Efemérides 20 de Setembro
Philipp Vandenberg (1941)
Hans Dietrich Hartel nasce em Wroclaw, Polónia. Ensaísta, investigador, apaixonado pelos mistérios do Egipto, colaborador de diversos jornais e revistas alemãs de prestígio, é também autor de romances policiários. Escreve sob o pseudónimo Philipp Vandenberg e o seu sucesso deve-se em especial aos romances policiais históricos, que estão traduzidos em mais de 30 línguas, sendo muitos deles bestsellers mundiais. Em Portugal estão editados:
1 – A Maldição Dos Faraós (1975), Nº50 Colecção Vida e Cultura, Livros do Brasil. Título Original: Der Fluch der Pharaonen (1973). É um romance histórico.
2 – O Homem De Pompeia (1990), Círculo de Leitores. Título Original: Der Pompejaner (1986).
3 – A Conspiração Sistina (2006), Colecção Thriller Histórico, Editora QuidNovi. Título Original: Sixtinische verschwörung (1988).
4 – O Quinto Evangelho (2008), Colecção Thriller Histórico, Editora QuidNovi. Título Original: Das fünfte evangelium (1993).
TEMA — ESTUDOS DE PSICOLOGIA CRIMINAL — ESTRUPO
Da condenação de um inocente que a se acusa de assassino fala-nos José Veríssimo em Cenas da Vida Amazónica. No Crime do Tapuio estuda-se uma tese de alto valor, do ponto de vista da psicologia criminal, da responsabilidade moral.
Conta-nos aí história de una menina que cablocos do Rio Trombetas deram de presente ao padrinho, e este por sua vez oferecera à sogra, uma velha odienta que amiúde a surrava por dá cá aquela palha. A pequena, triste e sofredora, longe dos progenitores, cresce em idade, nada, porém, no corpo, dado o regime de fome, trabalho e pancada a que a velhota a submete.
Ora, um tapuia, de nome José, que ali mora, torna-se de piedade pela cativa e certa vez, carregando-a através da mata, mete-a numa canoa e apesar da escuridão rema, rema, num rumo desconhecido.
Dele, como da menina, não se tem mais notícia. Vamos mais tarde encontrar José Tapuio no júri de uma cidadezinha amazonense a confessar que matara a menor Benedita, ao que a Justiça, de moto próprio, acrescenta a violência sexual, o estupro.
— Você, disse o magistrado, vai responder às perguntas que lhe vou fazer. Não se atrapalhe, não se aperte, nem minta. Veja lá… E começou o interrogatório
— Como você se chama?
O tapuio ficou interdito, como quem não compreende a questão.
— Como é o seu nome? tornou o juiz.
— José.
— Sabe do que o acusam e por que está você aqui?
— Eê.
— Sabe?
— Eê, sei.
— Sabe que é acusado de ter — disse a data e lugares — “feito mal” à menor Benedita, a afilhada de seu patrão Felipe Arauacú?
— Eê…
— E' verdade?
— Eê…
— Diga ao Tribunal como o facto se deu.
— Eu já contei pró outro branco…
O outro branco era o juiz formador da culpa.
— Sim, mas preciso contar outra vez.
E o bronco tapuia fez esta confissão:
— Eu queria ela pra mim… furtei ela de noite… no mato ela gritou… então eu matei ela e fui levá o corpo na minha canoa pra enterrá no Uruá-tapéra.
— E enterrou?
— Eê, eu enterrei, pus cruz na cova pra siná.
TEMA — CONTO DE TERROR — O DESAPARECIMENTO
De Guillaume Apollinaire
Mau grado as minuciosas pesquisas empreendidas, a polícia nunca chegou a esclarecer o mistério do desaparecimento de Honoré Subrac.
Era meu amigo e, como conhecia a verdade sobre o caso, achei ser meu dever pôr a justiça ao corrente do que se passara. O juiz que ouviu as minhas declarações, depois de ter ouvido a história, usou para comigo de um tal tom de delicadeza que eu suspeitei de que me devia julgar maluco. Disse-lho. Mostrou-se ainda mais delicado e, levantando-se, empurrou-me para a porta; vi o escrivão de pé, de punhos cerrados prestes a saltar-me em cima, para o caso de eu ficar fora de mim.
Não insisti. O caso de Honoré Subrac é com efeito tão estranho que a verdade se mostra incrível. Pelas reportagens dos jornais, ficou-se a saber que Subrac passava por um original. Fosse inverno fosse Verão, a roupa dele era apenas um capote, o calçado eram umas pantufas. Era muito rico e, espantado como eu estava com o seu modo de vestir, perguntei-lhe os motivos:
— É para me despir mais depressa, em caso de necessidade — respondeu-me. — Com o andar do tempo, depressa nos habituamos a sair despidos. Passamos bem sem roupa interior, sem meias e sem chapéu. Vivo assim desde a idade dos vinte e cinco anos e nunca me senti doente.
Em vez de ficar esclarecido, estas palavras deixaram-me ainda mais cheio de curiosidade. Porque é que afinal — pensava — Honoré Subrac tem necessidade de se despir à pressa? E punha-me a supor milhentas coisas…
Certa noite em que eu estava de regresso a casa — seria uma ou uma e um quarto da manhã — ouvi pronunciar o meu nome em voz baixa. Pareceu-me vir o som do muro junto ao qual caminhava. Parei, desagradavelmente surpreendido.
— Não há mais ninguém na rua? — prosseguiu a voz. — Sou eu, Honoré Subrac.
— Onde é que está, afinal? — exclamei eu, olhando para todo o lado, sem conseguir fazer ideia do sítio em que o meu amigo se podia ter escondido.
Apenas descobri o famoso capote estendido no meio do passeio, lado a lado com as não menos famosas pantufas.
Aí temos um caso — pensei — em que a necessidade forçou Honoré Subrac a despir-se num de repente. Vou finalmente saber como é que se passa este mistério. E anunciei-lhe em voz alta:
— A rua está deserta, caro amigo, pode aparecer.
Bruscamente vi Honoré Subrac como que a despegar-se do muro junto ao qual eu o não tinha lobrigado. Estava completamente nu e a primeira coisa que fez foi agarrar no capote que vestiu e apertou o mais depressa possível. Calçou-se logo a seguir e começou deliberadamente a falar comigo, acompanhando-me até à porta.
— Deve ter ficado espantado! — disse. — Mas já deve compreender agora a razão por que me visto com tanta bizarria. Não percebe todavia como é que eu consegui escapar-lhe completamente à vista. Pois é muito simples. Deve ver nisto um simples caso de mimetismo… A natureza é uma boa mãe. Concedeu aos filhos a quem o perigo ameaça e que não têm forças para se defenderem, o dom de se confundirem com aquilo que os rodeia… Mas isso já você sabe. Sabe que as borboletas se assemelham às flores, que alguns insectos são semelhantes às folhas, que o camaleão pode tomar a cor que melhor o dissimula, que a lebre polar se tornou branca para ser igual aos brancos países glaciais onde, tão medrosa como as dos nossos campos, consegue tornar-se quase invisível.
E é deste modo que os animais fracos fogem ao seu inimigo, mercê de um instintivo engenho que os faz mudar de aspecto. E eu, incessantemente perseguido por um inimigo, medroso como sou e incapaz de me defender lutando, sou semelhante a esses bichinhos: confundo-me facilmente, graças ao terror, com o meu meio ambiente.
Exerci pela primeira vez esta faculdade instintiva há já um bom número de anos. Tinha vinte e cinco anos e as mulheres achavam-me afável e jeitoso. Uma delas, que era casada, testemunhou-me também amizade a que não pude resistir. Namoro fatal! Estava certa noite em casa da minha amante. Seu marido, salvo seja, fora em viagem de alguns dias. Estávamos despidos como uns deuses quando a porta se abriu de repente e apareceu o marido de revólver em punho. O meu terror foi indizível e só tive um desejo, cobarde como era e ainda sou: desaparecer. Encostado à parede, a minha vontade era confundir-me com ela. E tão imprevisto acontecimento teve imediatamente lugar. Tornei-me da cor do papel que a forrava e os meus membros, achatando-se em inconcebível e voluntário espreguiçar, fizeram com que me tornasse um só com a parede e que ninguém me conseguisse ver. É verdade. O marido procurava-me para me matar. Vira-me e era impossível eu ter fugido. Ficou como que louco e, voltando a sua fúria contra a mulher, matou-a selvaticamente, com seis tiros de revólver na cabeça. Foi-se depois embora, chorando desesperadamente. Depois de ele ter saído, instintivamente, o meu corpo tornou à forma normal e à cor natural. Vesti-me e consegui fugir antes que aparecesse alguém. Esta feliz faculdade, que se deve ao mimetismo, mantive-a dali em diante. O marido, como não conseguiu matar-me daquela vez, consagrou o resto da vida ao cumprimento desse dever. Perseguiu-me durante anos e anos por esse mundo além e eu julgava ter-lhe escapado fugindo para Paris. Mas uns instantes antes de você chegar, vi esse homem. O terror fez-me bater o dente. Tive o tempo bastante para me despir e me confundir com o muro. Passou mesmo ao pé de mim, olhando curiosamente para o capote e para as pantufas abandonadas no passeio. Já vê como tenho motivos para me vestir tão sumariamente. A minha faculdade mimética, não a poderia exercer se andasse vestido como toda a gente. Não seria capaz de me despir tão depressa que pudesse escapar ao meu carrasco; importa, antes de mais nada, que eu ande despido, pois os fatos, acachapados contra o muro, tornariam inútil a minha desaparição defensiva.
Felicitei Subrac por uma faculdade de cujas provas eu próprio era conhecedor e que muito invejava…
Nos dias que se seguiram só pensei naquilo e muita vez dei comigo a tentar mudar de forma e de cor. Tentei transformar-me em Torre Eiffel, em Académico, em vencedor da Lotaria. Todos os meus esforços foram vãos. Não conseguia. A minha vontade não possuía aquela força, aquele santo terror, aquele formidável perigo que havia despertado os instintos de Honoré Subrac…
Havia uns tempos que o não via quando certo dia ele chega muito aflito:
— O tal homem, meu inimigo — disse — espia-me por todo o lado. Já lhe consegui escapar três vezes, usando da minha faculdade, mas tenho medo, meu amigo, tenho muito medo…
Vi que emagrecera, mas evitei dizer-lho.
— Só lhe resta uma coisa — declarei — para escapar a tão impiedoso inimigo: parta! Esconda-se numa aldeia. Deixe-me cá a tratar dos seus negócios e ponha-se a andar para a estação mais próxima.
Apertou-me a mão, dizendo:
— Suplico-lhe que me acompanhe, tenho medo!
Seguíamos pela rua, silenciosos. Honoré Subrac virava-se constantemente para trás, inquieto. De repente deu um grito e pôs-se a fugir, deixando para trás o capote e as pantufas. Vi que, atrás de nós, vinha um homem a correr. Tentei agarrá-lo mas escapou-se-me. Empunhava um revólver que apontava na direcção de Honoré Subrac. Este acabara de chegar ao muro da caserna e desaparecera como por encanto.
O homem do revólver quedou-se estupefacto, soltando uma exclamação de raiva e, como que para se vingar do muro que parecia ter-lhe arrebatado a vítima, descarregou o revólver contra o sítio em que Honoré Subrac desaparecera. Em seguida desapareceu, correndo.
Juntaram-se pessoas, vieram guardas dispersá-las. Chamei pelo meu amigo. Mas ele não me respondeu.
Apalpei o muro, ainda estava morno, e notei que, das seis balas do revólver, três tinham acertado à altura do coração de um homem, enquanto as outras tinham danificado o reboco mais acima, onde me parecia distinguir vagamente os contornos de um rosto.
Guillaume Apollinaire |
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