto é, com repugnância pelos fingimentos e com desprezo pela mesquinhez.

Fiel retrato espiritual de Marlowe. Fisicamente, já o dissemos, identifica-se com Cary Grant. Um homem alto — tem mais de 1.80 m e 82 kg de peso — moreno, de olhos cinzentos-escuros, quase castanhos, e separados, nariz fino e potente mandíbula, cabelos grossos e escuros, com faixas grisalhas que parecem pintadas por uma mão tímida.
Sabemos que nasceu em Santa Rosa (Califórnia),estudou em Oregon e frequentou a Universidade (University of Oregon Eugene e Oregon States University de Corvallis) e provara ter bastantes miolos para se licenciar em Direito, mas largou o curso a meio, com a ideia de que o país estava atulhado de advogados pelintras, alguns, até incapazes de redigirem uma petição sem se servirem da muleta de um compêndio formulário.
Ninguém sabe como chegou a Los Angeles. Foi investigador de uma seguradora, trabalhou como principal investigador de Mr.Wilde, o promotor de justiça daquela cidade, de onde seria expulso por insubordinação, e encontramo-lo, pela casa dos 30 anos envelhecendo ao longo do tempo, como todos os seres humanos, como detective privado, com escritório no Edifício Cahuenga, 6º andar: duas pequenas salas das traseiras, uma sempre aberta para que os clientes pudessem entrar — se aparecesse alguém — a outra, o seu santuário: 3 cadeiras duras uma almofada, uma mesa com tampo de vidro, 5 caixas verdes para arquivo, 3 delas cheias de nada, um calendário e uma licença encaixilhada, um telefone, um lavatório, um cabide, uma carpete: nem objectos bonitos, nem alegres, mas melhor do que uma tenda armada na praia.
Na vidraça granulada da porta em caracteres negros lê-se: Philip Marlowe Investigações.
Bebe, fuma Camel, pega no cachimbo de vez em quando, para o qual tem um tabaco preferido, o “Pearse”, detesta charutos.
O seu preço é 25 dólares por dia e despesas. É pouco, mas o que tem para o que tem para vender, a fim de ganhar a vida com a pouca coragem e a inteligência que Deus lhe deu, e a disposição de se resignar a muita coisa, a fim de proteger os seus clientes. A conta bancária anda tão por baixo que parece querer rastejar entre as pernas de um pato.
Não é uma organização, apenas um homem, e trabalha num único caso de cada vez. Corre riscos, às vezes grandes, nem sempre tendo trabalho, às vezes leva tareias, mas é rijo. Diz, com ironia:
Oh, sou um tipo muito esperto! Não tenho sentimentos, nem escrúpulos, tenho apenas ganância de dinheiro! Sou tão esganado por “massa” que, por 25 dólares, diários, e despesas, na sua maior parte gasolina e whisky… penso com a minha cabeça, arrisco todo o meu futuro, atraio a antipatia dos “chuis”, esquivo-me a balas, apanho marretadas na cabeça e ainda por cima digo: muito obrigado; se tiver mais complicações, espero que se lembre de mim — deixo um cartão, no caso de acontecer qualquer coisa… Faço isto tudo, e talvez ainda mais, por 25 dólares diários; preservar os restos de orgulho de um velho doente e inválido, que se agarra ao pensamento de que o seu sangue não é veneno, e de que embora as suas duas filhas sejam um pouco estouvadas e bravias, como hoje em dia acontece com muitas raparigas simpáticas, não são depravadas nem assassinas. E, por isso, sou filho de uma cadela! Seja! Estou-me nas tintas para o epíteto! Têm-me brindado com ele pessoas de todos os tamanhos e feitios…

Tem ideias sobre independência. É corrente ouvir-lhe:
Não tente impor-me regras. Se eu me encarregar do caso, não haverá regra alguma. Por outro lado, se me derem cabo do canastro, basta que ponha uma simples rosa vermelha na minha campa… embora eu não goste de flores cortadas. Prefiro crescer. Aceito uma de si, porque vejo que é um tipo de carácter.

Solteiro, vive solitárío, embora tivesse recebido uma proposta de casarnento de Linda Loring, filha de um magnata, em “The Long Goodbye”, repetida em “Playback”, proposta que viria a aceitar em “The Poodle Spring Story” uma novela inacabada, e nunca publicada, dada a morte do autor.
Não é um caçador de presumíveis criminosos, nem sequer juiz da conduta dos outros, limita-se a cumprir um trabalho encomendado, se bem que, com o sentido ético e paixão pela verdade, por vezes acabe por ajudar quem está encarregado de perseguir.
A sua transbordante humanidade converte-o num personagem vibrante e real, um dos muitos idealistas fracassados que circulam pela vida, anónimos e desconhecidos. Mas não é um homem triste, pelo contrário, faz a sua vida, desenvolto, activo e mordaz. É um tanto sentimental, isso é verdade, um romântico que não se importa de o confessar:
Sou um romântico, Bernie. Cada vez que oiço gritos de noite, vou ver o que se passa. E não é assim que se faz dinheiro. As pessoas de juízo fecham as janelas, põem a telefonia mais alta, ou metem-se no carro e desaparecem o mais cedo possível. Nada de se meterem nos problemas dos outros isso só traz sarilhos. A última vez que vi Terry Lennox, bebemos juntos uma chávena de café que eu fiz, e fumámos um cigarro. Quando soube que ele tinha morrido, fui até à cozinha e fiz café, enchi uma chávena por ele, e acendi-lhe um cigarro. Quando o café arrefeceu e o cigarro se apagou, dei-lhe as boas noites. Não é assim que se faz dinheiro.

Tem uma só palavra, e uma regra inultrapassável em relação aos seus clientes:
Contratar um indivíduo da minha profissão não é o mesmo que contratar um lavador de janelas, mostra-lhe 8 vidraças e dizer-lhe:— Lave-as, e está tudo feito. Quem nos contrata não sabe, nem imagina sequer, o que temos de fazer para cumprir as missões de que nos encarregam. A nossa maneira, trabalhamos, fazemos o possível por proteger o cliente, e às vezes desrespeitamos algumas regras, mas sempre em favor de quem paga a nossa diária. O cliente está primeiro do que tudo, a não ser que seja patife. Mesmo assim, limitamo-nos a devolver a missão à procedência e a calar a boca.

Aparte o sentido violento e irónico das palavras que usa comummente, o gosto por bebidas fortes, com especial predilecção pelo gimlet, a que o liga uma lembrança algo sentimental, o desprezo pelo mundo criminal, que se esconde no mais alto nível entre a classe privilegiada, no fundo, Marlowe é um homem pacato. Usa armas e sabe servir-se delas, mas pouco as utiliza, e tem prazer na prática solitária do jogo do xadrez, como solitário que é. De facto, este jogo serve-lhe como um desabafo interior:
Tirei o tabuleiro de xadrez e dispus as pedras para fazer um problema chamado “A Esfinge”. De vez em quando, se estou suficientemente mal disposto, lembro-me de “A Esfinge” e procuro outra maneira de resolver a partida. É uma maneira pacata de enlouquecer. Não se chega a gritar, mas quase.

Tudo o faz classificar, pois como um homem inteligente, sensível, e generoso.
Não se tenha, por outro lado, que o seu individualismo e desprezo pela sociedade, seja de índole política. Segundo Chandler, “Marlowe tem tanta consciência social como um cavalo, o que tem é uma consciência pessoal, o que é muito diferente”. E acrescenta: “A Marlowe pouco lhe importa quem é o Presidente”. E identificando-se a Marlowe: “A mim também, pois sei o que é um político”.
No terreno da sua profissão, e só nele, o seu êxito pessoal é insuperável, permitindo-lhe chegar ao fundo da verdade, qualquer que seja o uso que essa verdade tenha em definitivo.
Para Chandler “se houvesse bastantes homens como Marlowe, o mundo seria um lugar muito seguro e em que se poderia viver sem ser demasiado aborrecido para valer a pena habitá-lo”.
Duro, inteligente, generoso, como o classificámos, Marlowe não deixa de ser um fatalista:
Que importa onde descansamos depois de morrermos? Que diferença poderá haver entre um reservatório imundo e uma torre de mármore, no cimo de alta montanha? Estamos mortas, dormimos o grande sono, e essas preocupações não contam. Petróleo e água são o mesmo que vento e ar. Dormimos o sono eterno sem nos importarmos como a perversidade que nos matou nem onde caímos.


Herói ou anti-herói, romântico por excelência, menos cínico que Sam Spade, mais activo que Lew Archer, Marlowe é o terceiro lado do triângulo de ouro da novela negra.
Com lucidez, paixão e ironia, vive uma existência perigosa numa sociedade corrupta, com aroma a podridão e morte.
Protagoniza sete romances, já referidos: “The Big Sleep” (1939), “Farewell my Lovely” (1940), “The High Window” (1942), “The Lady in the Lake” (1943), “The Litle Sister” (1949), “The Long Goodbye” (1953) e “Playback” (1958).
Originalmente, protagoniza apenas um conto “ThePencil”, igualmente publicado como “Marlowe takes on Lhe Syndicate” e “Wrong Pigeon”e ainda “Philip Marlowe's Last Case”, muito embora, em reedições posteriores ao aparecimento de Marlowe, alguns dos contos inicialmente escritos com outros personagens, tenham sido trocados a favor de Marlowe — o aproveitamento da fama.
A crítica favorece “The Long Goodbye” como a obra-mestra de Chandler, e a que melhor define Marlowe, seguindo-se-lhe "Farewell my Lovely".



TEMA — OPINIÃO DOS OUTROS — CRIME IMPUNE
De Teles de Menezes
Num sentido profundo, que se prende com a visão global da realidade americana do pós-New Deal e, em particular, depois de um tempo que naqueles anos se conclui e que viveu, no debate cultural e ideológico, uma exigência de integração criticamente positiva entre literatura e sociedade, no universo romanesco de Raymond Chandler as regras do jogo estão feitas, como no desenho geométrico de um tabuleiro de xadrez, a acção é um movimento forçado, e precisamente por isso, por mais paradoxal que possa parecer, é a ausência de móbil, um impulso e como que uma incongruência do sentimento a verdade que o investigador Marlowe, em última instância, desvenda.
Em The Long Goodbye, por exemplo, Terry Lennox será no final aquele “pobre diabo” que desde o início foi, simultaneamente vítima e promotor da intriga. Imotivada e excessiva é a relação céptica e desiludida de Marlowe com a realidade e com a figura colorida da própria imaginação. Este logro procurado é o verdadeiro fim da busca, i.e., que literalmente a faz divagar e concrescer sobre si mesma, e por fim o melancólico legado da aventura, aquilo que resta e não encaixa, ou melhor retorna como uma irónica e amarga equação.
Mas, o que mais conta, esta estridente nota que estabelece as formas de uma dissonância, de uma singular mescla de azedume e pranto reverbera-se na totalidade da estrutura do thriller, na qualidade e natureza do seu realismo contraditório: nisso ambiciona tornar-se o documento impiedoso da sociedade americana, a par de tanta narrativa daqueles anos, não podendo todavia registar mais de um impasse, até em relação às regras clássicas do -policial, uma expectativa implícita do seu vasto público: Marlowe, ao descobrir sempre o autor do delito, descobre também que é essa a norma e não a excepção e a partir disso que o verdadeiro crime, aquilo que serve de alicerce, em absoluto, à sociedade americana moderna permanece impune.

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