30 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 335

Efemérides 30 de Novembro
Geoffrey Household (1900 – 1988)
Geoffrey Edward West Household nasce em Bristol, Inglaterra. Formado em Literatura Inglesa, trabalha em diferentes profissões em vários locais: Roménia, Espanha, Estados Unidos, Médio Oriente, América do Sul. Durante a 2ª guerra mundial pertence à British Intelligence. Começa a escrever nos anos 20 e o seu primeiro romance, The Terror Of Villadonga, é publicado em 1936. Escreve principalmente trillers, por vezes com uma atmosfera de sobrenatural ou ficção científica. Publica no total 7 colectânea de short stories e 28 romances, alguns dos quais protagonizados por Raymond Ingelram ou Roger Taine. O seu livro mais conhecido é Rogue Male (1939), um thiller clássico. Em Portugal estão editados os seguinte policiários de Geoffrey Household:
1 – A Caravana Da Morte (1972) Nº67 Colecção Espionagem, Editora Dêagá. Título Original: Doom’s Caravan (1971).
2 – A Fera Solitária E O Ditador (1977) Nº1 Colecção Águia, Editora Perspectivas & Realidades. Título Original: Rogue Male (1939). Reeditado em 1986 pelo Círculo de Leitores com o título A Fera Solitária.
3 – Refém - Londres : O Diário De Julian Despard (1982) Colecção Ficções, Moraes Editores. Título Original: Hostage London — The Diary Of Julian Despard (1977).
4 – Justiça Feroz (1987), Círculo de Leitores. Título Original: Rogue Justice (1982). É a sequência de Rogue Male.


John Dickson Carr (1906 – 1977)
Nasce em Uniontown, Pennsylvania. EUA. Considerado um dos grandes escritores clássicos do policiário, é sem sombra de dúvida o mestre do “mistério de quarto fechado” (ver TEMA). Escreve sob os pseudónimos literários Carter Dickson, Carr Dickson e Roger Fairbairn. Autor com uma vasta obra, destacam-se os 45 romances publicados como Jonh Dickson Carr com os personagens Henri Becolin, Patrick Butker e Dr. Gideon Fell; 26 livros sob o pseudónimo Carter Dickson protagonizados por Sir Henry Merrivale: 4 colectâneas de contos e 1 livro de peças para rádio. John Dickson Carr é ainda biógrafo de sobre Sir Arthur Conan Doyle O livro The Three Coffins (também editado com o título The Hollow Man) / Os Três Ataúdes é encarado como a obra prima do escritor e o um dos melhores romances do escritor. Em Portugal estão editados vários livros de John Dickson Carr / Carter Dickson, que serão apresentados futuramente.


John Franklin Bardin (1916 - 1981)
Nasce em Cincinnati, Ohio, EUA. Escritor de policiários considerados como “quase góticos” e ênfase para o factor psicológico (ver TEMA). Em Portugal estão editados:
1 – O Fim De Philip Banter (1994) Nº2 Colecção Lua Cheia, Editora Terramar. Título Original: The Last Of Philip Banter (1947).
2 – Que O Diabo Leve A Mosca Azul (2009) Nº21 Colecção Crime Imperfeito, Editora Relógio d’Água. Título Original: The Devil Take The Blue-Tail Fly (1948).




TEMA — ESTUDOS DE LITERATURA POLICIÁRIA — CARR E OS MISTÉRIOS DE QUARTO FECHADO
Por M. Constantino
O essencial da “narrativa-problema”, dita clássica ou “novela de enigma” constrói-se sob a falsa aparência onde tudo se conjuga para enganar os olhos e induzir a razão em erro. E só no momento último a realidade retoma os seus direitos e revela a face escondida das coisas, ainda que valha a verdade, o critério narrativo máximo nada se escondia do leitor que era implicitamente desafiado a competir com a inteligência da própria narração. John Dickson Carr, em nome próprio ou sob os pseudónimos Carter Dickson e Roger Fairbairn (diz-se para aliviar a prolífica produção), conferiu-lhe uma nova dimensão caracterizada no tema fascinante do “crime em sala fechada” — entre nós “crime em quarto fechado” — o que, sem contestação possível, é a situação mais alta para pôr em prática e explorar um enredo baseado, fundamentalmente, em raro engenho.
Na sua primeira narração, It Walks By Night (1930) propõe-nos este cenário:

O assassino não está escondido. Não há possibilidade alguma de paredes falsas, do tecto ao solo. Não havia entradas secretas. O assassino não se encontrava em nenhum lugar do quarto, não havia escapado pela janela, não havia saído pela porta e, sem dúvida havia decapitado a sua vítima dentro daquele mesmo quarto. Sabíamos de ciência certa que o morto não se havia suicidado.

Este é o problema que se depara ao detective amador Henri Bencolin, primeiro personagem criado por Carr — um juiz francês, alto e delgado, musculoso, barba e bigode onde espreita um cachimbo fumegante. Mas perguntará o leitor: porquê um crime em quarto fechado, que só pode ser para o seu praticante, de alto risco? Que razões levam um assassino a tentar inventar um plano tão complexo? Um outro personagem de Carr, o Doutor Gideon Fell — retratado fisicamente como uma cópia de G. K. Chesterton, um homem forte, muito forte, de óculos presos por uma cinta negra encavalitados num proeminente nariz, rosto corado e com bigode de bandido antigo, grossa papada, desalinhado no vestir, amparado num bastão-muleta, imaginou três explicações possíveis:
  1. Não estava nas intenções do culpado colocar à polícia um enigma insolúvel, apenas as circunstâncias do decorrer da acção criaram o enigma acidentalmente;
  2. O plano do assassino consistia em fazer crer uma tese de suicídio;
  3. O assassino quis que se acreditasse na intervenção de elementos sobrenaturais.

Agora perguntamos nós, essas razões interessam?
É que a estrutura da narrativa é apenas técnica, na época em evidência não havia lugar para a dimensão humana, os autores relegavam para segundo plano qualquer vislumbrem de paixão, amor ou ódio, virtudes ou vinganças. Hã que explorar a temática pelo fascínio que em si representa o “crime impossível ou em quarto fechado”. Não nasceu o conto ou novela policiária sob o signo do “crime em quarto fechado” ainda que sem assassino humano no Assassinato da Rua Morgue?
Sabemos que a técnica se põe em três momentos:
  1. O Crime foi cometido antes de o quarto ser fechado;
  2. O Crime foi cometido enquanto o quarto era fechado;
  3. O Crime foi cometido depois de o quarto ser fechado.

O Doutor Fell já referenciado, oferece-nos em The Three Coffins uma interessante prelecção sobre os métodos possíveis de assassinato em “quarto fechado” e as suas possíveis soluções segundo sete classificações diferentes e algumas sub-divisões. Nas suas dezenas de livros, Carr / Dickson recorre com surpreendente facilidade a “improváveis possibilidades” que o leitor considera impossíveis para acabar por se render à explicação, já que a ilusão do prestidigitador é maravilhosamente inteligente.
Um outro personagem volumoso, Sir Henry Merrivale, também identificado por H.M., destacado por alguns críticos como cópia da figura do histórico Winston Churchill, é um nobre baronete mais antigo da Inglaterra, que além de gordo e calvo, pontifica a sua actuação por um rosário de imprecações e palavreado grosseiro, com uma inteligência e lógica de raciocínio que usa para resolver os mais difíceis casos criminosos, quer de crimes impossíveis em quarto fechado, quer de outra espécie.


TEMA — ESTUDOS DE LITERATURA POLICIÁRIA — BARDIN E O FACTOR PSICOLÓGICO
Por M. Constantino
Quando nos anos 30 do anterior século, a narrativa criminal tentou afastar-se da então dominante novela clássica ou de enigma, tal como foi fundada por Poe, iniciou-se uma progressiva trajectória com tendências que observavam os elementos psicológicos sob distintivas prespectivas. Foi o escritor Anthony Berkeley Cox (Clicar) debaixo do pseudónimo de Frances Iles — que se tornou famoso em Malice Aforethought (1931) / Malícia Premeditada — o primeiro a explorar as sensações que o assassino e a vítima podem experimentar em situações reais ou imaginárias, angústias, tensões vividas. Mais tarde, em Before The Fact (1932) / Suspeita, igualmente uma profunda investigação psicológica. O factor psicológico do crime revelou-se desde então como uma nova possibilidade da narrativa policiária ou criminal que alguns escritores acolheram favoravelmente e utilizaram o sub-género em referência.
John Franklin Bardin, nos anos quarenta acercou-se também à tendência psicológica do género criminal. E fê-lo de um modo totalmente original porque as suas obras (3 apenas) transcendiam, por vezes, o mundo da realidade autêntica e objectiva, para fixá-la como uma realidade subjectiva e imaginada, criando deste modo situações de angústia indiscritível.
No seu tempo Bardin foi incompreendido pelo público que, por tal, não chegou a captar o interesse da fantasia psi qcológica da sua obra, não obteve êxito e foi esquecido.
Ante o fracasso, Bardin deixou de escrever sob o seu nome, tão só sob os pseudónimos de Gregory Tree e Douglas Ashe continuou na literatura policiária, sendo o criador dos detectives Bill Bradley e Noel Mayberry.
Coube a Julian Symons (Clicar), escritor, investigador e historiador redescobrir Bardin e sustentar os esforços na republicação daquelas três obras em 1976: The Deadly Percheron, The Last of Philip Banter e Devil Take the Blue-Tail Fly que finalmente o consagram como um importante escritor.

John Dickson Carr
John Franklin Bardin






















TEMA — CONTO POLICIÁRIO DE BEN WILSON — À PROVA DE BALA
O sol estava no zénite, de maneira que Michael Wren não encontrou uma sombra sequer em qualquer dos dois lados de Mechanic Street. Lançava olhares invejosos aos transeuntes que encontrava em mangas de camisa e chegou mesmo a desabotoar casaco, mas pensando melhor, desistiu.
Foi ao dobrar da esquina, entrando em Cartland Street que notou, pela primeira vez, o homen que o seguia.
Michael acelerou o passo pela travessa que leva a Michigan Avenue, e olhando rapidamente para trás, constatou que o homem também entrara na travessa.
Michael entrou numa loja de “nada além de 10 cêntimos”, atravessou-a de extremo a extremo e saiu em Michigan Avenue.
Mas não conseguiu despistar o homem, pois quando saiu do outro lado o sujeito continuava atrás dele.
Sem se deter, Michael entregou um níquel ao jornaleiro e tirou a última edição do “Citizen-Patriot”. Era uma edição extra que, em grande manchete, anunciava tudo quanto Michael queria saber: “UM ASSASSINO FOGE DA PRISÃO”.
Havia um retrato do prisioneiro que fugira. Michael não precisava de examinar com muita atenção para saber que o original daquele retrato estava no meio da multidão, atrás dele.
— Granvy! — exclamou Michael.
Atravessou a rua quase correndo, sem esperar que o sinal abrisse para os peões, e entrou como uma flecha na porta giratória do hotel.
O quadro que, na portaria anunciava as actividades sociais da semana dizia: “Hoje Almoço do Executive Club —Orador convidado, Detetive Michael  Wren”.
Michael passou pelos elevadores e subiu a larga escadaria, de três em três degraus.
— Bonito — murmurou — Eu sem revólver, e sem tempo para arranjar um!
No segundo piso, atravessou um vestíbulo e abriu uma porta. O murmúrio da conversação de quarenta ou cinquenta homens podia ser ouvido entre o barulho dos talheres Michael fechou a porta de novo.
— Não devo expô-los àquele louco — pensou — É melhor ficar aqui fora.
Atirou o jornal para uma cadeira e, quando o jornal caiu aberto, uma frase sobre a fuga do criminoso ficou sob seus olhos: “Foi o trabalho do hábil detective Michael Wren que permitiu a condenação de Granvy em Outubro de 1936” E Michael ouviu de novo a voz rude de Granvy no tribunal:
— Hei de apanhá-lo, Wren. Hei de apanhá-lo, verá.

O silenciador da pistola automático 38 nas mãosl de Granvy dava à arma um aspecto estranho, surrealista. Michael afastou os olhos da ameaça da arma, e fitou o rosto comprido de Granvy.
— Sim! Olhe bem para mim! — exclamou Granvy. — Eu, com esta cara de barriga de peixe, e você, com toda essa saúde, estamos frente a frente. E quem vai sair a perder é você.
Michael viu o movimento quase imperceptível da arma.
— Chegou — pensou Michael — Meu Deus, que não seja na cabeça!
— Toma chui — gritou Granvy, com o rosto lívido.
Saíram seis “tiques” da arma silenciosa, seis tiros, que atiraram o detective de encontro à parede.
Um homem enfiou a cabeça pela porta da sala de jantar.
— Ah! O senhor está aí, Mr. Wren? — disse — Já estamos prontos.
Voltou para a saia, deixando a porta aberta.
Michael afastou-se da parede e meteu a mão no bolso. Em poucos momentos Granvy estava algemado.
O assassino olhava, bestificado, para as algemas e para a pistola que Michael arrancara das suas mãos.
A voz nasalada de um homem no salão do almoço anunciou:
— E, agora, tenho o prazer de apresentar o grande detective Michael Wren. Veremos Harry James fazer fogo contra ele. Mr. Wren vai-nos apresentar uma demonstração de um colete à prova de bala, da sua invenção.

29 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 334

Efemérides 29 de Novembro
Francisco da Costa Oliveira (1908 – 1999)
Nasce em Lisboa. Advogado, e autor vários livros de natureza jurídica, tem também 4 romances publicados
1 - Alto Risco (2005), Editora Oficina do Livro. Sinopse (Clicar)
2 - Anjo Negro (2007), Editora Oficina do Livro. Sinopse (Clicar)
3 - Corações Imperfeitos (2011), Editora Oficina do Livro. Sinopse (Clicar)
4 - Motel (2011), Chiado Editora.




TEMA — ESTUDOS DE LITERATURA POLICIÁRIA — SHORT STORY
O presente estudo da autoria do escritor e editor Ross Pynn (Rossado Pinto) fo extraída do prefácio de uma das esplêndidas antologias policiárias construídas e editadas por Ross Pynn. É não só um acto de justiça a sua divulgação, como uma sincera e saudosa homenagem ao Homem que admiramos e que foi um grande e saudoso Amigo.
M. Constantino

Para a. Literatura Policial é curioso registar que o moderno conto, ou seja, aquilo que os americanos e ingleses definem com tanta felicidade por short story começou em Edgar Allan Poe. Também em Máximo Gorki, mas com maior expressão, mais clareza, em Edgar Allan Poe, E isso estabelece desde logo uma dimensão subjectiva ao caso, que não pode deixar de honrar a Literatura mais discutida do mundo — e dizemos mais discutida, porque há ainda quem não tenha chegado a uma conclusão sobre a sua posição na escala das Literaturas.
E se na Europa não existem muitos cultores, pelo menos em número igual ao que se encontra no romance ou na poesia dos países de Língua Inglesa, existe como que uma predisposição especial para essa dificílima arte de narrar.
A razão está, com certeza, na própria língua. A Língua Inglesa é concisa, sincopada, limitada. Portanto, a ideal para transmitir o conto curto, porque ele é sincopado, conciso, limitado. Há que dizer tudo em muito pouco. Dizer tudo por vezes numa única frase, retratar uma personagem num único traço. E sobretudo encontrar a maneira de levar ao leitor aquilo que se pretende transmitir dentro de um caminho fácil mas completo. Hemingway, por exemplo, deu-nos numa das suas short stories— o célebre “The Killers” (Os Assassinos) — todo o ambiente, personagens, crítica e acção, apenas em diálogo.
Existe na América por parte do leitor um entusiasmo invulgar pela short story. Fazem-se edições sucessivas de livros do género e editam-se milhares (!) de magazines especializados.
A Literatura Policial não podia fugir à regra. Sendo um género de tanto agrado do público, teria que ter os seus cultores, e de uma maneira ou outra, todos os romancistas policiais já tentaram — e alguns até preferem ou se, especializaram — na short story.
Há quem lhe chame, no campo policial a leitura ideal, mais adequada à “pressa” dos nossos dias, e também quem a considere como meros “aperitivos”, textos “supérfluos”. Uns e outros podem ter razão, mas não totalmente. Um conto curto pode levar muito tempo a ler, se por Ier se entender uma leitura cuidada e atenta dos textos. Além disso é tão supérfluo como uma novela ou um romance, desde que o supérfluo esteja no leitor.
Para já, convém acentuar uma coisa: a short story, mesmo no policial, constitui uma modalidade com características próprias. Não se assemelha nem iguala a qualquer outro género. Diferem, quanto à sua definição, as opiniões: uns dizem que deve ser “curto” quanto ao tamanho físico do conto, outros “curto” apenas na história.
Quanto a nós, short story terá de ser o mínimo dos mínimos no máximo dos máximos. Por outras palavras: dizer em poucas palavras tudo quanto tem de ser dito. Isso impõe um estilo próprio, e também uma técnica diferente. Não se pode escrever um “conto curto” (tradução eventual para short story como se escreve uma novela ou um romance. O autor destes últimos terá de criar uma mentalidade diferente e uma técnica apropriada.
O. Henry afirmava:
Deixem que escreva em duas linhas o que outro faria em cinco páginas: deixem, porque assim sou eu mesmo”. Uma definição que traduz exactamente o espírito da short story: um autor “nasce” para escrever contos, como outros para escrever romances. A técnica está nele, e a forma delineada na sua própria formação. Este será o mestre; o outro, aquele que o faz por imposição, por estudo, por se obrigar, o curioso.



SHORT STORY DE AUTOR ESTRANGEIRO — CIÚME FATAL
De Adele E. Cateau
Clare com o seu vestido justo; parecia uma estátua, de pé em frente à mesa, esperando pelo marido. O abajur projectava sombras na carta que tinha entre as mãos e sobre cujas finas e negras linhas os seus, olhos brilhavam.
Pouco a pouco, com a leitura, sentiu-se novamente transportada para junto de James.
Havia tantas recordações agradáveis!
Como o seu coração batera ao vê-lo embarcar no “Orient” com os cabelos louros brilhantes ao sol, aquele primeiro e assustado encontro dos seus olhares, os passeios pelo convés, as conversas, os silêncios e as danças nas noites tropicais. Com que ternura se haviam debruçado à balaustrada, à medida que o vapor avançava cada vez mais… e William sempre como uma sombra aborrecida atrás daquele quadro feliz. Como eram encantadores aqueles dias, quando James lhe dera a caixinha de teca que comprara em Bali! Depois, como era triste a recordação de tê-lo visto acenar e, por fim, converter-se numa pequena mancha branca, lá no cais longínquo, enquanto ela e o seu esposo se afastavam de Bornéu.
— Porque escolheu Bornéu? — perguntara ela muitas vezes.
— Pela medicina tropical — respondera ele. — É um campo que quase não-foi explorado e no qual quero trabalhar como médico de uma companhia de petróleo.
Aquilo tinha sido o bastante, aqueles dias passados juntos e a promessa quase pronunciada por ele… sim, tinha sido o bastante.
Somente mais tarde, quando as forças quase lhe faltaram e já não podia suportar aquela situação angustiante, apresentando sempre desculpas a William, apesar de ser ele agora um homem doente, é que se resolvera. Afinal, honra e orgulho ainda não tinham sido inteiramente desalojados de seu ser e ela sentia-se na contingência de tudo revelar ao marido.
Mas não ainda nessa noite. Antes de tudo, devia aguardar o momento oportuno para falar-lhe acerca daquela carta, a qual não devia ver antes de estar preparado. Onde a guardaria?
Ouviu os passos de William, aqueles dolorosos passos, rastejantes, de homem doente e pesado, vindos da entrada. E, amarrotando a carta, ocultou-a no seio.
Quando William Hudgins a avistou, os olhos cintilaram.
— Que rainha! — troçou — Que magnífico quadro de impaciência!
— Estava apenas à espera — respondeu ela calmamente.
— E em que pensava? — perguntou ele — Na felicidade de ter um marido aleijado ou na possibilidade de divertir-se com um rapaz carinhoso e interessante como aquele maldito médico?
— William! — implorou ela.
— Não pense que me engana! Confesso que não sei bem o nome dos outros que você tem por aí, mas sei direitinho o que é que tem com “ele”!
— Não fale assim! — protestou ela, sem saber se a doença dele se teria transformado num ciúme mórbido, se teria descoberto tudo ou, ainda, desconfiado da verdade., Enfim, em qualquer das hipóteses não tinha razão para falar daquela maneira.
Depois de James deixar o navio, a viagem ao redor do mundo convertera-se num pesadelo. Desde então, William, torturado por uma paixão doentia, passara a ver um rival em cada homem que ela cumprimentava e, se bem que acerca desses ela não se incomodasse, Clare não podia suportar que ele falasse daquela maneira de James…
Principalmente pelo facto de não existir nada entre eles. Nada, absolutamente, além daquela promessa Interrompida e daquele olhar.
William Hudgins observava-a, fazendo com que ela notasse e sentisse agudamente a crueldade refletida nos seus olhos.
Como estavam profundas as suas feições e fino o seu pescoço dentro do colarinho duro!
— Está frio aqui! — disse ele, inclinando-se para activar o fogo.
Mas o exercício foi muito forte para a sua resistência e suspirou, quase sem forças para se levantar.
— Pode deixar que eu arranjo,
Clare inclinou-se para o substituir e, ao fazê-lo, a ponta da carta apareceu sobre o peito do vestido branco.
De repente, ela sentiu a mão dele violentamente de encontro ao seu peito.
— Ah, eu sabia! Eu sabia! — gritou o marido, brandindo a carta amarrotada.— Não proibi que escrevesse para esse sujeito? Não proibi que lesse as cartas que ele mandava?
— Dê-me a carta, William! — exigiu ela.
— Mentirosa! — gritou o marido. — Miserável desavergonhada! Olhando para a lareira, preparou a carta para a atirar ao fogo.
— Não faça isso, William, ou arrepender-se-á!
— Lamento não tê-lo matado! — vociferou ele, e, sem hesitar mais, atirou à fogueira o papel branco, que em segundos se transformou num bolo negro de cinzas.
Clara sentou-se, tapou lentamente o rosto com as mãos, mas ficou imediatamente calma.
— Não tem importância — disse ela, um instante depois. — Lembro-me perfeitamente de todas as palavras desta carta.
— Então era mesmo dele? — berrou o homem, como se ainda não estivesse certo da realidade.
— Sim — respondeu ela. — E quero que a ouça! Não custa nada! É muito curta; são poucas palavras.
E numa voz lenta e monótona principiou a recitar:
Prezada Clare, assim que me escreveu a respeito da doença do seu marido, reconheci-a como um dos obscuros males tropicais que, sem dúvida, contraiu quando esteve aqui. É uma doença que raramente se manifesta antes de seis meses após a data do contágio. Os médicos brancos não conhecem meios para a combater, mas os indígenas têm um processo de cura, uma das descobertas que me trouxeram aqui, para esta solidão. Envio-lhe o remédio, que consta de umas certas sementes; se não for usado dentro de um mês, a doença não terá cura. Espero ter agido a tempo. Inclinando-se,William Hudgins tocou-a gentilmente no braço.
— Desculpe-me, meu amor… Sou um homem doente e faço essas coisas sem sentir… Agora estou envergonhado do meu acto, de ter duvidado de si… Mas onde estão as sementes? As sementes e as instruções médicas?
Clare começou a rir. Ela, que não tinha um sorriso havia vários meses, contorcia-se no chão às gargalhadas; ria tanto que as lágrimas lhe saltavam dos olhos.
Quando se acalmou, conseguiu dizer:
— As sementes estavam dentro da carta!



SHORT STORY NACIONAL — AO LUAR, NA LEZÍRIA
De Lima Rodrigues
O ano fora mau. Já o outro o tinha sido. E houvera cheia. Tem o trigo na eira. No bolso, uma apólice. Se o trigo ardesse…
Ninguém descobrira. Ele é pessoa seria. Conhecida, importante. Quem pensará sequer em desconfiar? Ninguém desconfiara de ninguém. São coisas que acontecem. Coisas do destino: umas vezes, ponta de cigarro, outras, fagulhas das máquinas. São coisas que acontecem.
Consulta a sua consciência: consciência sem actos. Sem acções. Só com necessidades…
E luta faz… não faz; vai… não vai; a hipoteca, as letras…; vai… faz; não vai… não faz; a sua nobreza, a tradição…; vai… não vai; faz… não faz; a hipoteca, as letras… vai!
E foi…
Arame farpado ladeando caminhos; separando negras feras; os homens das feras; as feras dos homens; Chocalhos, soando, avisam incautos.
E chega…
A noite é serena. Há vida no ar: som do harmónio; na voz do fandango; do vira rodado; e o pó e a palha, a palha e o pó, ainda andam suspensos, bailando, ao luar…
Chegou junto as medas. Tem os fósforos no bolso. Mete a mão e tira-os. Abre a caixa. Segura Um. Vai riscá-lo… É contrabandista atravessando a fronteira: ao arder do fósforo; estará do outro lado. Do outro lado, no crime. As mãos tremem. Todo ele treme. Curva-se. Vai acender o fósforo…
Ouve uma restolhada. Assusta-se. Levanta-se. Volta-se. Numa mão, a caixa. Na outra, o fósforo. Horroriza-se. Treme mais. Fica sem forças. Sem Fala. Reage. Corre. Foge…
Um arranque veloz. Uma corrida ligeira. E um vulto negro vai-se aproximando.
O homem reage. Reage outra vez. Pára e volta-se, enfrentando o monstro.
— Eh, touro! Eh, touro… Eh touro dum raio…
Espera a pé firme, como em outros tempos. Que valentes touradas! Que rijíssimas pegas! Tudo águas passadas…
Ao luar, na lezíria, há beleza no drama. O homem e a fera, a fera e o homem. E a luta principia…
Cabeça com hastes em riste, com olhos luzindo: um corpo que a envolve; umas mãos que a agarram. Luta desigual: energias perdidas nos anos; pujança selvagem. Um corpo volteando no ar… queda desastrosa. Uma nova investida, mais outra marrada. E o homem no espaço, com o pó e a palha, a palha e o pó, parece dançar… e o sangue que se escoa, é a vida a fugir…
E surgem cavalos. Há pampilhos ao alto; barretes no ar. Há cintas vermelhas; jaquetas ao vento.
Os cascos martelam o árido solo. Chocalhos badalam mais perto, em compacto desfile. A tarefa começa, prolonga-se, termina: cavalos cansados; chocas a arfar; rostos suando, que brilham na noite; e o touro assassino, com os chifres vermelhos, distribui marradas às guias: vingança do bruto!
— O Fidalgo morreu! — disse um maioral. — O “Bonito” matou-o!
— Uma morte feliz — outro acrescentou. — Que há de melhor que a gente morrer nos cornos dum boi?
Uma caixa caída. Um fósforo perdido. Manchas de sangue que chão.
Ninguém desconfia. Ninguém descobrirá. Foi tudo o destino. Desastres que se dão. Coisas que acontecem…
E o pó e a palha, a palha e o pó, continuam suspensos, bailando ao luar…


28 de novembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 333

Efemérides 28 de Novembro
Richard Powell (1908 – 1999)
Richard Pitts Powell nasce em Philadelphia, Pennsylvania, EUA. Começa a escrever ficção na década de 40 e a partir de 1958 dedica-se exclusivamente à escrita. Inicia a série Arab & Andy Blake com Don’t Catch Me — também editado com o título The Case Of The Curious Chair em 1943; esta série tem 5 títulos publicados. Escreva ainda mais 14 livros policiários, entre os quais se destaca o bestseller The Philadelphian (1957), adaptado ao cinema dois anos depois.


TEMA — DIÁRIO DE UM ADVOGADO — OS PASSOS DE QUEM VAI
Apareceu no escritório, como tinha prometido.
Vinha triste, arrasado, física e, também, moralmente. A sua apresentação ao Juízo da Primeira Vara Criminal e respectivo recolhimento à prisão, juntamente com o outro colega de pronúncia, era uma realidade terrível, para o fim de ano, e que resultara do que eu havia assentado, na véspera, com Eurico Novais.
Pois é isso, o constituinte estava ali, sumido, diminuído, no canto da sala. Um espanto, maior do que a sua tristeza, o vestia de ponta a ponta.
A verdade, entretanto, é que o seu espanto e a sua desgraça tocaram-me ao de leve. Curioso… se fosse há uns dez anos atrás, também ficaria arrasado. Mudaria o Natal ou terei mudado eu?
Será que os advogados de certa tarimba, por muito reagir contra os desgastes afectivos e emocionais, acabam por ficar anestesiados?
Atendi outros, fiz telefonemas, redigi alguns requerimentos.
Esqueci-me do homem coberto de depressão que sabia sumido no canto da sala.
Afinal, saímos juntos. Eu, para a rotina diária da actividade profissional. Ele para as grades e para a implacável saudade de homem livre.
Em frente da Livraria Forense uma observação brutal tomou conta de mim e aos poucos foi “cobrando” o tributo fatal…
Quis para na livraria. Comprar um livro para um amigo… Senti que não tinha coragem. É que contrastando com o egoísmo de fim de ano em que aparentemente me achava, o constituinte vinha atrás, muito atrás ainda… os seus passos eram tardos, lentos, estranho.
À distância vi, senti que um peso enorme tolhia, atrapalhava os seus passos.
O homem que está a caminhar para a prisão, instintivamente, faz muito esforço para andar…
A partir daí éramos dois, a sofrer fraternalmente. Quem disse que a tarimba imuniza?
À porta do Palácio da Justiça, o prezado Eurico de Novais informa que a apresentação final ficou para outra oportunidade.
Respiro aliviado.
Voltamos juntos, o constituinte e eu. Os nossos passos eram iguais, no mesmo ritmo. Rápidos e leves.



TEMA — ARQUIVOS DA SCOTLAND YARD — O MISTÉRIO DE MORRISON

O mistério de Stinie Morrison é um clássico nos anais da criminologia inglêsa. É- o drama estranho e fascinante de um homem acusado de homicídio — acusação que se baseou em três provas, todas destruídas depois pela sombra da dúvida. Stinie Morrison era um homem bem nascido, que cedo enveredou pela senda do crime. Mas nunca se envolveu em crimes violentos, e ainda que a sua reputação não fosse das melhores, não era tão má ao ponto de justificar a sentença de morte.

Esta história principia na noite de Ano Novo. 1911. O cenário é Clapham Commom, um espaço aberto num subúrbio de Londres, muito procurado pelos namorados. São duas horas da manhã. Um jovem casal caminha vagarosamente, enlaçado. Vem de uma festa. Na distância, o relógio da igreja avisa-os da hora tardia. Na semi-escuridão da noite George Silver, o rapaz, distingue o vulto de alguém estendido no chão, ao que parece a dormir.
— Pobre homem! Em que farra deve ter-se metido… Dormindo no meio da rua!
O sentimento de solidariedade humana faz com que George Silver tentasse despertar o desconhecido.
Estranho! Tem o rosto coberto com um lenço!
— Acorde, homem!
E então George Silver recua, os olhos esbugalhados pelo terror. O lenço escorregara e ele pudera ver, à meia luz dos lampiões, um rosto ensanguentado. Em cada face, um instrumento cortante marcara um “S”. A jovem que o acompanhava gritou, alucinada. Não havia dúvida. O homem estava morto. O jovem casal correu, apavorado, à procura de um polícia. Trágica noite de Ano Novo.

O corpo foi logo identificado; era de Leon Beron, homem conhecido no East End londrino como pessoa rica Costumava frequentar um restaurantezinho de Whitechapel, chamado Snelwar. Ficou esclarecido plenamente que, na noite de 31 de dezembro, depois de alguns goles, Leon Beron saíra Snelwar cerca das 11 horas. Usava então uma corrente de ouro e um relógio, com um berloque também de ouro, desses que se compravam a cinco libras, e que denotava a prosperidade económica do possuidor. Devia ter muitos soberanos (moedas de ouro) nos bolsos, mas nem a corrente, nem o relógio, nem o dinheiro foram descobertos. A violência do crime, a posição do cadáver, o número de ferimentos produzidos por punhal, demonstravam que o crime não podia ter sido obra de um só homem. O criminoso fora ajudado por uma ou mais pessoas. Estabeleceu-se, sem sombra de dúvida, que Leon Beron saíra por livre e espontânea vontade do restaurantezinho de Whitechapel, por volta das 11 horas da noite, e apanhara um táxi, que o deixou em Clapham Commom. Nunca se esclareceu por que motivo Leon Beron se decidira a fazer aquela visita a Clapham Commom.
A Scotland Yard encarregou-se do caso. O inspector de dia ordenou que o sargento Hutton entrasse em contacto com o distrito policial de Clapham Common, a fim de apurar se havia sido visto algum suspeito naquelas imediações, nos últimos dias antes do crime.
As investigações fizeram aparecer, entre outros, o nome de Stinie Morrison. Fora visto em Clapham dois dias antes do crime. Os arquivos da Scotland Yard tinham várias fotografias do suspeito, que já fora processado anteriormente por assalto à mão armada. Essas fotografias foram mostradas, entre outras, a um motorista que fizera uma corrida, por volta da meia-noite, justamente para Clapham Commom.

Ainda que relutante, o motorista admitiu que o passageiro bem podia ter sido Stinie Morrison. E imediatamente a Scotland Yard expediu mandado de prisão contra Stinie Morrison, o suspeito, que foi preso facilmente um dia depois, quando tomava o seu “breakfast” num modesto restaurante do bairro.
— Stinie Morrison?
— Eu mesmo!
— Venha connosco até Leman Street. O inspetor quer conversar consigo.
Prisão sem resistência que, no entanto, resultaria altamente dramática, quando no julgamento fossem reveladas as circunstâncias que a cercaram.
Nenhuma acusação formal pesava contra este homem, que somente disse aos polícias que o prenderam:
— Vocês estão a cometer o maior engano das vossas vidas! Eu sei que vocês se enganam sempre, mas este é o maior!
Haveria engano? Stinie Morrison foi levado à Scotland Yard sem qualquer acusação. O nome de Leon Beron não foi sequer mencionado. Nenhuma insinuação foi feita de que poderia ser ele o culpado de um crime de morte, mas estava preso.
Uma hora depois, quando o inspetor-chefe Wensley mandou chamá-lo, o prisioneiro disse estas palavras:
— Os senhores estão a acusar-me de assassinato!"
Nenhuma acusação formal fora feita, nem nenhuma referência à palavra “assassinato”; assim, o inspetor Wensley respondeu:
— Não se trata absolutamente de nada disso!
O prisioneiro sorriu, repetindo a palavra “assassinato”.
Poderia haver maior evidência do que essa? Um homem suspeito é preso, sem que ninguém lhe diga a razão. É o primeiro a fazer a afirmação de que pesava contra ele a-acusação de assassinato. Essa prova foi um trunfo valiosíssimo nas mãos do promotor. Stinie Morrison defrontava-se com o Tribunal do Júri o 16 de Janeiro de 1911. Entre- as testemunhas de acusação figurava uma mulher bonita, Eva Flitterman. Conhecera Stinie Morrison havia três semanas. A última vez que o vira fora nos primeiros dias do ano. Declarou que reparara que ele usava uma corrente e um relógio de ouro, com um berloque também de ouro, desses que se compram cinco libras!
Como sabia o preço do berloque?
Eva Flitterman respondeu que o seu pai costumava usar um berloque semelhante.
Outra terrível prova contra Stinie Morrison, agravada ainda pelo depoimento do cocheiro Edward Heyman. Eis o que declarou ele em juízo:
— Apanhei dois passageiros na esquina de Sydney Street, cerca de duas horas da manhã.
— Onde os deixou?
— Em Lavender Hill.
— Quanto tempo durou a viagem?
— Cerca de quarenta minutos.
— Tem absoluta certeza de que um dos passageiros era o réu?
— Absoluta.
— E o outro?
— Não reparei bem. Parecia um homem moreno e baixote.
Esse outro homem jamais foi encontrado.
E as duzentas libras-ouro que Stinie Morrison tinha em seu poder quando foi preso? As declarações do réu foram evasivas. Negócios… Que espécie de negócios? Silêncio. Terceira prova indiscutível, porque Leon Beron, ao ser morto, possuía em seu poder soma semelhante, ainda que isto nunca tivesse sido matematicamente provado. Mas — onde conseguira Stinie Morrison tanto dinheiro?
Apesar das terríveis provas contra Stinie Morrison, o advogado Edward Abinger, um dos mais famosos criminalistas da Inglaterra, tomou a defesa do réu, conduzindo-se com grande habilidade. Mas o julgamento continuava os seus trâmites legais, e Stinie Morrison estava bem próximo da sentença capital. Entretanto, no último dia, quando a sentença deveria ser conhecida, Mr. Abinger recebeu uma carta no seu escritório, com o envelope marcado — “Estritamente Confidencial”. Era uma carta lacónica, mas impressionante:

Senhor,
Estou a escrever-lhe a fim de esclarecer que a alegação da Scotland Yard de que Stinie Morrison ignorava completamente a razão de sua prisão, é falsa!
Eu pertenço à Polícia e vi quando Morrison foi informado por um colega de que sua prisão se relacionava com o assassinato de Leon Beron.
(a) Sargento George Greaves

Mr. Abinger, sem hesitar, correu para a Câmara dos Comuns, pedindo uma entrevista urgentíssima com o Procurador-Geral. Precisava de uma declaração assinada por aquele sargento, a fim de exibir naquela mesma tarde, no último minuto do julgamento de Morrison. Essa declaração admitiria, publicamente, que a Scotland Yard cometera um tremendo engano — estranha situação que pela primeira vez na história da criminologia britânica iria ocorrer.
O Procurador Geral recomendou que Mr. Abinger se entendesse directamente com Sir Melville Mac Naughten, -chefe do C.I.D. (Criminal Investigation Department) da Scotland Yard.
O espanto de Sir Melville foi sem limites.
— Como? O senhor quer uma declaração assinada do polícia que acusa a Scotland Yard de haver cometido um engano? Quem é esse polícia?
Mr. Abinger mostrou apenas o envelope marcado: “Estritamente confidencial”. E antes de revelar o nome do sargento Greaves obteve de Sir Melville a promessa escrita de que as suas declarações tomadas a termo não prejudicariam a sua carreira na Scotland Yard.
Momentos depois, quase às duas horas da tarde, em Whitechapel, o sargento era localizado e seguia com o advogado para o Tribunal, onde fez o seu depoimento, provando que a Scotland Yard se enganara: Stinie Morrison fora informado da razão de sua prisão e, por isso, nada de extraordinário havia na sua afirmativa feita ao inspetor Wensley de que o acusavam de assassinato.
Caía por terra a primeira prova. Mas as outras duas eram de tal forma graves que nem as declarações do sargento Greaves tiveram força para persuadir os jurados. O julgamento terminou naquela mesma noite. Stinie Morrison foi condenado a morrer na forca.
O advogado não desanimou. Apelou da sentença O apelo ficou em suspenso. Nesse intervalo, Abinger entrou em contato com Eva Flitterman, a jovem que vira a corrente, o relógio e o berloque de ouro. Mr. Abinger encontrou-a assustada e aflita Soubera da condenação à morte. Fez novas declarações à Polícia, reforçadas pelas da própria mãe:
— Quando declarei na semana passada que Stinie Morrison trazia preso ao relógio um berloque de cinco libras, cometi um engano lamentável. Disse que o meu pai possuía um berloque igual, o que é verdade, como a minha mãe está aqui para provar. Entretanto, o berloque que o meu pai usava, exatamente igual ao que vi no relógio de Stinie Morrison, custou duas libras! Percebi o meu engano, logo depois do julgamento. Fui à Scotland Yard para rectificar as minhas declarações. Não fui atendida. Eu nem sequer sabia que Morrison estava a ser julgado por assassinato!
Os jornais promoveram uma verdadeira batalha, imprimindo as declarações de Eva Flitterman. O inspector Wensley declarou que a retificação pedida não tinha valor legal, vista que Morrison e Eva Flitterman eram amantes. Nesse caso a segunda prova caía por terra de qualquer maneira!
Mr. Abinger tentou todos os recursos, mas o apelo foi negado. A data da execução de Stinie Morrison foi marcada para 17 de Fevereiro.
O caso assumira proporções dramáticas. A última esperança do condenado estava num pedido de clemência ao secretário do Interior, na época Mr. Winston Churchill, Diversos jornais pediram a Stinie Morrison que encabeçasse com a sua assinatura o pedido. Seguir-se-iam dezenas de milhares de assinaturas. Londres em peso estaya com o condenado.
Na prisão de Wandsworth, Mr. Abinger não conseguiu convencer Stinie Morrison a assinar o pedido de clemência.
— Sou-lhe muito grato, mas não assino! Eu sou inocente! Não vou Implorar clemência a ninguém! Todos nós temos de morrer um dia! Não tenho medo!
 Mr. Abinger suplicou-lhe que assinasse, mas foi em vão.
— Então, não poderia ao menor dizer alguma coisa que me ajudasse numa última tentativa?
A 13 de Fevereiro Stinie Morrison fez uma revelação espantosa.
— A Polícia fala muito nas duzentas libras que estavam comigo… Eu não disse nada porque confiava em sair livre do julgamento e não queria ser apanhado como falsário…
O condenado declarou que no dia 3 de Janeiro falsificara a assinatura de um cheque contra o South Western Bank, filial de Holloway, exatamente de duzentas libras. O cheque fora descontado, e apressara em ir à Agência Cook de Ludgate Hill, trocando as duzentas libras em francos. Para maior segurança do “golpe”, tornara a trocar os francos em libras, em outras filiais da Cook, em Piccadilly.
Estas declarações eram verdadeiras, e o cheque falso foi localizado no banco South Western, filial de Holloway. Funcionários da agência Cook identificaram Stinie Morrison, que ali fizera as operações de câmbio!
Na véspera do dia marcado para a execução, a terceira prova caia por terra. Mr. Winston Churchill assinou o apelo do advogado Abinger. Stinie Morrison escapou da forca, ainda que ficasse de pé a condenação à prisão perpétua por falsificação… e homicídio.

EPÍLOGO
Mas — poderão perguntar — Stinie Morrison não foi apenas vítima de uma série de provas circunstanciais, agravadas por um erro da Scotland Yard?
Porquê a Scotland Yard fez tudo para manter a acusação de homicídio contra esse homem, que chegara a dois passos da morte?
Alguns meses depois, Stinie Morrison estava na prisão, cumprindo a sua pena, o advogado Abinger, que continuava a lutar para libertar o seu constituinte, abandonou a causa subitamente. O caso foi caindo no esquecimento. E dez anos depois Stinie Morrison falecia na prisão de Peinkhurst, de morte natural. Ninguém se preocupou em saber por que motivo Mr. Abinger cessara de lutar. O motivo consta das declarações do advogado à Scotland Yard:
“Fui procurado em minha casa por, uma mulher, Kathleen Smith, do East End. Declarou-me ela que vivera muitos anos com um criminoso várias vezes condenado por chantagem. Esse homem, ao que sabia, chamava-se Smith. Na madrugada de 1° de Janeiro, Smith aparecera em sua casa com as roupas sujas de sangue. Ameaçou-a com um punhal, caso dissesse uma palavra a alguém. Smith dera-lhe várias Libras em ouro, que ela aceitou com alguma relutância. Smith fechou-se em casa durante algumas semanas, e finalmente embarcou para os Estados Unidos. Logo que se certificou da partida de Smith, ela resolveu procurar-me.”
Kathleen Smith foi interrogada pelo inspector Wensley e confirmou ponto por ponto as declarações feitas a Mr. Abinger. E eis como terminou o seu depoimento:
— Quando Smith saiu de sua casa, às 11 horas da noite de 31 de Dezembro, estava sozinho?
— Não.
— Quem estava com ele?
— Um homem.
— Conhecia-o?
— Claro! Pois era Stinie Morrison!

Julgamento de Stinie Morrison