27 de março de 2016

11º EPISÓDIO - O CARNAVAL DO CABO JEREMIAS

Nos velhos anos de 1955 o Carnaval ainda não era um negócio e cada um mascarava-se como entendia.
Os números mais tradicionais:
O XEXÉ – indivíduo de fato séc. XVII, chapéu de dois bicos, meia alta, jaqueta vermelha. Na mão um chifre e na outra um facalhão de madeira pintada. Uma barriga enorme para atacar os transeuntes à barrigada. Este personagem desapareceu de cena nos anos seguintes. Era um personagem castiço.
Mas números populares mesmo, era a troca de trajes. Os homens mascaravam-se de matrafonas e as mulheres de homem.
De acordo com a lei e a ordem em vigor, era proibido tapar as caras com máscaras e os homens teriam que fardar de calças e as mulheres de saias.
Como no Carnaval − dizia-se, ninguém levava a mal, excepto o cabo Jeremias e seus iguais que tinham trabalho redobrado correndo à chanfalhada e mesmo prendendo os prevaricadores.  
O cabo Jeremias não tinha descanso.
Pela Rua Barão de Sabrosa abaixo vinham os patuscos personagens: um homem mascarado de mulher, pintado com mau gosto e exagero nas tintas, saltos altos de difícil equilíbrio uma barriga enorme a fingir de grávida, empurrando um carrinho de bebé.
Dentro dele com uma touca e chucha ao pescoço, um enorme biberão na boca com vinho tinto que alimentava o matulão que encolhido seguia encaracolado dentro do carrinho. De vez em quando fazia birra e a “mamã” chegava-lhe à boca o biberão que ele bebia sôfrego, ficando rapidamente etilizado e incapaz de sair do berço de seu próprio pé.
Atrás deles seguia de chanfalho na mão o cabo Jeremias e depois de breve corrida em que a “mamã” perdia os sapatos de senhora pelo caminho, lá os levava até à esquadra para despachar o auto e deixá-los uma noite no calabouço para evaporarem os vapores do álcool.
Na terça-feira de Carnaval não havia mãos a medir.
Era o tempo das serpentinas nas janelas e das batalhas entre rapazes na rua e raparigas nas janelas atirando saquinhos contendo feijões e outras leguminosas.
Atirava-se ovos e farinha que deixavam às vezes as moças em desespero e muitas vezes as brincadeiras eram peadas e inconvenientes pelo que pouco a pouco foram-se proibindo até hoje.
O Carnaval selvagem, popular e genuíno, por vezes abrutalhado mas que imanava do povo. Anos depois alguém se lembrou de transformar em negócio e tudo mudou.
O Carnaval ainda passou para os cinemas e hoje tem localidades que exploram a folia metendo em desfile mais nuas que vestidas as brasileiras da indústria hoteleira que vão para ali fazer umas horas extra e pôr o material à venda, quem sabe apareça algum construtor civil que entre no negócio…


Mudam-se os tempos mudam-se as vontades.

A. Raposo

20 de março de 2016

10º EPISÓDIO - UM CASO BICUDO DO CABO JEREMIAS



Talvez se possa dizer com mais propriedade que este era um caso de dois bicos.
Segundo se apercebia logo à primeira vista o cabo Jeremias estava a dirimir assunto de marido enganado.
Na Picheleira era o que mais havia era casos desses. Duravam até ao dia em que o marido, desconfiado ou mesmo avisado por algum amigo mais chegado, armava uma espera.
O resultado era uma cena de facada ou de pancadaria, na falta de talheres. No pátio, a algazarra subia de tom e o mulherio vinha todo às portas dar opiniões.
Aquela cena não tinha nada de especial. O marido chegara a casa umas horas antes do devido e apanhara na cama a patroa com o carteiro, e a pasta da correspondência.
A desculpa do carteiro é que Mariana estaria a assinar de cruz um aviso de recepção.
Como argumento esfarrapado não poderiam arranjar melhor.
O Fanan – o marido enganado saltara para o colchão e à força de punho distribuía soco ora para a patroa ora para o Firmino (o carteiro).
O carteiro mais conhecido no bairro pelo “brilhantinas” era um belo rapaz de bigodinho à Clark Gable – o grande boneco do filme “E tudo o vento levou”.
O brilhantinas tinha muita saída nas mulheres mas não aguentava duas galhetas no focinho. Sangrava pelo nariz que mais parecia Cristo crucificado.
Mariana não era uma moça muito jeitosa pois tinha um pouco de escoliose que junto ao facto de ter um nariz muito afilado lhe dava um ar de abelharuco. O que valia era o resto do corpo que me escuso de descrever não vá algum jovem imberbe ler estas linhas e entusiasmar-se nas artes de onanismo.
Certo é que a pancadaria não parava. Ora dava o Fanan ora levava o Fanan. Mariana gritava como vitela desmamada e depois entrou a vizinhança e o padeiro acabou também a dar a sua bordoada no Firmino que levava de todos e não tinha físico para responder.
A sacola da correspondência ocupava metade do quarto entre telegramas, cartas registadas e vales de correio.
Mariana com as vergonhas à mostra encolhia-se a um canto da casa, à cabeceira da cama. O quadro da última ceia que estava pendurado aos pés da cama já tinha tombado e o próprio bidé que aguardava as partes interessadas com água morninha, já levara um pontapé do “Marreco” que era o avançado centro do Penha de França que estava em casa de baixa com uma entorse.
Alguém veio cá abaixo chamar a polícia.
Jeremias subiu à cena e com o seu vozeirão anunciou:
–Vai tudo para a esquadra! Tudo à minha frente e a toque de caixa! A Menina Mariana vista qualquer coisa. Se leva tudo à mostra ainda vamos ter mais sarrabulho a descer a rua Barão de Sabrosa. Andor! 

13 de março de 2016

9º EPISÓDIO - AINDA O CASO DA VIÚVA TERESINHA


Nota Explicativa do Policiário de Bolso:
Na sequência da publicação de O Caso da Viúva Teresinha” (CICLAR), o Policiário de Bolso recebeu um testemunho que permite clarificar os acontecimentos relatados. A proveniência das informações foi devidamente comprovada através de contacto pessoal directo com a autora que autorizou também a divulgação do conteúdo do e-mail anteriormente enviado.
Ao leitor deixa-se, como sempre, a liberdade de muito bem acreditar no que quiser…

Exmos Senhores,
Sou seguidora do vosso blogue desde a primeira hora. Devo confessar que sou uma leitora compulsiva de livros policiais, vício transmitido pelo meu avô paterno, grande coleccionador dos livros da Vampiro. As histórias do cabo Jeremias prenderam-me de imediato, por motivos óbvios, que facilmente serão por vós entendidos.
Nunca pensei intervir porque sou uma pessoa bastante introvertida e não gosto de levantar ondas. No entanto, não consegui resistir ao apelo final de A. Raposo aos “indefetíveis leitores” do “Caso da Viúva Teresinha”. Apesar de ainda não ter nascido na altura acontecimentos, tive conhecimento dos mesmos porque me foram relatados por quem os viveu. Consta que o cabo Jeremias era um homem tão bem parecido e charmoso que era de conquista fácil. A viúva Teresinha viu-se ainda nova sem marido e o seu coração balançava entre o Raúl dos cabedais e o Jeremias da esquadra. Um, era solteiro e bom rapaz, mas o outro tinha a emoção do “bad boy”, do risco e da transgressão. E Teresinha andava ora com um, ora com outro, sem capacidade ou vontade para se decidir. Devia ser o eterno conflito entre a razão e o coração.
Ora acontece que na narrativa de A. Raposo é tudo verdade, mas a parte final dos torresmos é uma pura invenção posta a circular na altura para protecção dos intervenientes deste trio. Teresinha precisava de uma desculpa para meter o cabo Jeremias dentro de casa. O cabo precisava de uma desculpa para passar mais uma noite fora de casa e escapar às desconfianças da mulher. E o Raúl precisava de defender a sua própria honra. Acontece que o bem intencionado Raúl estava verdadeiramente apaixonado pela Teresinha e, como andava desconfiado, arranjou maneira de numa quarta-feira afastar de forma definitiva, o cabo de esquadra do seu objecto amoroso. Surpreendeu-os, aos dois. Teresinha estava nuinha em pêlo, Jeremias também, apenas com as ceroulas de atilhos penduradas no braço. Raúl não esteve com meias medidas, encostou a afiadíssima sovela de cortar cabedal à parte anatómica mais estimada por Jeremias e ameaçou: “Larga-a de uma vez por todas e inventa já uma história para sairmos limpos disto”. Compreende-se, uma coisa é casar com uma viúva estimada por todos, outra é casar com uma mulher demasiado estimada por vários.
Assim nasceu o mito dos torresmos mastigados por Teresinha de vela na mão. Deu-se continuidade à mentira inicial do barulho mastigatório do defunto marido e Raúl pode levar Teresinha ao altar ser dar azo a grandes falatórios. Para ele o raminho da laranjeira foi botoeira e para ela no chapeuzinho creme, porque parecia mal ir de branco, como atesta uma fotografia que tenho em meu poder.
Desculpem, é verdade, depois de tanto escrever ainda não me apresentei. O meu nome é Ana Teresa, filha de Maria Teresa e neta da genuína viúva Teresinha, que casou em segundas núpcias com o Raúl dos cabedais, uma união apadrinhada pelo (estranhamente atemorizado) cabo Jeremias.
Se A. Raposo precisar de um final feliz para esta história, eu posso apenas dar-lhe este. Terezinha e Raúl, meus avós maternos viveram felizes para sempre, nem a morte os separou porque partiram exactamente no mesmo dia.
Com os melhores cumprimentos,

Ana Teresa

6 de março de 2016

8º EPISÓDIO - O CASO DA VIÚVA TERESINHA

O cabo Jeremias apanhava na esquadra do Alto do Pina os mais disparatados visitantes carregando os mais esquizofrénicos temas.
Era preciso utilizar toda a psicologia do mundo para dominar e resolver o dia-a-dia naquela casa de doidos que era a esquadra.
Ora entrava um puto que tinha roubado ao Alfredo da Tasca um pires de jaquinzinhos fritos, ora a senhora Maria que tinha uma cadelinha que fora abalroada pelo cão do Sr. Joaquim da papelaria e o resultado era de esperar complicado.
O cabo Jeremias tudo dominava que mais parecia um treinador de futebol, de raiz popular e com má dicção em português, de nome Jesus que apareceu no mundo do jet-set uns 50 anos depois.
O mais complicado assunto foi sem dúvida o caso da viúva Teresinha que lhe deu água pela barba e alguns amargos de boca com a sua mulher.
Conta-se em poucas palavras: a viúva Teresinha (uma mulheraça que com toda a certeza ainda aguentaria alguns anos de felicidade erótica, pensamos nós que não somos grandes adivinhos neste particular) e que tinha um problema para o cabo Jeremias resolver.
Em sonhos, a viúva via o seu falecido marido a mastigar torresmos enquanto se despia para se deitar e a admoestá-la por ela andar a fazer olhinhos ao senhor  Raúl, da loja de solas e cabedais, por sinal um rapaz de bigode e cabelo às ondinhas sempre simpático para as senhoras que iam à loja adquirir atacadores para os sapatos dos respetivos esposos. Era o esquisito ruido do marido a mastigar os torresmos que a fazia acordar com o coração oprimido e o credo na boca. 
O cabo Jeremias tinha montanhas de paciência, mas um homem às vezes fraqueja apesar de se chamar Jeremias!
O marido aparecia à viúva, sempre à quarta-feira à meia-noite, exatamente na hora em que o cabo Jeremias saía de serviço. Coincidências destas só nos bons livros policiais da hoje extinta coleção Vampiro. Literatura que o cabo Jeremias desconhecia de todo, daí ter aderido à solicitação da viúva.
Contrariado, o cabo ofereceu-se, voluntariamente, para ocupar o quarto que a Dona Teresinha costumava alugar a estudantes e que estava vazio por causa das férias grandes. Era um quarto independente, amplo, cama “Quinane”, com psiché e penico dissimulado na mesinha de cabeceira, cortinados coloridos a imitar lupanar decadente do sec. XVIII.
A viúva lá conseguiu “engatar” (no bom sentido cristão) o cabo e seguiram para a rua Sabino de Sousa, a dois passos da esquadra. Por grande coincidência naquele dia era quarta-feira em todo o país.
Jeremias estava esgotado de tantas solicitações, durante as oito horas de serviço.
Mal chegou ao quarto independente da viúva Teresinha caiu na cama exausto nem dando tempo para se desenvencilhar das ceroulas de atilhos – à moda dos pescadores da Nazaré – que a sua mulher lhe oferecera pelo anos.
Caiu no sono como uma pedra. Porém, acordou sobressaltado com o ruido estranho de alguém perto dele, aparentemente a comer torresmos.
Acendeu a luz, pegou no chanfalho, e abriu a porta.
Do outro lado estava a viúva Teresinha, tal qual veio ao mundo com uma vela acesa numa mão e a comer uma mão cheia de torresmos, como se estivesse hipnotizada, com um olhar vidrado. As suas belas pupilas fixavam as ceroulas novinhas e aos quadradinhos coloridos, única peça de roupa no corpo da autoridade.
Acontece que a maioria dos nossos leitores são tementes a Deus e não “embarcam” em histórias da carochinha com laivos de literatura de Sacher-Masoch.
E nós respeitamos tal deriva.
A partir daquele dia o cabo Jeremias nunca mais foi o mesmo. Parecia que tinha visto o Diabo! Melhor: o Diabo de saias sem saias!

O que aconteceu realmente nunca se veio a saber ao certo.
Quiçá algum dos nossos indefetíveis leitores tenha encontrado saída para o beco em que o nosso bom cabo Jeremias se meteu, e se o fez merece todos os nossos encómios.
Mas os mistérios que a vida tece são às vezes tão insondáveis que um normal escritor de histórias curtas, como nós, por muito que tentemos não conseguimos até hoje construir um final feliz. É só drama e de faca e alguidar!

Não há pachorra!

A. Raposo