11 de julho de 2013

RECORDAÇÕES HOLMESIANAS


Retomamos hoje as Recordações Holmesianas, interrompidas devido a problemas técnicos entretanto resolvidos.
Recordações Holmesianas, um trabalho da autoria de M. Constantino com publicação na 1ª semana do mês, sempre que possível, onde cada bloco inclui um tema base e um ou dois pastiches com ligação ao assunto abordado.
As Recordações Holmesianas já publicadas podem ser consultadas através da respectiva etiqueta ou dos seguintes links:
      1.      INTRODUÇÃO e PERFIL (Clicar)
 
RECORDAÇÕES HOLMESIANAS (5 - 1ª PARTE)
5 — DESPORTO E CULTURA EM SHERLOCK HOLMES
Considerando que a saga das Aventuras de Sherlock Holmes só se concretizaram na sua maioridade, praticamente com a sua declaração de “sou um detective de consulta”, não é expectante que aborde a juventude. Este sido um trabalho árduo dos diversos e excelentes biógrafos que, sem o apoio do canon, têm criado uma vida própria ao personagem desde o nascimento até à morte.
Cientificamente o Professor Mortimer define Holmes como um homem viril, dotado de um crânio dolicocéfalo e grande desenvolvimento supra-orbital. De facto era um homem enérgico, activo, dotado de uma vitalidade e força fora do comum… podia facilmente endireitar um atiçador de ferro que fora encurvado por outra força de músculos. Tinha uma rigorosa preparação atlética, se bem que não considerasse o esforço físico indispensável, porém, se necessário, era capaz de desenvolvê-lo em extremo. Para tal contribuía, certamente, um sóbrio regime alimentar e hábitos simples que se aproximavam da austeridade espartana.
Desportivamente não se interessava por praticar “desporto pelo desporto”, pelo menos em termos colectivos ou de equipa, tão importante nos ideais victorianos sobre educação e desenvolvimento de carácter, optava por desportos de características individuais em que o cérebro tivesse ocasião de interferir. Lembra Nick Rennison em “A Biography of Sherlock Holmes”, que o boxe e a esgrima, dois desportos referenciados por Watson como sendo “especialidades de Holmes, são actividades para o individualismo e o egoísmo”. Também o jogo do pau, ou antes da bengala, tinha a sua preferência.
Chegou a ser muito bom no boxe, se considerarmos a avaliação de um entendido, no texto de “O Signo dos Quatro”:
— Está a proceder muito mal, MacMurdo! — disse ele. — Respondo por eles, e é quanto lhe basta. Veio uma senhora connosco e não pode ficar à espera na rua, a esta hora da noite.
— Sinto muito, Sr. Thaddeus — teimou o porteiro. — Podem ser seus amigos, mas não serem amigos do patrão. Ele paga-me muito bem para eu cumprir a minha obrigação, e a obrigação é esta. Não conheço nenhum dos seus amigos.
— Conhece, sim, MacMurdo — exclamou Sherlock Holmes. — Creio que você ainda não me esqueceu. Não se lembra do amador que, certa noite Há quatro anos, disputou três rounds consigo no Alison, em seu benefício?
— Senhor Sherlock Holmes? — trovejou o pugilista. — Como é que não o reconheci? Se o senhor tivesse avançado com um daqueles seus golpes de raspão, tê-lo-ia reconhecido imediatamente. O senhor desperdiça uma grande capacidade! Se se tivesse mantido no boxe, quem sabe o lugar que hoje ocuparia.
— Está a ver, Watson? Se tudo me falhar, ainda me resta uma das profissões científicas — ironizou Holmes. — Estou certo que este nosso amigo não vai nos deixar ao relento.
A prática de esgrima — segundo Rennison — deve-se a Holmes pai, que contratou um instrutor, Theodore Dorrington, que se deslocava para ensinar Sherlock Holmes, e foi através daquele, que contava já sessenta e muitos anos, que entrou em contacto com a grande tradição da esgrima europeia. Dorrington encontrou em Holmes um pupilo receptivo às estocadas tradicionais com a espada e o sabre, bem como os exercícios com os paus de quase um metro (que eram usados nos treinos. A esgrima como sabemos através da leitura de “A Tragédia do Glória Scott”, era um dos passatempos de que Holmes continuava a gostar. O treino com paus rendeu, mais de trinta anos depois, fortes dividendos a Holmes, porquanto na “Aventura do Cliente Ilustre” foi emboscado por dois profissionais armados de cajados a mando do Barão Gruner, conseguindo resistir-lhes, ainda que ferido. Ele próprio, Holmes desvaloriza o facto:
— Como sabe manejo bem a bengala e pude aparar a maior parte dos golpes. o segundo homem é que me deu trabalho!
Em “A Aventura do Problema Final” escapa a dois atentados e, é Holmes quem o diz:
— Quando vinha para aqui fui atacado no caminho, à cacetada, por um patife qualquer. Consegui dominá-lo e a polícia já o tem a ferros.
Em termos de desporto somente referenciamos os essenciais para Holmes, também porque não existem outros que se adaptem por virtude à sua incurável insociabilidade. Daqueles que se projectaram no futuro do seu trabalho de investigação, acresce o baritsu, misteriosa arte marcial japonesa (que nem os nipónicos conhecem), que mais de uma vez o livraram de apuros, inclusivamente no seu duelo de morte co Moriarty, à beira do precipício das Cataratas de Reichenbach.
 
Fonte: http://www.bartitsu.org/
 
Quanto aos aspectos culturais, sabemos obviamente que frequentou a universidade, onde esteve dois anos. Seguramente que nunca fez um curso sistemático de medicina, estudava sobre métodos de um modo excêntrico, mas acumulou uma série de conhecimentos pouco vulgares.
Na primeira narrativa “Um Estudo em Vermelho” dos muitos que John H. Watson viria a publicar sobre Sherlock Holmes, arrisca-se a listar e classificar os conhecimentos do seu companheiro, aliás bem negativa, por extremamente permatura. Escreve:
    Literatura: zero.
    Filosofia: zero.
    Astronomia: zero.
    Política: escassos.
    Botânica: variáveis. Conhece a fundo a beladona, e o ópio e os venenos em geral. Não sabe nada sobre jardinagem e horticultura.
    Geologia: práticos, mas limitados. Reconhece à primeira vista os diversos tipos de solo. No regresso dos seus passeios, mostra-me manchas nas calças, e diz, pela sua cor e consistência, em que parte de Londres as apanhou.
    Química: profundos.
    Anatomia: exatos, mas pouco sistemáticos.
    Literatura sensacionalista: imensos. Parece conhecer todos os horrores perpetrados neste século.
    Toca bem o violino.
    É habilíssimo em boxe, esgrima e bastão.
    Tem um bom conhecimento prático das Leis inglesas.
Chegado a este ponto da lista perdeu o ânimo e atirou-a para o fogão. Impressionou-o o facto de reconhecer, no início com algumas reservas, o poder dedutivo do amigo e companheiro e a sua aparente falta de cultura geral. O ensaio dos conhecimentos culturais de Watson não passou despercebido a Holmes que no decorrer de “As Cinco Sementes de Laranja”, enquanto divagava sobre o raciocínio, não perdeu a ocasião de o assinalar a Watson:
— O raciocinador ideal — considerou —, depois de observar um simples facto em todas as suas facetas, deduz não só a corrente dos acontecimentos, como também todos os resultados sequentes. Assim como Cuvier podia descrever correctamente um anima, pela análise de um simples osso, assim também o observador, que compreendeu perfeitamente um elo numa série de incidentes, deve ser capaz de prever todos os outros pontos relativos ao caso, tanto antes, como depois. Ainda não alcançamos os resultados que só com o raciocínio poderão ser atingidos. Problemas que têm embaraçado quem procurava a sua solução, por meio dos sentidos, puderam ser resolvidos simplesmente pelo estudo e pela reflexão. Para praticar a arte de discernir até o mais alto grau, é necessário que o raciocinador possa utilizar-se de todos os factos que conhece; isto, em si, implica que se deve possuir um conhecimento de tudo o que possa ser útil ao seu trabalho, o qual, mesmo nestes dias de educação livre e enciclopédica, é raro". Tenho procurado obter esses conhecimentos; todavia, se não me engano, você uma vez, nos primeiros dias da nossa amizade, definiu os meus limites de sabedoria de um modo muito preciso.
— Sim, — confirmei, rindo — era um documento singular. Filosofia, Astronomia e Política estavam assinalados com um zero. Botânica, varável; Geologia, profunda, quanto às manchas de lama de qualquer região dentro de 50 milhas da cidade. Química, excêntrica; Anatomia, sem sistema fixo; Literatura à “sensation” e anotações de crimes, sem igual; violinista, pugilista, esgrimista e advogado. Estes, segundo penso, foram os principais resultados da minha análise .
Holmes fez uma careta bem humorada.
— Bem, agora sei, como disse naquela ocasião, que devemos conservar o cérebro em actividade, com todo o equipamento de que pode precisar, e o resto pode ficar na biblioteca onde irá procura-lo
 
Parece conclusivo pela continuada leitura da “saga”, que Holmes tem uma cultura estruturada, talvez muito sua — quase certo bastante para os interesses da sua profissão— mas sua.
Fala várias línguas — segundo W. S. Baring-Gould, obra citada, “consegue falar seis línguas” — pode não se interessar nada por Thomas Carlyle (1795-1881), historiador, filósofo e crítico social, por sinal seu contemporâneo, por “não estar para aí virado”, com grande indignação de Watson, ou não ter nenhuns conhecimentos de astronomia, mas que lhe interessa a ele, Holmes, o Sistema Solar? Que lhe interessa que “ a Terra ande em volta do Sol e não em volta da Lua?”. Isto nada adiantava, nem para ele, nem para o que fazia. Tal não impedia que citasse Goethe, Hafiz, Flaubert, conhecesse George Meredith, o poeta, lesse Petrarca e possuísse na sua casa de Shuth Down, no Sussex para onde se afastou ao terminar a sua vida pública, um sótão repleto de livros.

(CONTINUA)

 

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