Retomamos hoje as Recordações Holmesianas, interrompidas
devido a problemas técnicos entretanto resolvidos.
Recordações Holmesianas,
um trabalho da autoria de M. Constantino com publicação na 1ª semana do mês, sempre que possível, onde cada bloco
inclui um tema base e um ou dois pastiches
com ligação ao assunto abordado.
As Recordações Holmesianas já publicadas podem ser consultadas através
da respectiva etiqueta ou dos seguintes links:
RECORDAÇÕES HOLMESIANAS (5 - 1ª
PARTE)
5 — DESPORTO E CULTURA EM
SHERLOCK HOLMES
Considerando
que a saga das Aventuras de Sherlock Holmes só se concretizaram na sua
maioridade, praticamente com a sua declaração de “sou um detective de
consulta”, não é expectante que aborde a juventude. Este sido um trabalho árduo
dos diversos e excelentes biógrafos que, sem o apoio do canon, têm criado uma vida própria ao personagem desde o nascimento
até à morte.
Cientificamente
o Professor Mortimer define Holmes como um homem viril, dotado de um crânio
dolicocéfalo e grande desenvolvimento supra-orbital. De facto era um homem
enérgico, activo, dotado de uma vitalidade e força fora do comum… podia
facilmente endireitar um atiçador de ferro que fora encurvado por outra força
de músculos. Tinha uma rigorosa preparação atlética, se bem que não
considerasse o esforço físico indispensável, porém, se necessário, era capaz de
desenvolvê-lo em extremo. Para tal contribuía, certamente, um sóbrio regime
alimentar e hábitos simples que se aproximavam da austeridade espartana.
Desportivamente
não se interessava por praticar “desporto pelo desporto”, pelo menos em termos
colectivos ou de equipa, tão importante nos ideais victorianos sobre educação e
desenvolvimento de carácter, optava por desportos de características
individuais em que o cérebro tivesse ocasião de interferir. Lembra Nick
Rennison em “A Biography of Sherlock Holmes”, que o boxe e a esgrima, dois
desportos referenciados por Watson como sendo “especialidades de Holmes, são
actividades para o individualismo e o egoísmo”. Também o jogo do pau, ou antes
da bengala, tinha a sua preferência.
Chegou
a ser muito bom no boxe, se considerarmos a avaliação de um entendido, no texto
de “O Signo dos Quatro”:
— Está a proceder muito mal,
MacMurdo! — disse ele. — Respondo por eles, e é quanto lhe basta. Veio uma
senhora connosco e não pode ficar à espera na rua, a esta hora da noite.
— Sinto muito, Sr. Thaddeus —
teimou o porteiro. — Podem ser seus amigos, mas não serem amigos do patrão. Ele
paga-me muito bem para eu cumprir a minha obrigação, e a obrigação é esta. Não
conheço nenhum dos seus amigos.
— Conhece, sim, MacMurdo —
exclamou Sherlock Holmes. — Creio que você ainda não me esqueceu. Não se lembra
do amador que, certa noite Há quatro anos, disputou três rounds consigo no
Alison, em seu benefício?
— Senhor Sherlock Holmes? —
trovejou o pugilista. — Como é que não o reconheci? Se o senhor tivesse
avançado com um daqueles seus golpes de raspão, tê-lo-ia reconhecido
imediatamente. O senhor desperdiça uma grande capacidade! Se se tivesse mantido
no boxe, quem sabe o lugar que hoje ocuparia.
— Está a ver, Watson? Se tudo
me falhar, ainda me resta uma das profissões científicas — ironizou Holmes. —
Estou certo que este nosso amigo não vai nos deixar ao relento.
A
prática de esgrima — segundo Rennison — deve-se a Holmes pai, que contratou um
instrutor, Theodore Dorrington, que se deslocava para ensinar Sherlock Holmes,
e foi através daquele, que contava já sessenta e muitos anos, que entrou em
contacto com a grande tradição da esgrima europeia. Dorrington encontrou em
Holmes um pupilo receptivo às estocadas tradicionais com a espada e o sabre,
bem como os exercícios com os paus de quase um metro (que eram usados nos
treinos. A esgrima como sabemos através da leitura de “A Tragédia do Glória
Scott”, era um dos passatempos de que Holmes continuava a gostar. O treino com
paus rendeu, mais de trinta anos depois, fortes dividendos a Holmes, porquanto
na “Aventura do Cliente Ilustre” foi emboscado por dois profissionais armados
de cajados a mando do Barão Gruner, conseguindo resistir-lhes, ainda que
ferido. Ele próprio, Holmes desvaloriza o facto:
— Como sabe manejo bem a
bengala e pude aparar a maior parte dos golpes. o segundo homem é que me deu
trabalho!
Em “A
Aventura do Problema Final” escapa a dois atentados e, é Holmes quem o diz:
— Quando vinha para aqui fui
atacado no caminho, à cacetada, por um patife qualquer. Consegui dominá-lo e a
polícia já o tem a ferros.
Em
termos de desporto somente referenciamos os essenciais para Holmes, também porque
não existem outros que se adaptem por virtude à sua incurável insociabilidade.
Daqueles que se projectaram no futuro do seu trabalho de investigação, acresce
o baritsu,
misteriosa arte marcial japonesa (que nem os nipónicos conhecem), que mais de
uma vez o livraram de apuros, inclusivamente no seu duelo de morte co Moriarty,
à beira do precipício das Cataratas de Reichenbach.
Fonte: http://www.bartitsu.org/ |
Quanto
aos aspectos culturais, sabemos obviamente que frequentou a universidade, onde
esteve dois anos. Seguramente que nunca fez um curso sistemático de medicina,
estudava sobre métodos de um modo excêntrico, mas acumulou uma série de
conhecimentos pouco vulgares.
Na
primeira narrativa “Um Estudo em Vermelho” dos muitos que John H. Watson viria
a publicar sobre Sherlock Holmes, arrisca-se a listar e classificar os
conhecimentos do seu companheiro, aliás bem negativa, por extremamente
permatura. Escreve:
Literatura:
zero.
Filosofia:
zero.
Astronomia:
zero.
Política:
escassos.
Botânica:
variáveis. Conhece a fundo a beladona, e o ópio e os venenos em geral. Não
sabe nada sobre jardinagem e horticultura.
Geologia:
práticos, mas limitados. Reconhece à primeira vista os diversos tipos de
solo. No regresso dos seus passeios, mostra-me manchas nas calças, e diz,
pela sua cor e consistência, em que parte de Londres as apanhou.
Química:
profundos.
Anatomia:
exatos, mas pouco sistemáticos.
Literatura
sensacionalista: imensos. Parece conhecer todos os horrores perpetrados
neste século.
Toca bem o
violino.
É habilíssimo
em boxe, esgrima e bastão.
Tem um bom
conhecimento prático das Leis inglesas.
Chegado
a este ponto da lista perdeu o ânimo e atirou-a para o fogão. Impressionou-o o
facto de reconhecer, no início com algumas reservas, o poder dedutivo do amigo
e companheiro e a sua aparente falta de cultura geral. O ensaio dos
conhecimentos culturais de Watson não passou despercebido a Holmes que no
decorrer de “As Cinco Sementes de Laranja”, enquanto divagava sobre o
raciocínio, não perdeu a ocasião de o assinalar a Watson:
— O raciocinador ideal — considerou
—, depois de observar um simples facto em todas as suas facetas, deduz não só a
corrente dos acontecimentos, como também todos os resultados sequentes. Assim
como Cuvier podia descrever correctamente um anima, pela análise de um simples
osso, assim também o observador, que compreendeu perfeitamente um elo numa
série de incidentes, deve ser capaz de prever todos os outros pontos relativos
ao caso, tanto antes, como depois. Ainda não alcançamos os resultados que só
com o raciocínio poderão ser atingidos. Problemas que têm embaraçado quem
procurava a sua solução, por meio dos sentidos, puderam ser resolvidos
simplesmente pelo estudo e pela reflexão. Para praticar a arte de discernir até
o mais alto grau, é necessário que o raciocinador possa utilizar-se de todos os
factos que conhece; isto, em si, implica que se deve possuir um conhecimento de
tudo o que possa ser útil ao seu trabalho, o qual, mesmo nestes dias de
educação livre e enciclopédica, é raro". Tenho procurado obter esses
conhecimentos; todavia, se não me engano, você uma vez, nos primeiros dias da
nossa amizade, definiu os meus limites de sabedoria de um modo muito preciso.
— Sim, — confirmei, rindo — era
um documento singular. Filosofia, Astronomia e Política estavam assinalados com
um zero. Botânica, varável; Geologia, profunda, quanto às manchas de lama de
qualquer região dentro de 50 milhas da cidade. Química, excêntrica; Anatomia,
sem sistema fixo; Literatura à “sensation” e anotações de crimes, sem igual;
violinista, pugilista, esgrimista e advogado. Estes, segundo penso, foram os
principais resultados da minha análise .
Holmes fez uma careta bem
humorada.
— Bem, agora sei, como disse
naquela ocasião, que devemos conservar o cérebro em actividade, com todo o equipamento
de que pode precisar, e o resto pode ficar na biblioteca onde irá procura-lo
Parece
conclusivo pela continuada leitura da “saga”, que Holmes tem uma cultura
estruturada, talvez muito sua — quase certo bastante para os interesses da sua
profissão— mas sua.
Fala
várias línguas — segundo W. S. Baring-Gould, obra citada, “consegue falar seis línguas”
— pode não se interessar nada por Thomas Carlyle (1795-1881), historiador,
filósofo e crítico social, por sinal seu contemporâneo, por “não estar para aí
virado”, com grande indignação de Watson, ou não ter nenhuns conhecimentos de
astronomia, mas que lhe interessa a ele, Holmes, o Sistema Solar? Que lhe interessa
que “ a Terra ande em volta do Sol e não em volta da Lua?”. Isto nada adiantava,
nem para ele, nem para o que fazia. Tal não impedia que citasse Goethe, Hafiz,
Flaubert, conhecesse George Meredith, o poeta, lesse Petrarca e possuísse na
sua casa de Shuth Down, no Sussex para onde se afastou ao terminar a sua vida
pública, um sótão repleto de livros.
(CONTINUA)
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