28 de maio de 2016

3º EPISÓDIO - O RETIRO DO QUEBRA BILHAS de A. RAPOSO

Fado do Cacilheiro


Um banco de jardim pode ser o começo de uma bela relação. O Alferes Sesinando esparramado no banco de tiras de madeira olhava embevecido Milú e seu canito Lanudo.

Pelo canto do olho fazia-lhes o retrato. Media a cena e com voz melosa para boi dormir tentou uma aproximação já mais que vista, mas de resultados certos e garantidos.

− Desculpe o meu atrevimento mas a menina Milú por acaso não mora no Bairro de Alvalade? É que a sua cara não me é estranha…

− Não, enganou-se. Moro na Avenida de Roma, ali ao pé do Hospital dos Malucos, o Júlio de Matos. Conhece?
Hospital Júlio de Matos
 Fonte: Blogue Restos de Colecção 


− Mesmo agora passei por lá, vim a pé desde o Martim Moniz, para ver como Lisboa já mudou neste 3 anos que estive fora na guerra em Angola. É uma zona muito chique!

− Lá isso é verdade! Só mora ali gente boa e simpática. Eu vivo com um construtor civil, um homem já de uma certa idade e que anda sempre por fora. Agora está em Cabo Verde a construir um “resort” de luxo. Só cá vem de dois em dois meses. Eu tenho a companhia do Lanudo. Vivo muito só!

− Está como eu. Não se queixe. A vida é assim. Mas agora me lembrei…eu ainda não me apresentei. Sou o Alferes Sesinando. Cheguei ontem no navio Niassa. Ando a ver se localizo o Retiro do Quebra Bilhas. Disseram-me que fazem lá umas iscas como não há outro restaurante em Lisboa. A menina conhece?

− Se conheço o Quebra Bilhas? Conheço lá eu outra coisa! Até já lá cantei!...

Quebra Bilhas em 2016.  Foto de Onaírda


− Não me diga. Então está já convidada para lá irmos almoçar. Mas ainda é tão cedo, a menina já andou aqui no lago nos barquinhos? É aqui tão perto. Mesmo ao lado. Podíamos dar ali um passeio. Eu remava e a menina pegava no Lanudo   

− Nem pensar. Tenho um medo do mar e depois nem sei nadar…

− Lá por isso não seja obstáculo. Acontece que o lago tem água mas dá-lhe pelos joelhos, ninguém lá morreu afogada.

−Ah. Julgava que fosse mais fundo. Nunca lá fui. Barco para mim só o cacilheiro.
Lisboa – Cova do Vapor. Praia. Sol. Calor. Verão.

− Bem então vamos dar uma voltinha e eu canto-lhe o Fado do Cacilheiro enquanto remo. Era romântico não acha?

Milú pensou um pouco e depois cedeu. Estava danadinha para dar uma voltinha acompanhada do simpático Alferes. Depois, ele cheirava tão bem. Ou seriam as flores do jardim? Ali ao lado havia um roseiral.

O encarregado dos botes indicou um azul celeste e lá entrou o alferes que deu a mão à Milú que apertava assustada o Lanzudo contra o peito.

Com duas remadas fortes do alferes o bote seguiu o seu caminho e Milú sorriu encantada. Nunca fora no bote. Era a primeira vez! E estava a gostar.
Sesinando começou a trautear o velho fado do Cacilheiro. Um êxito revisteiro.

Video: Zé Cacilheiro (José Viana)

O céu estava azul e fazia calor. A primavera já ia longe e o mês de Junho começava a aquecer o ambiente.


Milú encantada deu folga à trela e o Lanzudo vendo o espelho de água enervou-se. Começou a rabiar e saltou para a água. Milú tentou apanhá-lo e desequilibrou o barco que perigosamente balançou. O Alferes Sesinando tentou agarrar a Milú e o barco balançou ainda mais bruscamente. Em dois segundos todos estavam a boiar no lago.
Era o fim da picada!


21 de maio de 2016

2º EPISÓDIO - O RETIRO DO QUEBRA BILHAS de A. RAPOSO

Do Martim Moniz ao Campo Grande


Sesinando acordou com a boca a saber a papéis de música. Dormiu mal até às 3 da manhã.
Os quartos da pensão “Bons Sonhos” eram baratos – 15 escudos uma dormida, mas o quarto era minúsculo onde mal cabia o divã de molas e as paredes eram de tabique de madeira o que dava para se ouvir tudo o que se passava aos lados.
Estava convencido que a pensão mal dava tempo para sonhar pois as cabo-verdianas que faziam o Largo Martim Moniz entravam e saiam várias vezes e cabo-verdiano é assim, é expansivo na cama…
Sesinando não exigia mais pelos 15 paus. 
Lá pela madrugada adormeceu profundamente e agora já estava pronto para sair. Banho nem vê-lo. A pensão não tinha! Nem tampouco águas correntes  nem quentes nem frias. Era pegar ou largar. Pelo preço não se podia pedir mais. 
Divertiu-se fumar e a beber Sagres até às duas da manhã e a ouvir mornas e boleros tocados pelo ceguinhos-músicos do Bar “Bolero”. Não foi em engates.
Ainda era cedo. Havia muito tempo para a esbórnia. 
Vestiu-se e petiscou um copinho de leite na leitaria da esquina e seguiu o seu objetivo ir ver o lago dos barcos do Campo Grande e espreitar  e eventualmente almoçar no retiro do “Quebra Bilhas”.
Alguém lhe falara da casa. Com mesas de correr e um caramanchão a sombrear e refrescar o ambiente. Comida caseira e bom vinho da pipa.
Estava danadinho para comer umas iscas com elas, um prato do seu agrado e que não o via há mais de dois anos!
E lá foi o nosso alferes Sesinando a pé  agora já à civil, pela Almirante Reis acima até ao Areeiro e depois Avenida de Roma até ao Campo Grande.

Almirante Reis
Fonte: Urban Sketchers
A cidade mudara muito e a parte nova era de arquitetura moderna. O arranha-céus do Areeiro, com a sua dúzia de andares era o edifício mais alto da cidade. Matarruano que visitasse Lisboa tinha que ir espreitar o edifício e também ao Jardim Zoológico ver os animais exóticos.

Chegou ao Jardim do Campo Grande e foi ver o lago onde os pequenos botes a remos eram o prazer máximo dos namorados.


Campo Grande
Fonte: 
Urban Sketchers
Ali ficou sentado num banco de jardim a fumar e a gozar da boa vida quando de repente e sem dar por isso um cãozinho veio ladrar às suas botas. Era uma amostra de cão. Mal se via o focinho cheio de pelos bem como o corpo. Parecia um novelo de lá a ladrar-lhe aos pés. 
Afogueada atrás do canito vinha a dona. Chamando-o pelo nome e ele sem obedecer, pois embirrara com as botas do nosso alferes.
Sesinando, num golpe de rins, agarrou na trela solta e puxou-o. De seguida a dona a deitar os bofes fora chegou ao alferes e agradeceu.
− Ai, muito obrigado. Este malandro de repente foge-me e atravessa a rua. É um perigo. Não sei como lhe hei de lhe agradecer.
− Ora − disse Sesinando − não me custou nada apanhar o bichinho. Pode-me agradecer dizendo-me o seu nome?
− Milú. E o cãozinho chama-se Lanudo.
Sesinando pediu-lhe para ela descansar um bocadinho, ali no banco do jardim havia lugar para todos e sobrava espaço.
Estava-se a preparar um começo de uma bela amizade. Quase ia apostar.


(fim do 2º episódio) 

14 de maio de 2016

1º EPISÓDIO - O RETIRO DO QUEBRA-BILHAS de A. RAPOSO



(Histórias de Lisboa do antes de 25 de Abril)

PAQUETE NIASSA Fonte: http://restosdecoleccao.blogspot.pt/

O Alferes Sesinando tinha acabado de desembarcar do Niassa no Cais a Rocha, em Lisboa.
O saco da roupa à civil e algumas recordações de África mais propriamente de Angola, era toda a sua riqueza.

Fonte: http://www.museudopapel.org/
Lá de Freixo de Lamego de onde era natural, uma aldeia perdida nas pedrarias da montanha, deixara os pais e os dois ou três amigos. Trabalho por lá não havia nem à partida nem à chegada. Isso sabia bem pois sempre recebia um ou outro aerograma dos pais quando estivera no mato dois longos anos.


Ali estava ele, com um futuro obscuro à sua frente mas são como um pero e sem marcas da guerra. Vinte e um anos, já a fazer vinte e dois em Agosto que já vinha perto.
Notava-se pelo calor.

Aliás, a guerra era para esquecer. Nada mudara em Angola e pelos vistos nada mudara em lado nenhum.
Pensara em ir para França. Diziam que se encontrava facilmente trabalho e bem pago. Em francos. O pior era a língua. Não dominava.
Tinha ainda uns escudos no bolso fruto das trocas de coisas com os pretos. O saco vinha carregado de pau de cabinda, madeira que se vendia bem em Lisboa. Era o seu pé de meia.

Meteu-se num elétrico e veio até ao Martim Moniz local que ele sabia haver pensões baratas para pernoitar e onde se dizia que a noite era divertida.
Ali à esquina ficava a conhecida “Base Aérea nº 1”  nome de guerra do Bolero, um bar de terceira com música ao vivo. 

Uma orquestra de três ceguinhos da Associação Luiz Braile que iam ali tocar na noite (para eles era sempre dia!) para fazer uns tostões extra. Entre as gargalhadas do mulherio já tocado e os acordes desafinados das concertinas uma nuvem de fumarada tapava das vistas muitas desgraças.

O bar era frequentado por senhoras que já tinham feito duas guerras mas que continuavam firmes e prontas a enfrentar qualquer batalhão, por mais armado que fosse desde que lhes oferecesse vinte paus e uma cerveja.

Sesinando estava precisado. Tinha que mudar o registo e retirar o mato da sua cabeça.
Agora a guerra dele era outra. Havia música, cerveja e putedo. E viva a “peluda”!



Fonte: http://madeinportugal560.blogspot.pt/