1 de setembro de 2012

CALEIDOSCÓPIO 245

Efemérides 1 de Setembro
Arthur Upfield (1890 - 1964)
Arthur William Upfield nasce em Gosport, Hampshire, Inglaterra. Em 1910 vai para a Austrália onde fica a viver. Naturaliza-se australiano e torna-se especialista em cultura aborígene australiana. Escritor policiário, é o criador do detective Napoleão Bonaparte da polícia de Queensland, que surge em 1928 em The Barrakee Mystery, também editado com o título The Lure Of The Bush e protagoniza 29 romances do autor. Arthur Upfield escreve ainda mais 6 romances fora desta série e The Murchison Murders (1934), um livro de crime real. Em 1987 H. R. F. Keating inclui The Sands of Windee (1931), na sua lista dos 100 melhores livros de crime e mistério. The Sands of Windee, o 2 livro da série Bonaparte, é uma história de crime perfeito, onde o autor inventa um método para destruição de todas as provas.

Roderick Thorp (1936 – 1999)
Roderick Mayne Thorp nasce em Nova Iorque. Em jovem trabalha na agência de detectives do pai, publica o primeiro romance policiário em 1961. Cria a série Joe Leland, com 2 títulos publicados: The Detective (1966) e Nothing Last Forever ou Die Hard (1979), que são os seus romances mais conhecidos, devido à adaptação a filme: O Detective e Assalto ao Arranha Céus.


TEMA — MISTÉRIOS E CRIMES DA HISTÓRIA — OS SUPLÍCIOS DO MAGNICIDA
Sua Majestade, o Rei Luís XV, o Bem-amado, recebeu uma canivetada pela ilharga. O ferimento foi leve, mas causou grande escarcéu. Obra dum magnicida chamado Damiens. Pelas 6 horas da tarde de 5 de Janeiro de 1757, o monarca saía de Versalhes para o Trianon, onde devia dormir, quando, ao pisar o último degrau da escadaria dos Guardas para tomar a carruagem, um homem que ocultava o rosto com o chapéu bem enterrado na cabeça correu sobre ele e deu-lhe um encontrão.
— Duque de Ayen — disse o Rei ao camarista que o acompanhava — levei um soco.
E, imediatamente, levando a mão ao flanco e retirando-a cheia de sangue, acrescentou:
— Fui ferido! Agarrem o homem, mas não o matem!
O homem, que rompera o cordão de guardas, foi agarrado. Luís XV subiu sozinho a escadaria e recomendou que chamassem um confessor e um cirurgião. Houve grande confusão. Não havia nada preparado para atender a semelhante circunstância. Improvisou-se um leito, um médico qualquer lavou a ferida até que chegasse o assistente do soberano, Lamartiniére, que a sondou e a declarou sem perigo. Salvo se a arma estivesse envenenada. Sangraram, pois, Sua Majestade, como era de uso na época. O Rei confessou-se e fez recomendações ao Delfim, que lhe devia suceder no trono. Passou alguns dias de cama, depois restabeleceu-se com rapidez e voltou à vida de sempre.
O atentado causou espanto no seio do povo, que, apesar de tudo, amava o soberano. Escreve um cronista que houve “consternação geral e muitas pessoas derramaram lágrimas. Mais do que amor, adulação!” O Marquês de Argenson pinta, a propósito, a agitação da corte. Enquanto isso, o quase regicida jazia na prisão, onde o viu o Duque de Croy, que desta forma o descreve: “Homem bastante bonito, de olhos fundos, nariz grande de tez colorida pela febre das suas queimaduras”. É que já lhe haviam queimado a sola dos pés e as pernas, a fim de fazê-lo confessar se tinha cúmplices. Media seis pés e seis polegadas de altura, os cabelos eram castanhos, as pernas fortes e os braços musculosos. Boa presença. Falava suavemente.
Inquirido e reinquirido, não se tirou dele outra confissão dos motivos de seus actos senão
— Foi por causa da religião.
Acrescentava que o reino e o povo desgraçando-se e o monarca sem atender a nenhuma reclamação. Todas essas declarações eram vagas e arrancadas a poder de tormentos. Damiens sofria calado. A Polícia apurou que viera de Arras, tendo chegado a Paris no dia 31 de Dezembro de 1756 e hospedara-se num albergue da Rua Mazarina. Divertira-se com algumas raparigas alegres da Rua Gilles-Coeur. As autoridades consideravam-no instrumento de vasta conspiração, à qual não deveriam ser estranhos os jesuítas perseguidos pelo Ministro Choiseul. Mas ele jamais cedeu nesse ponto, afirmando que actuara sozinho e por sua livre vontade, sem cúmplices ou mandantes.
Transferido da prisão de Versalhes para a Conciergerie em Paris, foi metido na cela que Ravaillac, o assassino de Henrique IV, ocupara. Escoltado por mais de 800 soldados, mal podendo mover-se pelo peso das correntes, atravessou a cidade de carruagem por entre a multidão curiosa, apesar do frio e da hora — duas da madrugada. Na masmorra circular, iluminada por duas altas frestas duplamente gradeadas na espessura da parede, amarraram-no com um complicado sistema de correias a um leito de colchões, de modo a impedir qualquer tentativa de suicídio. Aplicaram-lhe várias vezes horas seguidas a tortura chamada do borzeguim, que acabava inutilizando as pernas do paciente, sem nada conseguir. Ele resistia, portando-se com extraordinário sangue frio. Dizia mesmo piadas. Depois, contava anedotas aos guardas. Respondia a todas as perguntas com a maior presença de espírito.
A execução de Damiens foi um espectáculo medonho, uma exibição de crueldade sem par. Convocaram os carrascos de vinte cidades para o devido preparo das tenazes, das caldas ardentes a serem deitadas nas feridas, dos cavalos e material do esquartejamento e da fogueira final. A hedionda tarefa realizou-se na Praça da Greve, cercada de cordões de tropas. Incalculável multidão grulhava em torno. As janelas do casario em volta, alugadas por alto preço, estavam cheias de damas e cavalheiros. Havia gente pelos telhados.
Depois de despirem o infeliz e lhe mostrarem um por um os instrumentos dos suplícios, descrevendo minuciosamente seus efeitos, prenderam-no com cordas e cintas de ferro, de costas, sobre um estrado de madeira. Primeiramente queimaram devagar com enxofre a sua mão direita, tendo nela preso o canivete com que ferira o Rei. Dizem as crónicas que soltou um verdadeiro urro, depois calou-se e ficou a olhar para a mão queimada. O Doutor Cabanés vê nisso “uma espécie de analgesia, de semi-anestesia, própria dum carácter nitidamente anormal ou, melhor, patológico”. Continuou impassível quando o carrasco de Orleães, sob a direcção do de Paris, começou a atenazá-lo nos braços, nos seios, nas pernas e nas coxas; mas, quando o de Lião ia derramando nos profundos talhos abertos azeite a ferver, pez com resina, ou chumbo derretido, soltava berros fortes e rápidos. Calava-se em seguida e ficava a olhar as partes torturadas de seu corpo. Não demonstrava a menor impaciência, afirma uma testemunha ocular.
Seguiu-se o esquartejamento destinado aos parricidas e aos regicidas que lhes eram assemelhados no direito penal antigo. Teve os braços e as pernas amarrados por fortíssimos tirantes de couro a quatro cavalos. Os animais, chicoteados furiosamente pelos algozes, puxavam o corpo em sentido contrário, deslocando as articulações, pondo fora do lugar rótulas, cotovelos, ombros, cabeça dos fémures, sem conseguir, no entanto, romper o corpo, dilacerá-lo. Foi preciso cortar os nervos e tendões principais para facilitar a tarefa dos cavalos. O carrasco de Paris deu os cortes necessários e, assim, os membros foram arrancados. O autor dum relato contemporâneo dessa repugnante cena diz que Damiens vivia ainda, ao ser o seu tronco lançado às chamas da fogueira.
O Duque de Croy emitiu justo parecer sobre o infeliz Damiens. Era, na sua opinião, um desajustado, um louco, guiado pela vaidade e sofrendo a influência dos protestos que ouvia contra o soberano e que lhe viraram a cabeça. Desde a meninice, tinha sido atrabiliário e perigoso. Julgava-se destinado a emendar o mundo. Vivia sempre descontente. Tinha de quando em quando crises de exaltação que só passavam com doses de ópio ou sangrias. Durante as mesmas era capaz de todas as violências.
Conta o Doutor Cabanés, de acordo com os documentos do processo, que Damiens estava justamente sob o império duma dessas crises quando feriu o Rei. Na véspera do atentado, ele pediu à Senhora Fortier, proprietária do albergue onde se hospedara, que chamasse um cirurgião para sangrá-lo. Ela achou melhor dar-lhe um bom copo de vinho. Depois de praticar seu acto temerário, o desgraçado exclamou que se o tivessem sangrado a tempo, aquilo não teria acontecido. Aconteceu e ele foi submetido aos mais hediondos suplícios.



TEMA — CONTO — UM CASO BASTANTE ESTANHO
De Fernando Saldanha

Sobranceiro ao rio havia um antigo solar em ruínas que há muito não era habitado.
Pertencia a uma nobre família beirã e nem mesmo os homens mais velhos das redondezas se lembravam de ver alguém nas suas salas enormes ou nos vastos jardins, onde apenas cresciam as ervas daninhas e uma ou outra árvore secular se conservava.
 Era crença entre o povo que, altas horas da noite, os fantasmas povoavam os parques desertos e passeavam por toda a casa, afirmando serem os espectros de dois antigos senhores do solar das Torres.
Certo dia…
 Um homem, novo ainda, trajando à caçador, da arma a tiracolo, aproximou-se do rio e, reparando na velha casa, acercou-se dos portões…
Fez minuciosa investigação, em redor dos muros desmoronados, contemplando demoradamente as janelas cerradas com as vidraças partidas… talvz espreitando qualquer sinal de vida.
— Oh, oh! — murmurou — Parece que é mesmo o que me convém!
Sem fazer cerimónias, galgou a vedação.
Já nos jardins da casa da Torre seguiu decididamente pelas áleas desertas onde só a vegetação espontânea vivificava tomando conta dos caminhos outrora cuidados.
Chegando junto à entrada não se deteve muito tempo frente às portas cerrada. Meteu os ombros… e mais não foi preciso: a madeira apodrecida, cedeu, franqueando-lhe o acesso.
No átrio apenas existiam um corroído cabide e duas cadeiras sem fundo… Sobre o sobrado, nas paredes e no tecto, camadas de poeira a tapar tudo, levantando nuvens espessas a cada passo que arriscava.
— Livra! — bradou o nosso homem recuando ante o ataque secular de pó — Isto nem para fantasmas!
Porém, não desistiu. Avançou mais cautelosamente, a proteger-se conforme podia, principiando a visitar a casa.
O andar térreo estava quase desprovido de mobiliário, sendo evidente que somente tinha ficado os trastes velhos, O andar superior apresentava-se, contudo, em muito melhor estado, havendo em alguns quartos bastante mobília.
Finalmente, chegou à parte principal do edifício: uma Torre circular que tinha acesso por uma escadaria de mármore.
Subiu resolutamente.
Grande surpresa o aguardava: encontrou-se numa sala majestosa ricamente mobilada. Em todo o aposento havia um cheiro característico e desconhecido…
Assombrado, notou que tudo estava num estado de limpeza satisfatório. A um canto uma mesinha redonda sobre a qual repousava um livro, tendo perto duas poltronas, despertou-lhe fortemente a atenção.
Acercou-se…
Na encadernação primorosa sobressaiam a letras douradas os seguintes dizeres: Manuela Almada Torres, o meu diário.
Pegou no livro e ficou estarrecido; na última página escrita leu: Torres, 29 de Outubro de 1929.
Céus! Aquela data… mas… então o solar era habitado! Aquele dia antecedia em 24 horas a actual época!
Num sobressalto o nosso herói olhou em volta. A quietude que reinava em toda a casa não foi de molde a tranquilizá-lo e, antes de ler os restantes dizeres, tirou a arma do ombro colocando-a defronte de si, em cima da mesa.
Só então olhou a escrita.
“Fui avisada de que alguém viria à velha torre. Ao desconhecido, seja quem for, quero pedir um favor que, uma vez realizado libertará para sempre o meu espírito escravizado há um século, desde o dia trágico de 29 de Outubro de 1829.
Se quiser ficar na posse de uma das maiores fortunas da Bretanha, deve fazer o seguinte:
Queimar todas as folhas deste diário até chegar à data indicada acima.
Depois de tornar a colocar o livro no lugar onde se encontra, aguarde nesta sala as 12 badaladas da meia-noite.
Ao soar a última pancada um homem entrará e sentando-se numa cadeira há-de ler este mesmo diário. Não se assuste: o recém-chegado não poderá vê-lo. Ele apenas cumpre uma terrível maldição: ler pelos séculos fora, todos os dias ao soar a derradeira pancada da meia-noite, as páginas deste livrinho pertença de sua mulher a quem barbaramente assassinou na data fatídica de 29 de Outubro de 1829.
Após isto ele dirigir-se-á para a capelinha do parque. Siga-o. E… eis o principal — deve ajudá-lo na tarefa em que se empenhar.
Mas note bem: sem a sua actuação nada poderá acontecer. Da sua acção dependerá encontrar um cofre com jóias. É a minha recompensa por me libertar de anos sem conta, através dos séculos, ser obrigada a levantar-me datumba sem descanso, escrever estas páginas durante noites sem fim…”
Enquanto lia, o aventureiro chegou a sentir arrepios. De repente riu-se de si próprio e soltou uma gargalhada:
— Oh, oh!,— disse entre dentes — Algum engraçado quer divertir-se à minha custa!
Resolveu tomar parte na brincadeira. Fez o indicado na carta singular. As horas passaram…
Instalara-se o melhor possível, na sala iluminada por dois cotos de vela que encontrara e de arma carregada, esperou…
Sonora, lúgubre, a última pancada da meia-noite soou. Um estranho pressentimento avisava-o que algo iria passar-se. Então qualquer coisa sinistra e apavorante aconteceu.
A porta abriu-se e um vulto coberto de roupagens exóticas entrou no aposento num andar cadenciado, sem que os seus passos se fizessem ouvir dirigindo-se para a mesa onde repousava diário…
O nosso homem passado o primeiro momento de assombro, recompôs-se.
— Alto lá! — disse com espantoso sangue frio, apontando a arma. — Quem quer que é o senhor, faz favor de ficar quietinho!
Porém o recém vindo, que aliás, nada tinha de humano, pareceu não dar por nada… com ar cansado e tendo nas feições cadavéricas uma palidez mortal, sentou-se numa poltrona, tomando o livro e abrindo-o com movimentos lentos e arrastados.
O nosso herói estava varado. Quase se convencia da existência de fantasmas…
Viu emocionado, que o homem ou o espectro, ou lá o que era, teve um gesto de surpresa ao deparar com as folhas do diário. Primeiro ficou indeciso. Depois, febril, desfolhou o manuscrito com incrível rapidez. Por fim quedou-se.
Seguidamente, o duende levantou-se, correu para a porta e… desapareceu. Quando o aventureiro surpreso e inquieto se acercou da saída, já o não descobriu.
— Bom… bom! — Rosnou para consigo. — Isto não está nada agradável. Vamos seguir as instruções do livrinho a ver o que isto dá… e se encontrasse o tesouro? Mas pode lá ser uma coisa destas!
Levou uma vela consigo e sem largar a espingarda chegou aos jardins.
A capelinha lá estava… tendo a porta aberta.
O nosso homem entrou resolutamente. Assombro dos assombros: o estranho personagem tentava forçar a tampa dum jazigo ali existente.
Então, se bem que não acreditasse em nada daquilo, resolveu seguir as instruções do diário.
Colocou a vela num ponto alto.
Surgia porém, uma dificuldade: não queria, de maneira alguma aproximar-se…
— Ah, não, senhor fantasma! — disse alto — Assim não! E vejo que não conseguirá o que pretende: se quiser que lhe dê uma ajudazinha tem de ter a bondade de afastar-se um pouco, sim?
Ainda desta vez o personagem não pareceu ouvi-lo, continuando na sua tarefa…
— Bom, isto torna-se difícil: é preciso proceder da melhor maneira…
Pôs a arma à cara. Assestou-a contra um orifício que lhe pareceu ser a fechadura e cautelosamente, embora quase estivesse convencido de que o estranho indivíduo não poderia ser atingido, disparou.
A detonação foi ensurdecedora, A chamazinha da vela alongou-se devido á deslocação do ar… quando o aventureiro já admitia a hipótese de ficar nas trevas, a luz, como por encanto, resistiu.
A tampa cedera.
Passou-se então una cena incrível: o fantasma, pois certamente o era, pelo menos assim o julgava o nosso homem, penetrou no jazigo espaçoso chegando junto duma urna abriu-a.
Que iria acontecer?
Viu o espectro inclinar-se sobre um cadáver singularmente bem conservado e… coisa espantosa: arrancou-lhe um refulgente punhal que tinha cravado no peito.
Um estremecimento sacudiu aquilo que lhe parecia um corpo de mulher e, quase louco de terror, viu o espectro ajoelhar, a implorar.
Horrível gemido, arrancado das profundezas do jazigo chegou até ele e julgou ouvir palavras de perdão:
— Dorme em paz, Jacinto! A minha alma já te perdoou…
Pareceu-lhe ver também o fantasma abraçar-se ao cadáver e, com um ruído medonho, a tampa da urna fechou-se sobre aquele amontoado sinistro da espectros…
Horrorizado ante um pavoroso estrondear que aumentava de intensidade de momento a momento, o nosso herói safou-se por fim.
Nessa mesma altura a estrutura secular da pequenina capela ruiu com estrondo e as suas apodrecidas paredes caíram uma por uma… até tudo ficar reduzido a um montão de ruínas.
Era o fim.
Mas sobre o amontoado dos sagrados destroços, um cofrezinho com a imagem de Jesus Cristo feriu-lhe a vista, milagrosamente intacto…
… A provar-lhe, com as ricas jóias que encerrava, que tudo aquilo não fora um pesadelo da sua imaginação exaltada!



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