O concurso de contos promovido pela Tertúlia Policiária da Liberdade, com o apoio da Secção Policiária do jornal PÚBLICO decorre até o dia 31 de Março.
Um dos pontos do Regulamento (Clicar para consulta) do CONCURSO DE CONTOS "MANUEL CONSTANTINO" determina:
Dos trabalhos deverá obrigatoriamente constar, mas não como título, a frase da autoria de Manuel Constantino que a seguir se transcreve: "QUEM RECORDA NUNCA ESTÁ SÓ", frase que pertence ao problema policial intitulado "UM CASO A RECORDAR" de 1992.
que agora aqui recordamos...
UM CASO A RECORDAR de Manuel Constantino
(publicado
no jornal Público de 6 de Dezembro de 1992)
Há quem
afirme, convicto, que as histórias se contam em qualquer altura, os casos
verídicos relatam-se quando acontecem. No primeiro é a invenção que surge em
qualquer momento, no segundo a realidade presente. Sem discutir a coerência do
exposto, ninguém duvide da veracidade do presente relato: respeitem-se as
recordações… Quem recorda nunca está só.
Comecei pelos
problemas ou enigmas policiários, acabei como elemento da Judiciária, após um
curso universitário e a passagem pela vida militar. Não me estava a sair nada
mal. A prática objectiva e consciente, o entusiasmo e a intuição postos nos
casos que me saíam – como se de um problema policial ficcionado se tratasse –
acabaram por chamar a atenção dos superiores, determinando promoções e
respeito. Em todas as circunstâncias, dar o melhor é um lema que sempre
resulta: nem que seja para satisfação própria.
Naquele tempo,
início do ano de 1947, algures para os lados de Sesimbra, o local pouco
importa, uma moradia isolada, bem tratada… Quando chegamos, a GNR fazia guarda.
Ninguém se aproximara, o que se justificava, aliás, pela localização.
O espectáculo
que se me deparou não era bonito, não senhor. O corpo era algo horrível de se
observar: de costas, a pele extremamente pálida, um branco pálido pouco comum,
mãos abertas, de dedos em leque, a parte superior do rosto, do nariz para cima,
parte da cabeça e cabelos, era carne dilacerada à mistura com sangue e o escuro
da pólvora; dentes níveos, cerrados num rictos dir-se-ia diabólico, lábios
afastados e franzidos, como se um sorriso de morte os aflorasse… Uma camisa um
pouco larga, com monograma H.H., calças vulgares, o pé direito descalço, o dedo
mínimo ligeiramente arranhado. O sapato parecia ter sido atirado descuidadamente
para junto da varanda. Aos pés da vítima uma espingarda de cano único, calibre
12, de cuja câmara extraí e voltei a colocar um cartucho recentemente detonado,
sem que os meus dedos deixassem ou apagassem qualquer indício e sem alterar igualmente
a posição da arma.
O cesto junto
da secretária continha papéis rasgados, contas sem importância para o caso,
restos de cartas sem interesse, duas cartas meio rasgadas que a paciência me
ajudou a reconstituir, assinadas por “Monte”, nas quais se exigia elevadas
quantias que coincidiam com os talões dos cheques de uma caderneta encontrada
no cofre aberto, constatando-se, por consulta ao banco, que haviam sido
levantados sem possibilidade de identificação do detentor, já que o gerente
contactara telefonicamente o depositante que, prontamente, confirmara a ordem
de pagamento.
Descobri,
caída debaixo da secretária, uma folha solta de passaporte; ainda que mutilada,
continha a fotografia, nome e naturalidade de Hans Hentschel, tendo-me sido
impossível descortinar em qualquer parte o resto deste importante documento.
O cofre
continha vários documentos sem valor, moedas e notas várias de pouca
importância, um envelope de grande formato contendo a foto de um oficial alemão
(a vítima) ostentando diversas condecorações e datado de 1942.
Ninguém
presenciara directamente a tragédia. Os dados mais consistentes foram
fornecidos pelo antigo proprietário da maioria, o sr. Joaquim Mata, cujo
depoimento encerra uma estranha história. Disse que por volta de 1944, sem
dinheiro e sem família e com idade a pedir descanso, vendera a propriedade, por
intermédio de um procurador, ao sr. Hentschel, ficando a habitar um pavilhão do
jardim, que mobilara para esse fim, conforma escritura lavrada no notário. O
novo proprietário era um indivíduo pouco sociável, nunca saía e raras vezes lhe
falara, se bem falasse português com facilidade. Um criado, também alemão,
fazia todo o serviço caseiro, bem como as compras necessárias no exterior. Este
faleceu em Outubro do ano anterior e, ele, Mata, cegara pouco depois. A sua
cegueira era irreparável e aguardada conforme informação médica anterior. Os
primeiros tempos foram horríveis de suportar, sem um só gesto de ajuda do
vizinho.
Valeu-lhe
posteriormente a solicitude do novo criado, Armando Ricardo, um homem acessível
que a justiça atirara para a prisão durante quinze anos e que aceitara o
emprego poucos dias após a libertação, exactamente pelo isolamento do local.
Não se mostrara receptível ao contacto público. O patrão proibira-o
terminantemente de lhe falar ao segundo dia da sua chegada e vigiava o
cumprimento dessa proibição, pressentia ele. Nada mais sabia da sua vida,
embora Armando encontrasse maneira de lhe deixar à porta o indispensável ao
sustento que, em regra, pedia telefonicamente.
Hentschel
mostrava-se cada dia mais rabugento, verdadeiramente intratável. Ouvia-o
passear no jardim dia e noite, atirando pontapés a tudo o que se lhe deparasse
no caminho, entregue ao terrível vício de mascar tabaco continuamente. Tratava
o novo criado por “Ich” e seguia-o com sonoras gargalhadas. Resmungava
vinganças, em voz surda, para si próprio, falava em “Monte”, ou “Morte”, em
“chantagem”, ria como um louco, dizia-se “diante de um espelho”, repetia a
frase e ria, ria muito. Chegara a temê-lo, principalmente quando se punha a
gritar em “estrangeiro”!
Naquele dia
ouvira-o chamar por Armando repetidamente. Não sabia se o encontrara, mas a
meio do dia ouvira um tiro abafado. Tudo estava num silêncio profundo. Receando
qualquer anormalidade ou por uma espécie de pressentimento, dirigira-se,
tacteando, à casa. Não obtivera resposta aos seus chamamentos de quem quer que
fosse. O silêncio assustara-o, voltara para o pavilhão e telefonara. E terminara:
– Oh!
Armando deve ter abalado ontem à noite, farto desta vida, com toda a certeza!
Ainda bem que o fez porque, apesar de não o conhecer bem, pressentia que era um
homem bom que pagara à sociedade o seu crime, fosse ele qual fosse.
Hentschel é um
tirano.
É tudo.
Mesmo antes de
obter a confirmação que as impressões digitais encontradas na arma bem oleada
eram exclusivamente da vítima – arma, aliás, averbada em seu nome –, tudo
indicava que fora disparada com o dedo mínimo do pé descalço; que os pingos de
sangue encontrados nos sapatos eram igualmente da vítima, bem como todas as
impressões digitais encontradas no cofre. Antes de confirmar tudo isso, eu
tinha formado uma teoria que reduzi a relatório e, afinal, se mostrara
correcta.
O problema que
se punha era de vastas hipóteses: admitir o suicídio como tudo indicava; o
homicídio perpetrado pelo desaparecido Armando, farto do alemão ou por roubo;
assalto por pessoa ou pessoas desconhecidas ou pelo “chantagista”, nos dois
últimos casos disfarçando o crime, etc.…
Qual a opinião
dos meus queridos amigos e leitores, e porquê?
Pensando bem,
excluindo todo o raciocínio e encaixe dos vários detalhes, se a polícia tivesse
em princípio procedido a uma elementar operação técnica, teria solucionado todo
o trama.
Qual era essa operação?
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